Ainda existe coisa julgada no Brasil? – Parte 1

No último dia 23 de abril, o Supremo Tribunal Federal apreciou a Questão de Ordem na AR 2876, sob relatoria do ministro Gilmar Mendes, em que se debateu a constitucionalidade do ajuizamento de ação rescisória a contar do trânsito em julgado de precedente vinculante do STF, independentemente da data de trânsito em julgado da sentença. O presidente comunicou que o tribunal havia deliberado “em conferência” nos seguintes termos:

Conheça o JOTA PRO Poder, plataforma de monitoramento que oferece transparência e previsibilidade para empresas

“O parágrafo 15 do art. 525 e o parágrafo 8º do art. 535 do Código de Processo Civil devem ser interpretados conforme a Constituição Federal, com efeitos ex nunc, portanto prospectivos, no seguinte sentido, com a declaração incidental de inconstitucionalidade do parágrafo 14 do art. 525 e do parágrafo 7º do art. 535:

  1. Em cada caso, o STF poderá definir os efeitos temporais dos seus precedentes vinculantes e sua repercussão sobre a coisa julgada, estabelecendo, inclusive, a extensão da retroação para fins da ação rescisória; ou mesmo o seu não cabimento diante do grave risco de lesão à segurança jurídica ou ao interesse social;
  2. Na ausência de manifestação expressa, os efeitos retroativos de eventual rescisão não excederão 5 anos da data do ajuizamento da ação rescisória, a qual deverá ser proposta no prazo decadencial de 2 anos, contados do trânsito em julgado da decisão do STF;
  3. O interessado poderá apresentar a arguição de inexigibilidade do título executivo judicial, amparado em norma jurídica ou interpretação jurisdicional considerada inconstitucional pelo STF, se a decisão do STF anterior ou posterior ao trânsito em julgado da decisão exequenda, salvo preclusão (CPC, arts. 525, caput e 535, caput)”.

Embora o tribunal ao menos tenha assentado a eficácia prospectiva da decisão na QO, as teses introduzem incertezas no sistema jurídico ao relativizar a estabilidade da coisa julgada, ampliar hipóteses de rescisão judicial e criar sistemática de inexigibilidade de títulos executivos. O “caput” e a primeira tese da proclamação acima serão examinados abaixo. As teses 2 e 3 serão examinadas na segunda parte deste artigo.

Um problema procedimental

A decisão do STF foi proferida à margem do debate público, com proclamação sumária de teses e sem a apresentação dos votos orais, nem mesmo do relator. A ausência de deliberação pública viola o princípio da publicidade, o devido processo legal, o contraditório e o dever de fundamentação das decisões judiciais (arts. 5º, LX e LIV; art. 93, IX, da CF).

Tal conduta institucional não apenas fragiliza a legitimidade da decisão, como também rompe com o compromisso de transparência e deliberação democrática que sempre norteou a atuação do tribunal.

Além disso, a forma como a decisão foi proclamada — em conferência — comprometeu a manifestação das divergências, sobretudo diante da modificação do voto anteriormente apresentado pelo relator, o que também ofende o regimento interno do STF (arts. 151 a 153).

No mérito, a corte relativizou a autoridade da coisa julgada ao validar a criação de um “prazo móvel” para ajuizamento de ação rescisória, condicionado à data de formação de um futuro precedente. Isso implica admitir a revisão de sentenças mesmo décadas após o trânsito em julgado, o que solapa a eficácia preclusiva da coisa julgada e enfraquece o valor segurança jurídica, imprescindível para estabilização das relações sociais (art. 5º, XXXVI, da CF).

Eficácia para frente

O STF assentou que os novos dispositivos do CPC devem ser interpretados conforme a Constituição, com efeitos ex nunc, para frente. Isso cria duas possíveis leituras. A primeira é a de que apenas os precedentes formados a partir de 25/04/2025 (data da publicação da ata de julgamento) podem afetar coisas julgadas posteriores, nos termos das teses definidas na QO na AR 2876. A segunda — que reputamos a mais segura — é a de que apenas decisões que transitem em julgado após essa data estarão sujeitas ao novo regime.

