O equilíbrio estrutural fiscal e o mito de Sísifo

O crescente avanço do Senado e da Câmara dos Deputados com o objetivo de pressionar a União a lhes abocanhar fatias cada vez maiores de recursos da União, por meio da multiplicação de novas formas de emendas parlamentares, é a parte visível de três grandes problemas estruturais que o país vem sofrendo há muito tempo. 

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O primeiro problema é o desprezo pelos projetos de planejamento de médio e longo prazo pelos governos eleitos após a redemocratização do país, na década de 1990. O segundo problema é a carência de maior responsabilidade na destinação dos recursos públicos, o que exige a criação de mecanismos eficazes para barrar o desvio desse dinheiro por meio de emendas parlamentares irresponsáveis. O terceiro problema diz respeito às medidas que precisam ser tomadas para deter o descontrole fiscal dos entes subnacionais, – especialmente no plano municipal, que envolve um total de 5.571 cidades pequenas, médias e grandes situadas em cinco regiões com características distintas.   

Se esses problemas continuarem não sendo enfrentados como deveriam, a construção de um horizonte de Nação continuará trilhando os caminhos da condenação de Sísifo, que representa na mitologia grega o mestre da malícia e um dos maiores ofensores dos deuses. Por isso, ele foi condenado pelos deuses a empurrar, por toda eternidade, uma pedra de uma montanha até o topo, a qual rolaria para baixo, o que o obriga recomeçar tudo outra vez.          

De certo modo, essa tem sido a trajetória do processo de planejamento econômico no país, decorrente de sucessivas crises de governabilidade e da inconsequente hipervalorização do imediatismo de prefeitos e governadores.    Sem planejamento de médio e longo prazo não há metas que possam ser atingidas. Inexistem diretrizes claras formuladas com o objetivo de assegurar sustentabilidade, integração e crescimento. Orçamentos das administrações municipais, estaduais e federais tendem a ser peças de ficção. Mudanças legais impostas comprometem a segurança jurídica. E a frustração das expectativas da população tendem a abrir caminho para o populismo. 

Importado dos Estados Unidos, cuja estrutura social e cultural era bem diferente da brasileira, nosso regime federalista dificulta a catalização de anseios e valores de toda a sociedade. Também propicia um retrocesso da democracia representativa e dos padrões de governabilidade, uma vez que em muitos municípios e Estados as prioridades estão voltadas não ao crescimento econômico e à correção das desigualdades sociais, mas ao atendimento de interesses paroquiais, eleitorais, cartoriais e corporativos. 

Nesse cenário, nos planos municipal e estadual as verbas públicas muitas vezes são aplicadas sem a devida transparência e sem rastreabilidade, ao mesmo tempo em que a crescente ampliação de seus montantes em decorrência de decisões do Congresso retira da União verbas que poderiam financiar obras estruturantes e estratégicas voltadas à redução das desigualdades regionais.

Além de tensionar o poder de agenda da União e tumultuar as contas públicas nacionais, abrindo caminho para um desequilíbrio fiscal estrutural, o aumento dos recursos destinados aos Estados e aos municípios e sua crescente pulverização em programas ineptos costumam gerar muitos problemas. Entre os mais problemas mais importantes, destaca-se a tendência de Estados e prefeituras de aumentar suas despesas sem maior preocupação com eficiência e ganhos sociais. Em vez de abrir caminho para a montagem de uma estrutura de serviços públicos eficiente e profissional cujos dirigentes são por princípio escolhidos por qualificação técnica, por exemplo, o que se tem é justamente o oposto. Nas cidades e regiões mais pobres, não é difícil encontrar serviços públicos essenciais municipais e estaduais conduzidos por gente pouco qualificada, escolhida apenas por sua fidelidade aos chefes políticos locais e estaduais.   

Nesse cenário, economistas respeitados vêm defendendo – e não é de hoje – que o Senado e a Câmara dos Deputados formulem um sistema normativo-tributário capaz de abrir caminho para uma governança mais responsável da política fiscal e para um novo padrão de equilíbrio fiscal estrutural no país. Por seu lado, o Supremo Tribunal Federal vem tomando importantes medidas saneadoras. Nos últimos meses, a corte já determinou aos municípios e aos Estados que prestem contas sobre como gastaram ou pretendem gastar os recursos enviados por meio das chamadas emendas de “transferência especial” – mais conhecidas como emendas Pix, conhecidas por sua absoluta falta de transparência – no período de 2020 a 2023.

Esta decisão atinge um total de 6.247 planos de trabalho cuja documentação e cujos relatórios ainda não foram devidamente apresentados aos ministérios, contrariando assim uma determinação da mais importante corte do país. Pelas estimativas preliminares do Supremo, esses planos de trabalho envolvem dezenas de bilhões do orçamento público federal. 

Além disso, sob a justificativa de que a Câmara dos Deputados e o Senado continuam descumprindo as exigências de transparência e de rastreabilidade, o Supremo decidiu que, a partir deste ano, todas as emendas parlamentares terão de ter seus planos de trabalho apresentados previamente com informações completas. E ainda estabeleceu que seus autores serão responsabilizados legalmente, caso não cumpram essa determinação.

Economistas e ministros da corte estão certos. O problema, contudo, é outro: qual é a disposição que os membros da Câmara e do Senado para cumprir o que lhes é determinado. Quanto tempo mais durará o enfrentamento entre os poderes Legislativo e Judiciário nesta matéria? Afinal, enquanto não houver essa disposição, não se pode ser otimista com relação ao futuro próximo do país. 

Como já afirmei anteriormente pelo JOTA, as respostas a essas indagações estão condicionadas pelos históricos problemas de representatividade do federalismo brasileiro. Segundo dados do IBGE, o Norte, Nordeste e Centro-Oeste – regiões com muitas cidades pobres e áreas que demandam demanda por mais transferência de recursos advindos da União – detêm 74% dos assentos no Senado. Quanto ao Sudeste e ao Sul, as duas regiões mais ricas do país ficam com apenas 26% dos assentos. Desse modo, por terem grande força no política nessa casa legislativa, o Nordeste, o Norte e o Centro-Oeste tendem a influenciar e a controlar quase todas as decisões tomadas no Senado. 

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Nestas três últimas regiões, até hoje a maioria dos interesses locais prevalece acima de qualquer outra coisa. As pressões dos grupos políticos e dos senadores dessas regiões sobre o orçamento da União e sobre a máquina administrativa federal constituem assim um círculo vicioso. Afinal, a multiplicação dos centros locais de poder, onde até hoje gravitam diferentes formas de coronelato, tem muito a ver com ineficiência de várias esferas administrativas do país. E, como dizia Celso Furtado há exatas seis décadas, em palestra pronunciada na Yale University sobre os obstáculos da modernização do Brasil, essa ineficiência é justamente a condição para que essa estrutura de poder dos entes federativos permaneça como está. 

Esse círculo vicioso do que Furtado chamava de ineficiência administrativa crônica provocada por um processo de “feudalização do poder” e da subsequente absorção da máquina administrativa. dá a dimensão do quão difícil continua sendo uma negociação profunda e responsável sobre um novo padrão de equilíbrio fiscal estrutural no país.

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