A nova Lei de Contrato de Seguro e as operações internacionais

Depois de mais de 20 anos de tramitação no Congresso Nacional, alguns desentocam críticas à Lei 15.040/2024. Para maior reverberação, a simples Lei de Contrato de Seguro – objeto da crítica – tem sido promovida à Lei Geral de Seguros ou novo Marco Legal sobre Seguros, embora nela nem se diga quem pode ou não ser segurador ou tenha uma só linha sobre o delineio e o controle da atividade empresarial seguradora.

Entender e acolher uma lei contratual tão importante para a sociedade é coisa muito séria e, para isso, vamos ficar com os pés na terra e discuti-la sem ânimos ou preconceitos.

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Em primeiro lugar, precisamos conhecer o que, de fato, acontece no mercado: não há lei sem história.

O país reuniu muitas conquistas com a experiência e o conhecimento de mais de 60 anos de resseguro monopolizado pelo Instituto de Resseguros do Brasil (IRB). Nesse período, em função das atribuições legais do monopolista, a disponibilidade de seguros e as garantias oferecidas aos segurados brasileiros eram significativamente mais abrangentes do que as encontradas hoje: com o poder de compra concentrado, certas restrições praticadas no mercado internacional para a periferia do capitalismo eram simplesmente desconhecidas no Brasil.

Por exemplo, os seguros de riscos de engenharia, que antes indenizavam amplamente os “danos materiais” provocados por um sinistro, como a inutilidade do bem resultante de erro de montagem, assim que o monopólio acabou passaram a se restringir à reparação do “dano físico à propriedade tangível”. Além disso, as prorrogações, que eram automáticas, passaram a ser mais difíceis do que a própria contratação de um seguro novo.

A privatização do mercado de resseguro, que evidentemente modela os “produtos” do mercado segurador, foi feita sem o cuidado de cristalizar, em texto de lei, as boas práticas brasileiras, garantindo o amplo acesso e a qualidade mínima dos seguros. Os ventos da liberdade e da abertura do mercado acabam por carreá-los lentamente – muito em função da nossa típica disposição de exaltar o resseguro forasteiro, mesmo quando internam ideias fora do lugar.

A piorar esse cenário, logo antes da abertura ex lege do mercado em 2007, o direito positivo piorou no capítulo do Código Civil de 2002 que regulava o contrato de seguro. No geral, o Código Civil atual é mais antiquado do que o de 1916 no capítulo de seguro, regredindo em vários aspectos que já haviam sido superados na prática comercial originada na normatização que competia ao IRB e na jurisprudência.

Os exemplos multiplicam-se, mas vale citar o atual art. 759, que exige a forma escrita à proposta de seguro, e o art. 782, que traz uma regra de concorrência de apólices do tempo das grandes navegações. Ambas são solenemente ignoradas no cotidiano do mercado, por vezes contrariadas frontalmente pela regulamentação administrativa.

A LCS desenvolve um regime jurídico enxuto, se comparado às outras leis de contrato de seguro, voltado a fixar a estrutura mínima para o bom funcionamento de todos os contratos de seguro no Brasil. Suas regras, inspiradas em situações corriqueiras em seguros complexos – onde as insuficiências da regulação atual são mais evidentes –, na experiência internacional semelhante e nas boas práticas desenvolvidas no país, servem tanto para grandes quanto para pequenos seguros.

O problema é a ideologia ultraliberal que não se cora em dizer que os contratos de seguro de grandes riscos são pactuados livremente e escritos a quatro mãos. Isso é falso, vem da inexperiência ou da desabrida mentira. Nem as seguradoras conseguem, elas próprias, escrever livremente suas apólices, sempre devendo obedecer às linhas mestras impostas pelos seus resseguradores. O mercado funciona assim, no Brasil e no mundo, em função da necessidade econômica de padronizar os riscos garantidos. Seguros taylor made, vêm com pequenos ajustes e, no fundo, acrescem botões, rendas, broches ou adornos.

