Hodiernamente, é possível se observar, com perplexidade, um fenômeno de ascensão de governos populistas, de expansão de discursos de ódio, presenciais e virtuais, e de adoção de expedientes direcionados à discriminação de grupos minoritários.
Exemplo disso são as ordens executivas editadas no início do segundo mandato de Donald Trump com o intuito de erradicar a chamada “ideologia de gênero”, deportar imigrantes e proibir empresas sediadas nos Estados Unidos de adotarem programas de diversidade, equidade e inclusão, ao fundamento de serem ilegais.[1]
No Brasil, relatório da Fundação Getulio Vargas constatou que, no período de 2019 a 2023, foram propostos ao menos 60 projetos de lei com conteúdo antitrans na Câmara dos Deputados. Essas propostas, originadas majoritariamente por iniciativa de parlamentares pertencentes a grupos dominantes (homens brancos e cristãos), dispõem sobre vedação de linguagem não binária, proibição de participação de mulheres trans em competições esportivas e imposição de obstáculos para cirurgias de transgenitalização e tratamentos hormonais.[2]
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O conjunto de estratégias, mecanismos jurídicos e expedientes institucionais que provocam uma erosão do regime democrático em sentido substancial pode ser definido como legalismo autoritário,[3] o qual tem impulsionado reações para proteger direitos de grupos vulnerabilizados, como o desenvolvimento de uma hermenêutica constitucional engajada na luta antidiscriminatória.[4]
Nesse cenário, a tutela jurisdicional de direitos fundamentais por cortes constitucionais tem sido um caminho de resistência de grupos subrepresentados politicamente para a promoção de justiça social. Minorias políticas passaram a explorar o litígio constitucional como estratégia na luta por direitos civis e sociais, de modo que o litígio estratégico – e demais formas de advocacy – passaram a ser ferramentas utilizadas por organizações não governamentais, instituições do sistema de justiça e movimentos sociais para empoderar comunidades e indivíduos, defender o Estado de Direito, promover os direitos humanos e buscar reparações a violações.[5]
Isso foi possível graças ao estabelecimento de normas com o escopo de instituir um sistema protetivo que anseia pela inclusão de grupos sociais tradicionalmente discriminados, por meio de expedientes que promovem a igualdade de status cultural e material entre diversos grupos.
As normas antidiscriminatórias, portanto, surgem com o objetivo de tutelar grupos vulnerabilizados contra vícios do processo político motivados pelo interesse na manutenção da dominação de certos grupos sobre outros.[6] Trata-se de normas que têm papel central na racionalização do poder político, na medida em que promovem a proteção da lógica democrática baseada na igualdade moral entre todos os membros da comunidade política.[7]
A identificação de comportamentos sociais e práticas institucionais que estão na origem da discriminação, e a elaboração de estratégias destinadas a combatê-los eficazmente – incluindo a elaboração de disposições regulamentares adequadas – são tarefas eminentemente políticas.
Porém, as literaturas filosófica-política e filosófico-jurídica recentes têm destacado como as políticas públicas têm falhado amplamente em atingir esses objetivos. Por essa razão, decisões de tribunais e cortes de justiça têm elaborado sínteses interpretativas progressivas e inovadoras em matéria de antidiscriminação.[8]
A defesa da força normativa da Constituição[9] por meio da atuação de juízes,[10] que implementam comandos constitucionais com o objetivo de realizar as transformações sociais idealizadas em textos normativos, exsurge como uma das consequências da corrente jus-filosófica do constitucionalismo transformador, de origem sul-africana[11] e voltada à promoção de justiça social em países marcados por grandes desigualdades materiais e culturais, onde o reconhecimento de direitos no plano da normatividade não foi suficiente para a construção de uma sociedade mais igualitária.[12]
O constitucionalismo transformador, portanto, propõe uma leitura prospectiva dos comandos constitucionais, determinando que o desenho constitucional dos direitos e garantias fundamentais, bem como da estruturação e definição das competências dos poderes estatais esteja pautado pela realização de um ideal transformador.[13]
Esse movimento tem sido extremamente relevante na prática do contencioso constitucional brasileiro, ainda que não haja suficiente aprofundamento sobre o tema na literatura acadêmica nacional.
Há fartos precedentes do Supremo Tribunal Federal (STF) em que a Corte, por meio de decisões judiciais construtivistas, adjudicou direitos fundamentais a grupos minoritários, como:
- o acórdão que reconheceu a união estável homoafetiva (ADI 4.277, relator ministro Ayres Britto);
- a decisão que determinou a aplicação de incentivos às candidaturas negras na política (ADPF 738, relator ministro Ricardo Lewandowski);
- o julgamento que assentou a inconstitucionalidade da tese da legítima defesa da honra, por afrontar a igualdade de gênero (ADPF 779, relator ministro Dias Toffoli);
- os julgados que determinaram a adoção imediata de expedientes para salvaguardar pessoas em situação de perigo, como os indígenas durante a pandemia de Covid-19 (ADPF 709, relator ministro Roberto Barroso); e
- população em situação de rua, especialmente durante o inverno (ADPF 976, relator ministro Alexandre de Moraes).
