Analfabetismo funcional e riscos de manipulação

Os últimos resultados do INAF (Indicador de Alfabetismo Funcional) mostraram que, apesar de alguns avanços, ainda temos no Brasil uma assustadora taxa de analfabetismo funcional: 29%, somando os 7% considerados analfabetos e os 22% que apresentam uma alfabetização rudimentar[1].

A tabela abaixo, apresentada pelo INAF, nos auxilia a compreender o cenário atual, bem como a evolução histórica:

Chama a atenção o quanto a proporção de alfabetizados em nível proficiente – em torno de apenas 12% da população – é ínfima e permanece praticamente inalterada ao longo de toda a série histórica. Logo, os ganhos verificados no analfabetismo e no alfabetismo rudimentar ocorreram a partir de uma redução daqueles que se encontravam na faixa do alfabetismo elementar e não, como seria esperado, do aumento das faixas superiores.

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Vale ressaltar que somente aqueles que se encontram no nível proficiente possuem as habilidades de letramento, numeramento e contextuais, sendo realmente capazes de ler, interpretar e elaborar textos complexos, compreender nuances e resolver problemas que exigem planejamento e inferências.

Tais dados, que já seriam preocupantes por si só, tornam-se ainda mais alarmantes diante das crescentes tentativas de manipulação encontradas no atual estágio do capitalismo de vigilância, como já tive oportunidade de alertar em artigo acadêmico[2]. Com efeito, cada vez mais o cérebro humano deixa de ser a última fronteira da privacidade, permitindo a exposição dos nossos pensamentos e emoções.

Por meio de negócios de dados e tecnologias cada vez mais sofisticadas neles empregadas, aí incluídas as neurotecnologias, são colocadas em prática inúmeras estratégias de empresas e governos que, por meio de uma série de técnicas de manipulação, trazem evidentes riscos à privacidade mental dos indivíduos e ao livre pensamento.

Embora não seja fácil distinguir persuasão de manipulação, a segunda diferencia-se da primeira na medida em que visa alterar os pensamentos ou comportamentos das pessoas com a utilização de violência psicológica, coerção ou engano, o que não estaria presente na persuasão propriamente dita.

Consequentemente, a manipulação tem como cerne o engano deliberado ou a violência psicológica e emocional, ainda que imperceptível pelo destinatário, inclusive para o fim de possibilitar o controle sobre mentes[3]. Daí por que, ao contrário da persuasão, que pressupõe o respeito às pessoas e a tentativa de convencê-las racional ou emocionalmente por meios adequados, a manipulação baseia-se na desconsideração, no desrespeito e na desumanização dos indivíduos, buscando suprimir a sua racionalidade ou interferir de forma abusiva em suas emoções, de modo a impossibilitar uma tomada de decisão autônoma.

Se é verdade que as estratégias de manipulação acompanham a história da humanidade, não se pode negar que foram significativamente ampliadas e potencializadas no contexto do capitalismo de vigilância[4], que possibilita o uso do enorme volume de dados extraídos das pessoas – aí incluídos os dados cerebrais –para o fim de manipulá-las para os mais diversos objetivos, que vão dos comerciais aos políticos. Não é sem razão que, na atualidade, as discussões sobre a chamada lavagem cerebral (brain washing) têm sido resgatadas e ressignificadas, unindo-se a outras, como as relacionadas ao brain hacking.

Não é preciso muito esforço para concluir que tal fenômeno é manifestamente incompatível com os direitos fundamentais mais elementares, bem como com a proteção de dados pessoais. Afinal, esta se encontra alicerçada não apenas na tutela da privacidade – sobretudo se esta for vista apenas como intimidade – mas também no resguardo da autodeterminação informativa e de importantes direitos e garantias fundamentais, incluindo a dignidade, a cidadania e o próprio livre arbítrio[5].

É por essa razão que Daniel Solove[6] e Shoshana Zuboff[7] tratam da proteção de dados pessoais a partir do que denominam de “santuário”, ou seja, de um espaço de refúgio inviolável ou de um núcleo essencial onde as pessoas estejam livres do controle da sociedade, inclusive para que possam deixar as máscaras e exercer suas verdadeiras identidades.

Também não é sem motivo que a própria LGPD, já no seu art. 1º, deixa claro que os seus objetivos são os de proteger “os direitos fundamentais de liberdade e de privacidade e o livre desenvolvimento da personalidade da pessoa natural”, com o que reforça o seu compromisso com a tutela da identidade e do livre pensamento.

