O ex-ministro Delfim Netto dizia que “capital é como água; sempre flui por onde encontra menos obstáculos”. Espera-se comportamento uníssono, previsível e coerente da Administração Tributária, mas aparentemente não é o que vem ocorrendo com a exclusão das multas nos casos em que a discussão no Carf é encerrada por voto de qualidade.
A Lei 14.689/23, fruto de um acordo entre Ministério da Fazenda, Congresso, OAB e empresários do Esfera[1], representou uma solução intermediária entre os contribuintes, que buscavam a manutenção do desempate em seu favor — até então vigente o art. 19-E da Lei 10.522/02 —, e o fisco, que pressionava pelo retorno do voto de qualidade, ou seja, a prevalência do entendimento do presidente de Turma, um auditor fiscal, em caso de empate.
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No Legislativo, prevaleceu a tese de que o empate indica dúvida objetiva e razoável acerca da correta interpretação da legislação, merecendo um tratamento próprio. Como solução de meio do caminho, o Congresso reinstituiu o voto de qualidade, mas concedeu contrapartidas aos casos assim decididos. Dentre outros benefícios, o texto legal prevê, literalmente, que “ficam excluídas as multas (…) na hipótese de julgamento de processo administrativo fiscal resolvido favoravelmente à Fazenda Pública pelo voto de qualidade”.
Perceba-se que a expressão é empregada no plural, com artigo definido e sem qualquer restrição sobre o mérito da discussão. Excluem-se as multas; quais multas? Todas, ora.
No entanto, apenas 20 dias após a publicação da Lei, a PGFN já orientava que o Procedimento de Revisão da Dívida Inscrita (PRDI) faria a exclusão “de” multas — artigo indefinido não empregado pela Lei —, quais sejam, apenas as multas de mora e de ofício:
Neste caso, segundo determina o art. 15 da Lei 14.689/2023, haverá a exclusão de multas e deverá ser cancelada a representação fiscal para fins penais.
ATENÇÃO! Apenas a multa de mora, prevista no art. 61 da Lei 9.430/1996, e multa de ofício, prevista no art. 44 da Lei 9.430/1996, serão canceladas.[2]
Na sequência, por ocasião do Parecer SEI 943/24/MF, a PGFN esclareceu que a norma supostamente não abarcaria multas autônomas (isoladas ou aduaneiras). Além disso, multas isoladas lançadas cumulativamente à multa de ofício só seriam excluídas caso a discussão específica sobre a multa isolada seja votada pelo voto de qualidade. Como se vê, a PGFN fatiou a norma e restringiu o seu alcance sem qualquer previsão legal.
A Receita Federal, por sua vez, regulamentava a norma por meio da IN 2.167/23, revogada meses depois, e que assim dispunha:
- 1º Fica excluída a multa decorrente de infração mantida por voto de qualidade e cancelada a representação fiscal para os fins penais de que trata o art. 83 da Lei nº 9.430, de 27 de dezembro de 1996, na hipótese prevista no caput.
A expressão era então empregada no singular e restringia-se à exclusão da multa decorrente da infração, ao contrário do previsto em lei. Nesse caso, a multa de mora, cujo bem jurídico tutelado é o pagamento tempestivo, seria mantida? É o que veio a ocorrer com diversos contribuintes, sob alegação de que a multa de mora serve apenas para punir o atraso no pagamento e não decorre propriamente da infração, como decorrem as multas de ofício e isolada, o que mais uma vez demonstra certa reticência em aplicar o texto legal.
Vale recordar que o STF, em diversas ocasiões, já se manifestou no sentido de que a multa de mora, como qualquer outra, também tem natureza punitiva. Cite-se, ad exemplum, a decisão proferida no tema 214, na qual afirmou-se que “aplicação da multa moratória tem o objetivo de sancionar o contribuinte que não cumpre suas obrigações tributárias“.
Na regulamentação mais atual sobre o tema, IN RFB 2205/24, a Receita expandiu o horizonte das multas a serem excluídas, alinhando-se ao já mencionado Parecer PGFN. Contudo, ainda assim algumas hipóteses continuam controversas entre os órgãos, como a aplicabilidade dos benefícios a casos decididos pelo voto de qualidade antes de 12/01/2023, que é vedada pela RFB e permitida pela PGFN[3], desde que não tenha ocorrido julgamento definitivo de mérito pelo respectivo TRF (art. 15 da Lei 14.689/23). Veja-se na redação da IN RFB 2205/24:
Art. 4º Os efeitos previstos no art. 2º não se aplicam às decisões proferidas pelo Carf, por voto de qualidade, que se tornaram definitivas anteriormente a 12 de janeiro de 2023.
Ademais, tanto PGFN quanto RFB seguem negando os benefícios quando o voto de qualidade ocorre na discussão de direito creditório, decadência, responsabilidade tributária, multas aduaneiras e multas de mora, sem que nada disso esteja previsto em lei. Essa interpretação equivocada traz um vício da antiga Portaria ME nº 260/20, que vedava a aplicação do desempate pró-contribuinte às mencionadas discussões e que vem sendo recorrentemente declarada ilegal pelo Judiciário[4] por extrapolar o poder regulamentar.
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Portanto, seja na RFB ou na PGFN, as regulamentações do Executivo estão restringindo, ilegalmente, a aplicação da norma em sua redação original, a qual foi devidamente debatida no Congresso Nacional e sancionada pelo presidente da República para que sejam excluídas toda e quaisquer multas lançadas junto da obrigação principal, desde que objeto de decisão por voto de qualidade.
O cenário exige uma postura altiva em defesa dos contribuintes, a fim de não relegá-los à total insegurança jurídica na interpretação da legislação tributária. Se mundo afora os advogados agregam valor como “engenheiros de custos de transação”[5], os tributaristas brasileiros se assemelham ao engenheiro… civil. Seguiremos removendo as pedras que bloqueiam o fluxo de capital para o país!
[1] Esfera Brasil: Fazenda acata sugestões da Esfera para emenda à MP do Carf. Acesso em: 30/05/2025
[2] PGFN: Revisão de Dívida Inscrita (PRDI) para adequação à Lei nº 14.689, de 2023 (voto de qualidade do CARF). Acesso em 30/05/2025.
[3] Sobre o tema, ver MS nº 5004719-30.2024.4.03.6126 e MS nº 5004721-97.2024.4.03.6126.
[4] Vide acórdão do TRF-5 no MS nº 0806424-56.2024.4.05.8100, do TRF-4 no MS nº 5011427-62.2021.4.04.7100/RS e sentença da 16ª VFRJ no MS nº 5075609-89.2024.4.02.5101. Sobre a ilegalidade da IN RFB nº 2.205/24, em especial na discussão de Pedidos de Compensação (DCOMP), ver: decisão monocrática do TRF-6 no MS nº 6000027-95.2025.4.06.0000 e liminar da 14ª VFSP no MS nº 5009254-46.2025.4.03.6100.
[5] Gilson, Ronald J., Lawyers as Transaction Cost Engineers, 1997. Acesso em 30/05/2025.