Entre IOF e reforma da tributação das aplicações financeiras

O governo federal publicou, na última quarta-feira (11), em edição ordinária do Diário Oficial, duas normas que, à primeira vista, pareciam apenas reorganizar o sistema tributário em torno de operações financeiras. Mas o que veio à tona, com o Decreto 12.499 e a Medida Provisória 1.303, foi algo mais profundo: uma política fiscal orientada por urgência arrecadatória, sem debate, sem transição, sem estratégia de longo prazo.

O decreto manteve a alíquota de IOF-Câmbio em 3,5% para a maior parte das remessas internacionais. Essa alíquota passou a incidir inclusive sobre transferências entre contas de mesma titularidade mantidas no Brasil e no exterior, que até então eram tributadas a 0,38%.

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Foram exceções apenas as remessas destinadas à aquisição de participação societária em empresas no exterior, como no caso de aportes em offshores, que passaram a ser tributadas a 1,1%, e as operações de repatriação de investimento estrangeiro registrado, que seguem isentas. O que antes era um imposto com função regulatória agora se consolida como instrumento arrecadatório. A sinalização é inequívoca: no Brasil, o IOF é utilizado para fechar contas, e não para moderar fluxos cambiais.

Além disso, o decreto ampliou o alcance do IOF a operações como antecipação de recebíveis e aquisição primária de cotas de FIDC. Nessas operações, a alíquota passou a ser de 0,38% no ato da subscrição. No caso do risco sacado, que é uma forma de crédito estruturado muito comum no mercado, a alíquota fixa caiu de 0,95% para 0,38%, mas foi mantida a cobrança adicional de IOF diário de 0,0082%, proporcional ao prazo da operação.

A alteração não reduz a carga tributária total, apenas redistribui o peso entre o início e o tempo da operação. O efeito prático é penalizar as operações de prazo mais longo e manter o encargo elevado para as empresas que dependem desse tipo de estrutura para financiar seu capital de giro.

Também foi alvo do novo IOF o seguro de vida com cobertura por sobrevivência, como o VGBL. As novas regras isentam aportes de até R$ 300 mil por seguradora em 2025, e até R$ 600 mil a partir de 2026. Acima desses valores, incide IOF de 5% apenas sobre o excedente. Apólices contratadas por empresas para seus funcionários permanecem isentas, mas as contratadas por pessoas jurídicas em nome próprio não se beneficiam da regra. A consequência é uma restrição nada transparente ao planejamento financeiro de longo prazo.

Na sequência, a Medida Provisória 1.303 atingiu de maneira ainda mais ampla o mercado de investimentos e crédito privado. A tabela regressiva do imposto de renda foi extinta. A partir de agora, aplica-se uma alíquota única de 17,5% sobre os rendimentos de aplicações financeiras, independentemente do prazo de permanência. Essa mudança ignora um princípio elementar da política de poupança: premiar o investidor que pensa no longo prazo. Ao tributar igualmente quem mantém um ativo por três meses ou por dez anos, a norma desincentiva a previsibilidade e favorece a especulação.

Além disso, a MP revogou a isenção de instrumentos que foram concebidos justamente para fomentar áreas estratégicas da economia. Letras de Crédito Imobiliário (LCI), Letras de Crédito do Agronegócio (LCA), Certificados de Recebíveis Imobiliários (CRI), Certificados de Recebíveis do Agronegócio (CRA), Cédulas de Produto Rural (CPR), Letras Garantidas e Debêntures Incentivadas passam a ser tributadas à alíquota de 5%.

A regra vale apenas para emissões com liquidação a partir de 1º de janeiro de 2026. Mas a sinalização é clara: o governo desmonta, por razões fiscais, uma política de financiamento que funcionava. As LCI e LCA sustentam o crédito imobiliário e rural com base em funding privado. As CRA, CRI e CPR viabilizam o financiamento de cadeias produtivas inteiras. As Debêntures Incentivadas foram o principal instrumento de fomento à infraestrutura na última década. Ao retirar sua vantagem tributária, o governo encarece o crédito de base, repassa custo ao tomador e desestimula a emissão desses papéis. O impacto se espalha, encarece o metro quadrado, desestimula o pequeno produtor, prejudica o setor de construção civil..