Entretanto, um elemento fundamental para esse tipo de proteção é o que podemos chamar de cidadania digital, ou seja, o conhecimento específico e as reflexões que os cidadãos precisam ter para se resguardarem minimamente dos riscos do capitalismo de vigilância.

É nesse contexto que os dados do INAF são tão alarmantes, ao mostrarem que apenas 12% dos brasileiros podem ser considerados proficientes. Ora, se mesmo pessoas com maior conhecimento e compreensão do mundo estão sujeitas às diversas técnicas de manipulação, imagine-se aquelas que, por uma série de deficiências em seus processos educativos, não conseguem nem mesmo atingir tal nível.

Nesse contexto, é complicado imaginar que as regras jurídicas, sozinhas, possam tutelar adequadamente essas pessoas. Se a utilização maciça e abusiva de dados, a manipulação e artificialização do fluxo informacional, o microdirecionamento de conteúdos e as tecnologias persuasivas, notadamente as neutotecnologias, vêm impedindo ou dificultando que as pessoas exerçam livremente suas manifestações e seus processos de escolha, tais riscos são muito mais acentuados em analfabetos funcionais ou naqueles com níveis de alfabetismo não satisfatórios.

Com efeito, seja pela privação do acesso aos fatos verdadeiros e às informações relevantes para uma decisão racional, seja pela deflagração de estados emocionais extremos que levam as pessoas à exaustão, ao desespero e ao ódio incontido, seja pelo indevido poder de manipulação de alguns agentes, cada vez mais é possível que haja verdadeiro controle sobre as mentes dos indivíduos. Tal cenário, que já é perturbador como um todo, é particularmente grave para os menos alfabetizados, que se tornam ainda mais expostos em razão da sua vulnerabilidade cognitiva.

Se a ignorância sempre foi instrumento de dominação, o atual estágio do capitalismo mostra que tal dominação pode ocorrer de formas ainda mais invasivas e sofisticadas, para as quais somente a educação, a aquisição de habilidades cognitivas e críticas e a construção de uma cidadania digital poderiam ser fatores minimamente efetivos de contenção.

Se os cidadãos brasileiros não têm acesso, como regra, nem mesmo à educação básica, é difícil esperar que possamos construir uma cidadania digital ativa, que lhes possibilite a defesa e a proteção, dentro do possível, diante dos inúmeros riscos de manipulação.

Mais uma vez, observa-se que a ignorância, no Brasil, pode ser realmente um projeto, a fim de facilitar o exercício de diversos tipos de poder sobre os mais vulneráveis. O capitalismo de vigilância apenas ampliou essas formas de poder e mostrou que, sem o devido controle, as técnicas de manipulação podem aniquilar por completo os indivíduos, especialmente os que não tiveram acesso à educação de qualidade.


[1] https://alfabetismofuncional.org.br

[2] FRAZÃO, Ana. Direito ao livre pensamento na era digital: A necessária proteção das pessoas contra as múltiplas e variadas estratégias de manipulação In: A Prioridade da Pessoa Humana no Direito Civil-Constitucional – Estudos em Homenagem a Maria Celina Bodin de Moraes, ed.1. São Paulo: Editora Foco, 2024, v.1, p. 3 – 23.

[3] Não é objetivo do presente artigo aprofundar as discussões sobre o poder, mas é importante destacar que a formulação ora apresentada tem forte influência da proposta apresentada por Manuel Castells (CASTELLS, Manuel. O poder da comunicação. Tradução Vera Lucia Joyceline. Rio de Janeiro/São Paulo: Paz e Terra, 2015).

[4] Ver ZUBOFF, Shoshana. The age of surveillance capitalism. The fight for a human future at the new frontier of power. New York: Public Affairs, 2019.

[5] Ver FRAZÃO, Ana. Fundamentos da proteção dos dados pessoais – Noções introdutórias para a compreensão da importância da Lei Geral de Proteção de dados. In: Gustavo Tepedino, Ana Frazão e Milena Donato Oliva. (Org.). Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais e suas repercussões no Direito Brasileiro. São Paulo: Thomson Reuters – Revista dos Tribunais, 2019, v. 1, pp. 23-52, e FRAZÃO, Ana. Objetivos e alcance da Lei Geral de Proteção de Dados. In: Gustavo Tepedino, Ana Frazão, Milena Donato Oliva. (Org.). Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais e suas repercussões no Direito Brasileiro. São Paulo: Thomson Reuters – Revista dos Tribunais, 2019, pp. 99-129.

[6] SOLOVE, Daniel. Understanding privacy. Cambridge: Harvard University Press, 2008, p. 164.

[7] ZUBOFF, Shoshana. Op.cit., p. 21.

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