Em segundo lugar, as soluções trazidas por uma lei desse porte, vista e revista por vinte anos, não são elaboradas sem problemas concretos que o justifiquem.

Da época do monopólio não se tem notícia de qualquer segurado brasileiro sendo levado a participar de uma arbitragem no exterior. O próprio IRB, apesar do gigantismo operacional, também não tinha essa experiência.

Desde a abertura do mercado ressegurador, a experiência concreta com a arbitragem no seguro tem sido bastante negativa. No nível do seguro, quase nada é arbitrado. Nos raríssimos em que há cláusula compromissória, ela tende a ser resultado de interferência do ressegurador – por vezes, esquecem-se até de trocar as partes de um contrato para outro e se lê ainda, na maioria das cláusulas de apólices de seguro as expressões “seguradora cedente” e “ressegurador”.

Nessas situações patológicas, elegem-se como sede da arbitragem cidades como Miami, Londres, Nova York, Paris ou Bruxelas, a ser feita em inglês, como forma de pressão econômica e cultural contra o segurado para se chegar a uma solução menos favorável ou conquistar vantajosa composição. A aplicação concreta dessas cláusulas compromissórias no momento do grande sinistro não raramente é a ameaça de um relatório de regulação desastroso em caso de resistência. Uma “condenação” a culpa grave ou dolo pelo sábio mercado segurador especialista em acidentes é a porta para o inferno.

E nem se diga que isso se dá por causa da falta de experiência com o país dos resseguradores internacionais, sem os quais dificilmente se concedem garantias elevadas no mercado brasileiro hoje. Nos contratos de resseguro sujeitos à lei brasileira, cláusulas compromissórias são frequentes, e, em regra, adota-se como sede o Rio de Janeiro e se aplica lei brasileira.

Chega-se ao absurdo de se arbitrar em Londres em inglês uma disputa entre segurado e sua seguradora e, se houver conflito com o ressegurador na hora do pagamento da cota que lhe cabe (recuperação ressecuritária), a disputa acaba arbitrada no Rio de Janeiro em português.

O mesmo vale para a disciplina da regulação de sinistro: a atividade de apuração das causas e das circunstâncias do sinistro avisado para que a seguradora decida se o fato é coberto pelo contrato de seguro e liquide o valor devido ao segurado lesado. Outrora transparentes e ajustados com os segurados e beneficiários, hoje em dia, não há, na prática, qualquer compartilhamento ou limite temporal para a conclusão desses trabalhos.

Isso quando reguladores de sinistro estrangeiros não dizem que regularão determinado sinistro segundo o wording do resseguro e não o texto da apólice em português, pois manda quem pode e obedece quem tem juízo.

Em terceiro lugar, uma lei de contrato de seguro é a principal entre as diversas fontes das normas que disciplinam as operações contratuais de seguro no país.

Muitas das limitações presentes na LCS, como a definição dos contratos sujeitos à norma, simplesmente refletem restrições associadas às operações das companhias seguradoras no Brasil, reguladas pelo Decreto-Lei 73/1966 e pela Lei Complementar 126/2007. Nessa capacidade, essas leis são leis complementares por força do art. 192 da Constituição. A LCS, ordinária e focada especificamente no contrato de seguro, nem poderia pretender mudar a política de seguros do país.

De todo modo, as restrições relacionadas à contratação de seguro no exterior e à escolha da lei na arbitragem não são bem compreendidas se fingirmos que o seguro é apenas de um negócio entre particulares. Seguro não é compra e venda de mercadoria.

Sem normas como essas, a capacidade dos órgãos regulador e fiscalizador do mercado brasileiro de exercerem suas competências sobre as operações realizadas no Brasil é bastante limitada. Não esqueçamos que o seguro é, fundamentalmente, uma promessa jurídica. Sem poder interferir no conteúdo do contrato, não é possível garantir a solvência das seguradoras e assegurar o conteúdo mínimo do seguro para preservar a utilidade ao segurado – as duas finalidades típicas da regulação do mercado segurador.

