Monetização de dados pessoais: da proteção à liberdade contratual

Regime jurídico

A crescente transformação dos dados pessoais em ativos econômicos impõe um desafio central à proteção de dados: como garantir que a exploração desses ativos ocorra de forma legítima, potencializando a sua exploração econômica pelo titular e respeitando os direitos dos titulares, bem como os fundamentos da autodeterminação informacional? Essa realidade demanda uma revisão das categorias jurídicas tradicionais.

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Autodeterminação informacional: entre proteção e liberdade de escolha

No Brasil, a ANPD tem adotado uma postura restritiva sobre o tema. Em recente decisão, ela determinou a suspensão da coleta de dados mediante pagamento ao titular, por considerar que isso comprometia a “liberdade” do consentimento. No entanto, essa interpretação reduz a autodeterminação informacional a um mandado de empoderamento negativo: impedir abusos.

A doutrina e o direito comparado oferecem uma leitura mais rica: a autodeterminação também pode e deve funcionar como um mandado de empoderamento positivo titular, reconhecendo sua capacidade de negociar ativamente seus próprios dados, desde que em condições justas.

Esse dualidade deriva da dupla dimensão da dignidade humana, pilar da proteção de dados. A partir de uma perspectiva material, ela funciona como limite à mercantilização irrestrita do ser humano. Mas numa leitura formal, inspirada no modelo kantiano de autonomia individual, a dignidade também exige o reconhecimento da autonomia do indivíduo, que deve ser livre para decidir sobre todos os aspectos da sua vida privada, inclusive sobre o proveito econômico dos seus dados pessoais. Negar ao titular a possibilidade de monetizar seus dados seria uma forma de infantilizá-lo, retirando-lhe definição sobre seus próprios interesses.

Por isso, uma abordagem emancipatória da autodeterminação informacional exige, de um lado, o reconhecimento da possibilidade de decidir sobre a obtenção de eventual proveito econômico do tratamento dos seus dados pessoais e, de outro, assegurar que a transparência na sua coleta seja garantida.

Note-se, no entanto, que essa transparência não deve ser aferida não idealisticamente, mas de modo adaptativo, conforme o grau de acessibilidade, clareza e inferibilidade da informação fornecida. As informações disponibilizadas devem ser suficientes para tomar uma decisão consciente, sem engano ou manipulação, não se devendo exigir que o titular tenha, em cada caso concreto, uma compreensão plena ou técnica.

Ainda que lentamente, o direito europeu parece estar apontando nesse sentido. O primeiro passo nessa direção foi a edição da Diretiva (UE) 2019/770, que reconheceu que os dados pessoais podem funcionar como forma de pagamento em contratos de conteúdo digital. Essa regra foi incorporada no Código Civil da Alemanha. A dogmática alemã, italiana, francesa e espanhola estão começando a acompanhar essa tendência. O número de modelos de negócio baseados na remuneração direta do titular não para de crescer em todo o território europeu.

No direito brasileiro, a comercialização de aspectos da personalidade não é propriamente nova. O direito de imagem é um exemplo consolidado: embora derive da personalidade, pode ser objeto de cessão onerosa, dentro de certos limites. A analogia entre imagem e dados pessoais é útil: ambos derivam da dignidade humana, têm valor moral e patrimonial, e só podem ser explorados mediante consentimento informado e revogável.

A cessão de dados para fins econômicos, portanto, não implica alienação da “propriedade” dos dados (que sequer existe juridicamente), mas sim autorização para um usos específicos. O contrato de monetização de dados, a exemplo do contrato de uso de imagem, deve conter cláusulas claras sobre finalidade, escopo, duração, valores envolvidos e deveres recíprocos. Deve, ainda, preservar o direito do titular de revogar o consentimento e de impedir usos abusivos ou desvirtuados de seus dados.

Essa estrutura contratual oferece um ponto de partida seguro e testado para regular a monetização primária de dados. Embora os dados pessoais apresentem peculiaridades — como a necessidade de garantir o direito de acesso, de portabilidade e de exclusão —, o modelo jurídico da cessão de imagem comprova que é possível compatibilizar exploração econômica com a tutela da personalidade.

