No último dia 10 de maio, o portal G1 noticiou uma decisão judicial que proíbe financeiras de bloquearem celulares fornecidos como garantia em operações de crédito em caso de inadimplência por parte dos seus clientes.
A medida liminar da Justiça do DF suspende a prática de “garantia digital” ou “reserva de domínio tecnológica” adotada por fintechs e instituições financeiras para conceder crédito com base em um modelo inovador e escalável, que busca justamente reduzir os juros cobrados no mercado brasileiro — notoriamente um dos mais caros do mundo.
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Desnecessário dizer que são justamente essas fintechs que oferecem concorrência aos grandes bancos do país, sendo o estímulo a essa atividade no mercado de crédito a política pública perseguida pelo Banco Central há muitos anos para aumentar a oferta de crédito e, por via de consequência, a redução de juros.
Aparentemente, na melhor das boas intenções, a decisão parte de uma lógica protetiva do consumidor, tratando-o como hipossuficiente e, portanto, imune às consequências contratuais de seu inadimplemento. Como sempre, existem princípios e cláusulas gerais citadas como fundamento para afastamento do texto contratual. No entanto, sob a lente da Análise Econômica do Direito (AED), trata-se de uma decisão paternalista e, no limite, destrutiva da concorrência, das liberdades econômicas e do próprio interesse dos consumidores tomados no agregado (a floresta, na conhecida metáfora).
É importante começar destacando que o modelo de “garantia digital” não surgiu como uma forma de penalizar consumidores, mas sim de viabilizar a inclusão financeira. Ao vincular o celular — bem de alto valor relativo e utilidade cotidiana — à operação de crédito, a fintech consegue mitigar seu risco de inadimplemento sem recorrer a taxas de juros exorbitantes ou exigir garantias físicas onerosas, como avalistas, penhores ou hipotecas.
Ou seja, a prática atua como um substitutivo eficiente das garantias tradicionais, permitindo que se ofereçam produtos financeiros a consumidores que, de outro modo, estariam excluídos do sistema bancário formal. Trata-se, pois, de uma inovação contratual com relevante função alocativa no mercado e uma forma de inclusão financeira!
A decisão judicial, ao coibir o uso dessa ferramenta, ignora sua função econômica e social e desconsidera os efeitos sistêmicos negativos que pode provocar. Ao eliminar um mecanismo legítimo de garantia, transfere-se o custo do risco de inadimplemento inteiramente para o credor, que passará a elevar taxas de juros para compensar o risco adicional — ou, simplesmente, deixará de ofertar crédito em determinadas faixas de renda ou perfis de consumo.
A consequência prática será a redução da concorrência no setor, o encarecimento do crédito e a regressão da inclusão financeira. Em outras palavras: a tentativa de proteger o “vulnerável” acaba, paradoxalmente, por excluí-lo (por isso, o “efeito bumerangue”).
Adicionalmente, a decisão também faz menção à suposta “abusividade” das taxas cobradas pelas financeiras envolvidas, citando que estariam acima da média divulgada pelo Banco Central. Esse argumento, porém, não se sustenta.
O Superior Tribunal de Justiça (STJ), em jurisprudência pacífica, já afirmou que a mera comparação com a média do mercado — inclusive a taxa média de juros divulgada pelo BC — não constitui, por si só, parâmetro para revisão judicial de cláusulas contratuais. Isso porque essa média agrega operações com perfis de risco, prazos, garantias e valores extremamente heterogêneos.
O próprio Banco Central já se manifestou no sentido de que tais médias não devem ser utilizadas como referência em ações judiciais revisionais, pois não refletem a realidade de segmentos específicos do mercado (é como comparar “maças com bananas”).
Cabe lembrar que a Análise Econômica do Direito recomenda fortemente que o Judiciário pondere os incentivos criados por suas decisões. Ao suprimir garantias legítimas e interferir nos preços de mercado, sob o pretexto de proteção ao consumidor, os tribunais acabam desorganizando o sistema de crédito, incentivando o oportunismo contratual e desestimulando a inovação financeira.
Não é por outra razão que diversos países com sistemas jurídicos mais estáveis — e que alcançaram maior inclusão financeira — possuem regras rígidas sobre a execução de garantias, inclusive com respaldo à autotutela (“self enforcement” contratual) em determinadas circunstâncias. A previsibilidade e a segurança jurídica são essenciais para o florescimento de um mercado eficiente de crédito.
Infelizmente, o Brasil ainda convive com um certo ativismo judicial paternalista que, embora bem-intencionado, desconsidera os custos de transação e os efeitos de segunda ordem de suas decisões. Intervenções como essa minam a confiança dos agentes econômicos, desestimulam o investimento e comprometem o ambiente de negócios. Se pretendemos construir um país com crédito mais barato, mais acessível e mais competitivo, precisamos compreender que o fortalecimento das garantias — e não sua supressão — é o caminho a ser trilhado.
A proteção do consumidor não deve ser confundida com a anulação de suas responsabilidades contratuais. O inadimplemento, em qualquer economia de mercado, precisa ter consequências claras e proporcionais. Retirar dos contratos a eficácia de suas garantias é jogar contra o próprio consumidor, que passará a pagar mais caro – ou a não ter acesso – ao crédito de que necessita.
Que essa decisão judicial seja revista e repensada e que o Judiciário brasileiro, cada vez mais, incorpore análises baseadas em evidências e nos incentivos econômicos das normas que aplica. Só assim conseguiremos construir um sistema jurídico funcional, eficiente e, de fato, inclusivo.