No setor de tecnologia financeira, a MP também retirou um diferencial que havia sido cuidadosamente desenhado. A Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL) das fintechs foi elevada de 9% para 15%, equiparando-as aos bancos tradicionais.

A medida ignora as diferenças de estrutura, margem e modelo de negócios. Fintechs operam com menos capital, atendem nichos menos bancarizados e fomentam inclusão financeira. Ao tratá-las como bancos sob o ponto de vista tributário, o governo comprime a inovação e empurra essas empresas para margens de risco incompatíveis com sua escala. O resultado é perda de competição e concentração bancária.

No campo das apostas, a MP elevou a tributação de 12% para 18%, sob o argumento de interesse sanitário. Só que o imposto seletivo, que seria o instrumento adequado para tratar externalidades como essa, ainda não foi regulamentado. O que se pratica, então, é um aumento de carga sob justificativa genérica, sem lastro em política pública de saúde nem vinculação orçamentária do tributo.

Outros segmentos também foram afetados. Fundos Imobiliários e Fiagros passam a ter os rendimentos tributados à alíquota de 17,5%, podendo ser reduzida para 5% no caso de fundos com mais de 100 cotistas e cotas negociadas em bolsa. Na alienação das cotas, aplica-se a regra de ganho de capital com alíquotas progressivas, mas a isenção de R$ 20 mil mensais só se aplica a pessoas físicas e fundos listados. A política, que antes favorecia o investidor de longo prazo e a democratização da renda passiva, agora se torna menos atraente para o público geral.

A tributação de ativos virtuais também foi remodelada. A MP determinou que rendimentos em criptoativos obtidos por meio de entidades de investimento, inclusive no exterior, passarão a ser tributados à alíquota de 17,5%, com retenção na fonte. No entanto, a norma não explica quem fará essa retenção quando a entidade estiver fora do Brasil, nem como se aplicará o mecanismo nos casos em que o investidor acessa essas estruturas por corretoras internacionais.

E mais: essa regra entra em conflito direto com a Lei 14.754, sancionada no ano anterior, que fixou alíquota de 15% para aplicações financeiras no exterior por pessoas físicas, no regime de caixa e com autodeclaração. A MP não revoga nem altera a lei anterior, mas cria uma duplicidade normativa que o investidor terá que resolver por sua conta e risco. A segurança jurídica, como sempre, foi a última a ser consultada.

Por fim, a nova regra também afetou os investidores estrangeiros. Aplicações em renda fixa e fundos passam a ser tributadas à alíquota de 17,5%, sem possibilidade de compensação. Apenas investimentos em ações listadas e debêntures não conversíveis continuam isentos, desde que o investidor não esteja domiciliado em país com tributação favorecida. A consequência é a redução do diferencial de atratividade do Brasil como destino de capital financeiro, num momento em que o mundo volta a disputar recursos com juros em alta e volatilidade crescente.

O que se vê, portanto, não é uma reforma tributária. É uma operação emergencial de aumento de carga, feita à revelia da técnica e da transparência. A arrecadação sobe, mas os custos sobem mais. O crédito encarece, o investimento recua, a confiança desaparece. E com ela, o horizonte de um país que se pretendia moderno, competitivo e financeiramente integrado. Em matéria tributária, como em tantas outras, o improviso custa caro.

E há ainda um ponto jurídico de fundo, muitas vezes ignorado no debate público: a Medida Provisória 1.303 não preenche os requisitos constitucionais de urgência e relevância. O simples desejo de cobrir um rombo orçamentário, por mais legítimo que seja, não autoriza o Executivo a editar normas que afetam a base do sistema financeiro e tributário, sem debate público e sem o devido processo legislativo.

A Constituição não autoriza medidas provisórias para tapar buraco de caixa. O que está sendo feito, na prática, é legislar por decreto e por medida provisória em matéria de alta complexidade, sob a roupagem de urgência fiscal. Mas a insegurança jurídica e a violação ao devido processo legislativo não se resolvem com justificativas desta ordem. Se a urgência é permanente e a relevância é fabricada, o resultado é um sistema tributário que oscila ao sabor da escassez.

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