Essas experiências demonstram que a monetização de dados não compromete, por si só, o consentimento. O ponto crítico é a garantia da transparência informacional e da efetiva liberdade de escolha. Desde que essas condições sejam respeitadas, não há impedimento jurídico para que os dados sejam trocados por dinheiro ou serviços — algo que, de fato, já ocorre há anos, mas quase sempre em benefício exclusivo das empresas.

Consentimento e incentivos: entre autonomia e influência legítima

A principal objeção à monetização de dados via consentimento reside na suposta quebra da “liberdade” do titular, quando este é estimulado por vantagens econômicas. Trata-se de uma leitura restritiva, que considera que a mera oferta de dinheiro ou benefícios – em tese – já é capaz de viciar o consentimento. Tal posição, contudo, não encontra amparo no texto da LGPD, nem na lógica do direito civil brasileiro.

A LGPD exige que o consentimento seja livre, informado e inequívoco. Contudo, ela não proíbe o oferecimento de incentivos, tampouco presume sua invalidade. A caracterização de vício de consentimento depende da verificação de fatores como coação, erro, dolo ou estado de perigo, nos termos do Código Civil. A simples existência de uma vantagem econômica não preenche esses requisitos.

A doutrina europeia contemporânea, da qual a LGPD é herdeira, reconhece que influências externas — inclusive incentivos — não são necessariamente abusivas. A chave está em garantir a existência de uma “real possibilidade de escolha”. Quando o titular tem liberdade de decidir, com base em informações claras, o consentimento permanece válido, mesmo diante de estímulos econômicos. Isso vale inclusive para dados sensíveis, desde que respeitados os requisitos formais e materiais de proteção.

Requisitos de validade

Para que a monetização direta de dados pessoais seja válida no Brasil, é necessário observar quatro requisitos mínimos, à luz da LGPD: a) transparência clara e ostensiva sobre quais dados serão coletados, como serão tratados e com que finalidade; b) consentimento livre, informado e inequívoco, manifestado de forma expressa e registrável; c) garantia de revogação, exclusão ou anonimização, a depender de cada caso e do modelo de monetização adotado; e d) liberdade de escolha efetiva, sem coerção econômica ou jurídica, o que será examinado a seguir.

Deve ser observado, que, quando se fala em liberdade de escolha, se fala, em última instância, da existência de uma alternativa real. Há três situações em que essa validade seja considerada em tese comprometida: d.1.) relações de sujeição especial, como nas relações de trabalho ou com o poder público; d.2) ofertas de serviços essenciais, especialmente quando não há concorrência; e d.3.) dependência ou coação sócioeconômica, como a exigência de consentimento para acesso a recursos indispensáveis.

Mesmo nessas hipóteses, o vício não pode ser presumido. Embora possa haver uma maior possibilidade de comprometimento da liberdade individual, é verificar, no caso concreto, que o titular não tinha outra opção razoável e que o incentivo representou uma forma de coerção disfarçada. Caso contrário, corre-se o risco de reforçar a exclusão digital, uma finalidade incompatível com ideário protetivo da LGPD.

Portanto, a monetização dos dados deve ser compreendida como uma opção legítima e potencialmente emancipatória, desde que regulada com critérios claros, garantida por coleta transparente e submetida à supervisão institucional, seja das autoridades regulatórias, seja da sociedade civil organizada. O objetivo da proteção de dados não deve ser proteger o indivíduo de si mesmo, mas sim garantir que ele possa decidir, com segurança e liberdade, o destino das informações que o identificam.

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Esta é uma série de três artigos com o objetivo de apresentar um recorte introdutório e acessível de um projeto de pesquisa acadêmica mais amplo sobre os desafios e as possibilidades jurídicas da monetização de dados pessoais.

A proposta é provocar a reflexão crítica sobre os limites do modelo atual de proteção de dados centrado exclusivamente na defesa contra abusos e explorar alternativas que considerem também a autonomia do titular como fundamento legítimo para o uso econômico de suas informações.

Uma análise com maior aprofundamento teórico, levantamento de modelos existentes e extenso aparato bibliográfico pode ser acessada nesta versão ampliada do texto. Críticas e sugestões serão bem-vindas.

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