Soberania digital: (neo)colonialismo e infraestruturas públicas digitais

Em abril de 2024, o ex-presidente Joe Biden sancionou a Protecting Americans from Foreign Adversary Controlled Applications Act, incorporada ao pacote legislativo de segurança nacional conhecido como National Security Supplemental Appropriations Act. A norma determina que a ByteDance, empresa chinesa controladora do TikTok, deve alienar integralmente os ativos da plataforma nos Estados Unidos em até 270 dias (com possibilidade de prorrogação por mais 90), sob pena de banimento do aplicativo em lojas digitais e servidores no território norte-americano.

A justificativa oficial baseia-se em riscos à segurança nacional, sobretudo no que diz respeito ao acesso estrangeiro a dados sensíveis e à possibilidade de manipulação algorítmica de conteúdos. A resposta imediata da empresa foi judicializar a medida, alegando sua inconstitucionalidade por violar a Primeira Emenda da Constituição dos EUA.

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Sem dúvidas, o episódio reflete a crescente percepção de que plataformas digitais são aplicações estratégicas com capacidade de interferência política, social e cultural, e reforça a necessidade de os Estados adotarem precauções sobre o gerenciamento de tecnologias críticas como condição para a preservação de sua soberania no ambiente digital.

Discutir soberania digital não é uma tarefa singela. A teoria clássica da soberania teve em Jean Bodin seu ponto de partida e foi progressivamente desenvolvida por pensadores formidáveis da modernidade, como John Locke, Jean-Jacques Rousseau, Thomas Jefferson, Alexander Hamilton, James Madison e John Jay (os três últimos, autores de O Federalista). Ponto fundamental que surgiu em Bodin é entender a soberania enquanto um poder absoluto e perpétuo, caracterizado pela ausência de qualquer autoridade superior.

Com efeito, há soberania quando um ente político não está subordinado às ordens de outrem, exercendo autoridade suprema tanto no plano interno quanto externo: internamente, por meio da imposição legítima de normas e políticas públicas que organizam a vida em sociedade; externamente, pela independência frente a outros Estados. Esse status confere ao poder soberano a capacidade última de decisão e de autodeterminação, fundamentos essenciais para a construção do Estado moderno.

No entanto, frente aos desafios da era digital – como a atuação supranacional de plataformas digitais, a dependência de infraestruturas tecnológicas privadas e a circulação transfronteiriça de dados —, a soberania contemporânea precisa ser pensada não apenas como domínio territorial, mas também como autonomia informacional, capacidade regulatória no ciberespaço e garantia de direitos fundamentais em meio digital. Olhar para a atuação de atores não estatais não é mais uma opção.[1]

Para Fabrício Polido, professor de Direito Internacional da UFMG, soberania digital diz respeito aos “aspectos da autoridade, do direito e da capacidade de um ator estatal controlar seus dados, informações e conteúdos digitais”[2]. O especialista destaca a imprescindibilidade do controle do tráfego dos dados e das infraestruturas que sustentam as redes e plataformas digitais.

Complementando esse entendimento, Rodolfo Avelino, professor do Insper e especialista em cibersegurança, mostra como o modus operandi neocolonialista passa por controlar as três camadas que sustentam a comunicação em rede:

  1. infraestrutura,
  2. protocolos de comunicação; e
  3. plataformas de serviços e aplicações.[4]

Todas as grandes big techs vêm expandindo sua presença nessas áreas. São exemplos expressivos a Alphabet com o Google Fiber[5] e a Amazon com o Projeto Kuiper[6].

Recentemente, a Meta também entrou nesse jogo. O Projeto Waterworth, anunciado em fevereiro de 2025, representa um investimento multibilionário e plurianual na construção do mais extenso cabo submarino já planejado, com mais de 50.000 km de extensão – superando a circunferência da Terra.

