Navio de Teseu e a reforma do Código Civil

Segundo a lenda, o navio usado por Teseu, herói grego que matou o Minotauro, foi preservado pelos atenienses como um monumento. Com o tempo, suas partes de madeira foram sendo substituídas uma a uma — tábuas, mastros, velas — à medida que se deterioravam. Eventualmente, nenhuma peça original restou.

O questionamento que surge é: esse ainda é o mesmo navio de Teseu? E se alguém tivesse guardado todas as peças originais e as remontasse em outro lugar, qual seria o verdadeiro navio de Teseu?

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A proposta de reforma do Código Civil brasileiro, apresentada pelo PL 4/2025, representa a mais ambiciosa tentativa de revisão legislativa desde a promulgação do código atual, em 2002. Mais de 50% dos artigos do Código Civil atual sofreriam alteração: 1.122 dos 2.046 artigos da versão atual da lei.

Com todas as alterações, será o mesmo Código Civil?

Contextualização da reforma: diagnóstico, justificativas e processo de elaboração

Com alterações projetadas para mais da metade dos dispositivos vigentes, o projeto reflete uma tentativa de alinhamento entre o Direito privado e os novos desafios sociais, econômicos e tecnológicos do século 21.

As justificativas para a reforma partem do diagnóstico de que o código atual, embora relativamente recente, já apresenta defasagens significativas em relação à realidade contemporânea. Desde 2002, o Brasil assistiu à consolidação de novos arranjos familiares, à disseminação de bens digitais, à popularização da economia de dados, à reconfiguração das relações contratuais em ambiente virtual e ao avanço exponencial das biotecnologias.

O processo de elaboração do anteprojeto, todavia, levanta preocupações quanto à sua celeridade. Conduzido em apenas oito meses, o trabalho da comissão envolveu a realização de audiências públicas e a recepção de cerca de 280 propostas de entes da sociedade civil, o que, apesar de indicar uma tentativa de diálogo institucional, não afasta críticas sobre a profundidade do debate promovido.

Em comparação com reformas anteriores – como a do próprio código de 2002, que levou mais de duas décadas para ser consolidada – o novo projeto parece avançar em ritmo descompassado com a complexidade dos temas enfrentados.

Portanto, a contextualização da proposta revela tanto a relevância do projeto quanto suas fragilidades estruturais. Se, por um lado, há uma necessidade legítima de atualização do Código Civil, por outro, essa tarefa exige cautela metodológica, análise interdisciplinar e amplo debate público.

Principais inovações propostas: modernização ou risco à coerência sistêmica?

A proposta de reforma do Código Civil inclui uma série de inovações que buscam responder às transformações sociais e tecnológicas das últimas décadas. Entre os destaques, está a criação de um novo livro dedicado ao Direito Civil Digital, um marco normativo que pretende regular heranças digitais, contratos eletrônicos, direitos de personalidade em ambientes virtuais e o uso de inteligência artificial.

Essa medida é inovadora ao reconhecer que o ambiente digital não é mais um fenômeno periférico, mas será que o Código Civil era o melhor lugar para debater o tema?

No âmbito do Direito de Família, a proposta introduz o conceito de “família parental”, para abranger arranjos familiares compostos por parentes que compartilham afeto, responsabilidades e convivência, mesmo sem vínculo conjugal.

Essa mudança reflete uma tentativa de ampliar a proteção jurídica a modelos de família não tradicionais, alinhando-se a decisões recentes do STF e do STJ que reconhecem a pluralidade familiar como expressão da dignidade da pessoa humana.

Além disso, a proposta trata da herança digital, regulamentando a transmissão de bens imateriais como senhas, perfis em redes sociais e moedas digitais. A ideia é garantir que esse patrimônio, cada vez mais relevante economicamente e afetivamente, não fique desprovido de regulação.

Críticas e controvérsias: entre o populismo jurídico e a complexidade normativa

A tentativa de resolver problemas reais com soluções apressadas pode resultar em efeitos colaterais graves, como a ampliação da insegurança jurídica e o estímulo à litigiosidade.

Outro ponto de crítica diz respeito à metodologia adotada pela comissão de juristas. O trabalho foi concluído em apenas oito meses, prazo que se revela exíguo para uma proposta que altera mais da metade do texto vigente.

Grandes reformas exigem não apenas tempo, mas também estudos interdisciplinares, simulações de impacto, diálogo contínuo com a jurisprudência e envolvimento real da comunidade acadêmica. O risco é que o novo código se torne uma colcha de retalhos desconexa, sem articulação interna e sem vocação à estabilidade.

O Código Civil não pode ser mero repositório de tendências culturais momentâneas; ele precisa ser, acima de tudo, um instrumento de racionalização e previsibilidade. Como um mapa que orienta uma viagem longa, ele deve oferecer segurança nas direções indicadas, mesmo que o terreno por vezes mude.

Necessidade de debate e maturação: o  tempo como elemento estrutural da boa legislação

A experiência brasileira com a reforma anterior — o Código Civil de 2002 — serve como exemplo emblemático. Foram mais de 25 anos de debates, propostas, pareceres e intensas discussões nas universidades, nos tribunais e no Congresso Nacional. O resultado foi um texto relativamente consensual, com forte densidade técnica e alto grau de aceitação.

Além disso, o tempo também permite a ampliação do debate democrático. Embora a comissão de juristas tenha promovido audiências públicas e recebido sugestões da sociedade civil, o processo ainda carece de ampla participação das entidades de classe, universidades, operadores do Direito e movimentos sociais.

Uma reforma extensa pode gerar impactos econômicos e sociais que, se não forem devidamente estudados, trarão insegurança jurídica e instabilidade contratual. Modificações no Direito sucessório, por exemplo, alteram expectativas patrimoniais de milhares de famílias.

Mudanças no conceito de família impactam políticas públicas, planos de saúde, benefícios fiscais e relações previdenciárias. Alterações nas regras sobre contratos digitais afetam diretamente o mercado, os consumidores e os prestadores de serviços. Nenhuma dessas transformações pode ser implementada sem análise prévia de seus reflexos sistêmicos.

⁠Conclusão e perspectivas: entre a atualização necessária e o risco de fragmentação normativa

O movimento de reforma do Código Civil brasileiro parte de uma necessidade legítima: atualizar o texto normativo à luz das transformações sociais, tecnológicas e culturais que marcaram o início do século 21.

Ninguém discute que as relações familiares se tornaram mais plurais, que os bens digitais ganharam valor econômico e afetivo ou que o cotidiano das pessoas passou a ocorrer em grande parte em ambientes virtuais. Esses fenômenos exigem respostas normativas e uma legislação sensível às mudanças. No entanto, responder ao novo não significa, necessariamente, romper com o sistema existente — sobretudo quando esse sistema oferece estabilidade e coerência jurídica.

É preciso, portanto, um duplo compromisso: modernizar com responsabilidade e preservar com inteligência. A técnica legislativa deve estar a serviço da justiça social, mas sem renunciar à segurança jurídica. O jurista não pode ser um mero escriba das tendências culturais.

O Direito privado brasileiro precisa, sim, de atualização, mas essa atualização deve ser feita com parcimônia, reflexão e diálogo institucional. O novo Código Civil que se pretende construir não pode ser apenas um produto do presente; deve ser, antes, um legado para o futuro.

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