Fiquemos no exemplo da escolha da lei na arbitragem. Suponhamos que uma seguradora brasileira, ao ofertar ao mercado um seguro de responsabilidade civil, pretenda que, em seu contrato, qualquer disputa será solucionada por um tribunal arbitral que aplicará indiscriminadamente o direito alemão.

Como fica o atendimento das regras impostas ao mercado por força das Circulares Susep 621/2021, que estabelece regras gerais para os seguros de dano, 637/2021, que fixa o conteúdo mínimo dos seguros de responsabilidade, 642/2021, que fixa regras básicas sobre a formação do contrato? Isso, é claro, para não dizer da dificuldade de se qualificar esse contrato à luz da ramos impostos pela Circular Susep 682/2022 para fins de contabilização e da complexidade de se fiscalizar a constituição de provisões técnicas a respeito dessas operações.

Como se pode perceber, sem a obrigatoriedade da lei brasileira, o controle da Susep e do CNSP a respeito das operações brasileiras, até do ponto de vista prudencial, desaparece. Novamente: não estamos falando de compra e venda de mercadoria.

Apesar disso, nas operações verdadeiramente internacionais, as restrições da LCS serão facilmente administradas – até porque são as mesmas com que convivemos, sem dificuldades, desde, no mínimo, a LC 126/2007.

De partida, a lei brasileira pode nem ser a aplicável, segundo as regras do direito internacional privado. Não se pode esquecer que, na maioria esmagadora dos casos, quem faz a oferta é o segurado, não a seguradora. Remetendo-se uma proposta de seguro no estrangeiro, a lei de regência não será a brasileira por força do art. 9º, §2º, da LINDB.

Nesse contexto, uma solução corriqueira é a contração de um seguro para a matriz associada às perdas financeiras resultantes do sinistro na subsidiária local. Trata-se da cláusula de interesse financeiro em apólices globais.

Ainda que o direito brasileiro seja aplicável, o art. 20 da LC 126/2007 não tem sido qualquer empecilho à estruturação das operações de seguro no Brasil para empresas internacionais.

Nos programas globais de seguro, a solução mais frequente é adotar-se um sistema dúplice. De um lado, uma apólice local, emitida por uma seguradora autorizada a operar no Brasil com as condições usualmente praticadas por aqui. De outro, uma apólice global, emitida por uma seguradora autorizada no local da matriz, com cláusulas voltadas a colmatar lacunas na proteção local (e.g., cláusulas DIC e DIL). Essa solução é absolutamente consolidada no mercado internacional – não se trata de uma jabuticaba.

Hoje em dia, o mercado de seguro brasileiro é totalmente integrado ao mercado internacional, especialmente nos seguros complexos. No período imediatamente subsequente à quebra do monopólio, os grandes grupos financeiros do país venderam suas operações de riscos vultosos a grupos estrangeiros: Mapfre, Tokio Marine, Chubb, Zurich e AIG, para citarmos algumas “novas” entrantes, dominam, em absoluto, o setor.

Com empresas desse tipo, a coordenação de uma apólice local com uma apólice global é bastante simplificada. Apesar disso, existem seguradoras que, mesmo não operando no Brasil, oferecem garantias às subsidiárias locais em seus programas globais através de companhias seguradoras locais parceiras. Um caso que vem à mente é a FM Global. Mesmo nessas hipóteses, a operação ocorre sem dificuldades.

Por fim, vale lembrar o óbvio: qualquer lei, para ser bem-sucedida, depende de intérpretes dispostos a conhecê-la de verdade, sem preconceitos vulgares, e aplicá-la com razoabilidade, desenvolvendo suas soluções de forma consistente com a história e as finalidades da lei, harmonizando suas aparentes contradições e preenchendo suas eventuais lacunas.

Se formos capazes de fazer isso, a expectativa é que o mercado duplique de tamanho com a nova lei, como projetaram cautelosamente tanto o governo federal quanto instituições independentes como a Fipecafi.

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