Essa leitura se impõe em respeito ao previsto expressamente no art. 1.057 do CPC (“O disposto no art. 525, §§ 14 e 15 , e no art. 535, §§ 7º e 8º , aplica-se às decisões transitadas em julgado após a entrada em vigor deste Código , e, às decisões transitadas em julgado anteriormente, aplica-se o disposto no art. 475-L, § 1º , e no art. 741, parágrafo único, da Lei 5.869, de 11 de janeiro de 1973 “) e aos princípios da irretroatividade e segurança jurídica.

Assim, se uma decisão transitar em julgado sob a égide do CPC/1973, sua rescisão ou impugnação relacionada à inexequibilidade deverá ocorrer de acordo com as disposições do Código então vigente, inclusive as relacionadas à Súmula 343/STF[1], que se mantem vigente, sendo inviável alegar-se a desconstituição de título, em execução, se a decisão tiver transitado em julgado antes do pronunciamento do STF, conforme assentado no Tema 360-RG, que cuidou exatamente das situações regradas pelo CPC de 1973[2].

Se o trânsito ocorrer sob a égide do novo Código, suas novas disposições regerão a matéria. Ou seja, será possível o ajuizamento da ação rescisória no prazo de dois anos da formação de eventual precedente vinculante, sem qualquer limitação retroativa obrigatória (cinco anos), e não será possível apresentar, em execução, petição de inexequibilidade do título se a decisão rescindenda for anterior ao pronunciamento da Corte (Tema 360-RG), salvo nos casos de juizados especiais, em que, por ausência de previsão de ação rescisória, o STF já vinha interpretando ser possível tal alegação em execução, desde que realizada no prazo da ação rescisória[3].

Se a decisão transitar em julgado depois de 25/04/2025, sua eventual rescisão estará sujeita às novas teses estabelecidas na AR 2876, ainda que o pronunciamento vinculante do STF seja anterior.

Portanto, as novas regras de impugnação da coisa julgada definidas pelo STF valem apenas para as decisões transitadas em julgado depois de 25/04/2025.

Criação de hipóteses casuísticas de rescisão

A primeira tese fixada pelo STF autoriza que, em cada caso, o Tribunal defina os efeitos temporais de seus precedentes e sua repercussão sobre a coisa julgada.

A modulação de efeitos sempre se circunscreveu ao campo de eficácia da decisão do tribunal sobre os atos ou fatos consumados. Quando o tribunal prevê deliberação sobre a “extensão da retroação para fins da ação rescisória; ou mesmo o seu não cabimento”, a modulação passa a não ser mais em relação aos efeitos da decisão do próprio Tribunal Constitucional (permitido), mas ao campo de validade da cosia julgada. Ou seja, mais do que algo que interfere com a eficácia de suas decisões, o tribunal passa a prever, para cada situação concreta, uma hipótese individual de cabimento de rescisória.

Trata-se de criação de “lei em sentido material”, isto é, as decorrentes de atos de “função política e sujeita imediatamente à Constituição”[4], o que, de acordo com a Constituição, não compete ao Supremo, mas ao Congresso. Conforme MIRANDA, “Não pertence ao próprio órgão fazer seus poderes que lhe não sejam atribuídos; e nenhuma autoridade do Estado pode praticar actos que não se reconduzam a competências pré-estabelecidas”[5].

Portanto, a tese fixada usurpa a competência do Poder Legislativo, a quem compete, em atenção à isonomia e segurança jurídica, produzir normas gerais e abstratas, razão por que ofende a Separação de Poderes e o princípio Democrático.

No próximo artigo examinarei a segunda e a terceira teses fixadas.


[1] RE 590.809, relator ministro Marco Aurélio – Tema 136

[2] Tema 360 (RE 611503, Rel. Min. Teori Zavascki, DJ 19/03/2019)

[3] RE 586.068, Rel. Min. Gilmar Mendes, DJ 31/01/2024 – Tema 100.

[4] MIRANDA, Jorge. Teoria do Estado e da Constituição. 1ª Edição. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2003, páginas 249-250.

[5] Idem, pp. 264-265.

Adicionar aos favoritos o Link permanente.