Além desses casos, o STF julgou a Ação Direta de Inconstitucionalidade 5.668, de relatoria do ministro Edson Fachin, em que se postulava uma interpretação conforme à Constituição a dispositivo do Plano Nacional de Educação (Lei 13.005/2014), a fim de reconhecer a obrigação de escolas públicas e privadas em combater discriminações por gênero, por identidade de gênero e por orientação sexual.
Ao apreciar o caso, a Corte julgou procedente a demanda, assentando que o Estado deve agir positivamente para a concretização de políticas públicas, incluídas as de cariz social e educativo, voltadas à promoção de igualdade de gênero e de orientação sexual.
Nesse julgamento, o tribunal ainda assentou que o direito à educação deve estar orientado para assegurar o pluralismo de ideias e coibir toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão, motivo pelo qual as escolas devem reprimir o bullying e as discriminações de cunho machista contra meninas e homotransfóbicas, que afetam gays, lésbicas, bissexuais, travestis e transexuais.
Essa decisão é bastante relevante como meio para transformação social de contextos marcados pela desigualdade cultural. Isso porque uma formação dos estudantes, desde jovens, sobre o respeito à diversidade e à pluralidade, tem o condão de contribuir para que eles sejam agentes sociais mais conscientes e capazes de compreender e questionar sistemas de subjugação.
Outro julgado bastante importante foi o Mandado de Injunção 7.452, relator ministro Alexandre de Moraes, em que a Corte ampliou o nível de proteção da lei de combate à violência doméstica contra mulheres da Lei Maria da Penha, para que se aplique também a casais homoafetivos do sexo masculino, travestis e transexuais.
Em um quadro fático em que o Brasil é recorrentemente classificado como o país mais violento do mundo contra a população LGBTQIA+,[14] essa decisão é essencial para auxiliar a construir uma sociedade mais justa e implementar o projeto constitucional de transformação social.
Diante dessas reflexões, percebe-se que a Justiça Constitucional pode ser uma via efetiva para a concretização de direitos civis e sociais de grupos vulnerabilizados. No contexto brasileiro, decisões paradigmáticas do Supremo Tribunal Federal, em geral, têm contribuído para o projeto de transformação social previsto da Constituição para reduzir as desigualdades sociais e promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.
[1] UNITED STATES OF AMERICA. The White House. Ending Radical and Wasteful Government DEI Programs and Preferencing. Disponível em: < https://www.whitehouse.gov/presidential-actions/2025/01/ending-radical-and-wasteful-government-dei-programs-and-preferencing/>. Acesso em 12/05/2025.
[2] FABRIS, Ligia. GIUSTI, Victor. SAAB, Beatriz. Desinformação, conservadorismo e narrativas transfóbicas orientam projetos de lei com conteúdo antitrans entre 2019 e 2023. FGV Direito Rio. Disponível em <https://midiademocracia.fgv.br/node/103>. Acesso em 15/5/2025.
[3] VIEIRA, Oscar Vilhena. PIMENTA, Raquel. SILVA, Fabio de Sá. MACHADO, Marta. Estado de Direito e Populismo Autoritário: erosão e resistência institucional no Brasil (2018-2022). São Paulo: Editora FGV, 2023.
[4] CARVALHO FILHO, José S. Discriminação indireta e justiça constitucional. Disponível em: <https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/observatorio-constitucional/discriminacao-indireta-e-justica-constitucional >.
[5] OSORIO, Leticia Marques. Litígio Estratégico em Direitos Humanos: Desafios e Oportunidades para Organizações Litigantes. In: Revista Direito e Práxis, v. 10, n. 1, mar./2019, p. 571-592.
[6] MOREIRA, Adilson José. Tratado de direito antidiscriminatório. Contracorrente: São Paulo, 2020, p. 267.
[7] ELY, John Hart. Democracy and distrust. A theory of judicial review. Cambridge: Harvard University Press, 1980, pp. 135-181.
[8] CONSIGLIO, Elena. Che cosa è la discriminazione? Un introduzione teorica al diritto antidiscriminatorio. Giappichelli: Torino, 2020, p. 6.
[9] HESSE, Konrad. A força normativa da constituição. Trad. Gilmar Ferreira Mendes. Imprenta: Porto Alegre: Fabris, 1991.
[10] LIEBENBERG, Sandra. Socio-economic rights: adjudication under a transformative constitution. Claremont: Juta, 2010, p. 25-27.
[11] KLARE, Karl. E. (1998). Legal Culture and Transformative Constitutionalism. In: South African Journal on Human Rights, 14 (1), 23/mar/2017, p. 146–188.
[12] MELLO, Patrícia Perrone Campos. Constitucionalismo, transformação e resiliência democrática no Brasil: o Ius Constitucionale Commune na América Latina tem uma contribuição a oferecer? In: Revista Brasileira de Políticas Públicas. V. 9, n. 2, ago/2019, p. 252-283.
[13] OLSEN, Ana Carolina Lopes. Efetivação dos direitos fundamentais sociais pela jurisdição constitucional e as contribuições do constitucionalismo transformador. In: Clèmerson Merlin Clève(Org). Direito Constitucional Brasileiro: Teoria da Constituição e Direitos Fundamentais. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2022.
[14] BRASIL, Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada. Atlas da Violência 2025. Disponível em: <https://www.ipea.gov.br/atlasviolencia/arquivos/artigos/1321-atlasdaviolencia2025.pdf>. Acesso em 14/5/2025, p. 86.