Neutralidade tributária e regimes especiais: desafios na era da reforma

A reforma tributária promovida pela Emenda Constitucional 132/2023 trouxe à tona debates essenciais sobre neutralidade horizontal, livre concorrência, livre iniciativa e incentivos fiscais. Embora o objetivo seja a simplificação e a eficiência do sistema, persistem questionamentos sobre seus impactos no desenvolvimento regional e na competitividade entre os agentes econômicos.

A neutralidade tributária é um princípio fundamental para um sistema fiscal equitativo e pode ser analisada sob duas perspectivas. A neutralidade horizontal, associada ao princípio da isonomia (art. 150, II, CF/88), exige que bens e serviços idênticos ou similares sejam tributados de maneira equivalente, evitando distorções competitivas indevidas.

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Um exemplo clássico é a necessidade de alíquotas equivalentes para produtos e serviços similares, como um fogão e um corte de cabelo. Como destaca André Mendes Moreira,[1] a neutralidade tributária deve preservar a concorrência justa, evitando benefícios arbitrários. Já a neutralidade vertical refere-se à não cumulatividade, garantindo que o tributo pago em uma etapa da cadeia produtiva seja compensado na seguinte, prevenindo a incidência em cascata e assegurando que o peso tributário final recaia sobre o consumidor.

A livre concorrência, expressamente prevista no art. 170, IV, da CF/88, busca garantir um ambiente de mercado equilibrado, reduzindo interferências estatais indevidas. Para isso, as normas tributárias devem ser estruturadas de modo a evitar distorções competitivas causadas por benefícios fiscais excessivos. Isso porque, regimes tributários diferenciados podem criar vantagens artificiais, prejudicando a concorrência.[2]

Já a livre iniciativa assegura a autonomia dos agentes econômicos para atuar no mercado, respeitados os limites constitucionais, como a função social da propriedade e a proteção ambiental. No âmbito tributário, é essencial que a carga fiscal não iniba artificialmente a atividade produtiva.

Os incentivos fiscais, tradicionalmente utilizados para estimular setores estratégicos e reduzir desigualdades regionais, podem gerar distorções quando mal administrados.[3] A guerra fiscal entre estados exemplifica esse problema, ao conceder incentivos excessivos para atrair investimentos. Além disso, incentivos mal calibrados podem prejudicar a competitividade e acentuar a regressividade do sistema tributário.

A reforma tributária substitui o ICMS, ISS, PIS e Cofins por dois novos tributos, o Imposto sobre Bens e Serviços (IBS), de competência estadual e municipal, não cumulativo e com alíquota uniforme, salvo exceções constitucionais, e a Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS), tributo federal que adota os princípios de neutralidade e uniformidade.

A EC 132/2023 reforça diretrizes como neutralidade tributária, isonomia, justiça fiscal, simplicidade e transparência. O art. 156-A, §1º, X, da CF/88 veda concessões de benefícios fiscais que comprometam a concorrência, assegurando tratamento igualitário entre contribuintes em situações similares e respeitando a capacidade contributiva (art. 145, §1º, CF/88). Assim, além de reduzir a complexidade e os custos de conformidade, a reforma busca ampliar a segurança jurídica.

Entretanto, apesar da promessa de simplificação e neutralidade, a EC 132/2023 mantém regimes diferenciados e especiais, o que compromete a neutralidade horizontal. No contexto dos incentivos fiscais e desigualdades regionais, a Zona Franca de Manaus (ZFM) se destaca.

Criada para mitigar as desvantagens econômicas da Amazônia e fomentar investimentos e empregos (arts. 40 e 92-B do ADCT), a ZFM mantém benefícios como isenção de tributos federais (IPI, PIS/Cofins), créditos presumidos de IBS e CBS e alíquotas reduzidas. No entanto, sua existência pode gerar distorções ao privilegiar uma região em detrimento de outras igualmente carentes, como o Nordeste.

A EC 132/2023 ao centralizar a tributação no destino e vedar benefícios locais visou solucionar o problema decorrente da guerra fiscal, mas enfrenta resistência por restringir a autonomia federativa. Para atenuar esses impactos, foi criado o Fundo de Sustentabilidade e Diversificação Econômica, voltado à redução da dependência da ZFM de incentivos fiscais. No entanto, sua efetividade dependerá de uma regulamentação clara e da alocação de recursos consistentes.

A reforma enfatiza a neutralidade, reduzindo o uso da tributação como ferramenta de política extrafiscal. Contudo, essa abordagem, embora eficiente, pode se tornar excessivamente conservadora ao negligenciar desigualdades socioeconômicas. O Imposto Seletivo (IS), criado para incidir sobre bens prejudiciais à saúde e ao meio ambiente, ilustra essa tensão. Sua aplicação desigual pode comprometer a neutralidade, como no caso da manutenção de benefícios para refrigerantes na ZFM, o que contraria a lógica do tributo.

A neutralidade tributária é essencial para um sistema mais eficiente e equitativo. Assim, a transição para o novo modelo exigirá um equilíbrio, bem como a implementação de mecanismos compensatórios que garantam segurança jurídica e preservem a competitividade regional.


[1]MOREIRA, André Mendes. Neutralidade, valor acrescido e tributação. Belo Horizonte: Fórum, 2020.

[2] SCHOUERI, Luis Eduardo. Livre concorrência e tributação. In: Valdir de Oliveira Rocha. (Org.). Grandes questões atuais do Direito Tributário. São Paulo: Dialética. 2012.

[3] DERZI, Misabel Abreu Machado. Proteção da confiança e incentivos fiscais para o desenvolvimento: os problemas centrais que os projetos de reforma tributária propostos não resolvem. IBET, 2020.

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