O cabo conectará cinco continentes e países como Brasil, Estados Unidos, Índia e África do Sul, com o objetivo de fortalecer a infraestrutura digital global e atender à crescente demanda por conectividade de alta capacidade, especialmente para aplicações de inteligência artificial. Utilizando 24 pares de fibras ópticas, o projeto promete aumentar significativamente a capacidade de transmissão de dados, além de empregar técnicas avançadas de instalação para garantir a resiliência da infraestrutura.[7]

Fomentadas pela economia informacional, o que começou com a monetização de dados pessoais a partir de interações na camada de aplicação – como redes sociais –, hoje corresponde à expansão de conglomerados tecnológicos na rede física, nos protocolos de roteamento de pacotes de rede, protocolos de aplicação, aplicações e conteúdo.

Além disso, essas empresas transnacionais já estão inseridas em todas as camadas do modelo de cloud computing – rede física, Infrastructure as a Service (IaaS), Platform as a Service (PaaS) e Software as a Service (SaaS), que abastece em maior ou menor medida todas as grandes empresas do mundo e os próprios sistemas dos entes públicos.

A colonização de todas essas áreas permite a esses agentes privados transfronteiriços o acesso e rastreio de usuários conectados em uma escala muito além do know-how e da capacidade regulatória atual dos Estados-Nação.

No Brasil, a assimetria e dependência tecnológica entre Estado-Nação e esses conglomerados privados fica ainda mais evidente com as informações obtidas na 218ª Reunião do Conselho Consultivo da Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel).

O assessor da Superintendência de Outorga e Recursos, Sidney Azeredo Nince, revelou que duas empresas, uma sueca (Ericsson) e outra chinesa (Huawei) correspondem a cerca de 98% dos equipamentos de infraestrutura do 5G no Brasil, tecnologia que é das mais estratégicas para a soberania de um país.[8]

No cenário global atual, marcado pela intensa rivalidade entre Estados Unidos e China, que procuram dominar a tecnologia, especialmente no campo da inteligência artificial generativa, o Brasil está diante de uma escolha estratégica que já reflete na soberania: permanecer como consumidor passivo de tecnologias estrangeiras ou assumir o protagonismo na construção da sua própria soberania digital.

É preciso garantir no mínimo a possibilidade de autonomia política, econômica e cultural em um mundo cada vez mais complexo, com antagonismos crescentes entre países e um ambiente moldado por plataformas digitais e algoritmos em todos os setores da vida humana.

O Plano Brasileiro de Inteligência Artificial (PBIA), lançado pelo governo, com ênfase no setor público e tendo iniciativas como o desenvolvimento de uma nuvem pública nacional e modelo de IA em português é um passo significativo, mas insuficiente para disputas nos concertos das superpotências.

Nesse contexto, a intenção do presente artigo passa por alertar acerca da necessidade de investimentos estratégicos em infraestruturas públicas digitais (IPDs) como etapa necessária a fim de combater o neocolonialismo digital. Minar o monopólio desses conglomerados tecnológicos, cuja consequência prática é a perda de autonomia dos Estados-Nação, é assegurar-lhes soberania digital. Não se nega a importância de colaborações, mas é inviável a total dependência de agentes estrangeiros em setores tão estratégicos.

Com efeito, em um cenário marcado pela Indústria 4.0, pela economia informacional e pela ubiquidade de tecnologias de informação e comunicação (TICs) – como redes sociais, big data, inteligência artificial e internet das coisas –, a presença de tecnologias de alto processamento no cotidiano das pessoas já é uma realidade consolidada. Iniciativas como o Pix, o gov.br e, em breve, o Drex, são exemplos de IPDs que impactam diretamente a vida dos cidadãos brasileiros, mas o país deve olhar mais profundamente para as camadas da internet e para a Web 2.0.

A coleta massiva de dados representa um desafio sem precedentes à teoria tradicional da soberania, pois os dados pessoais tornaram-se a nova matéria-prima dessa economia informacional, especialmente explorada por setores como o marketing e a publicidade.

Esse modelo, que se volta ao microtargeting – a oferta de serviços e conteúdos personalizados com base no perfil de cada usuário –, demonstra a capacidade das plataformas de penetrarem em todos os aspectos da vida social e reforça a assimetria de poder entre plataformas e Estados. A soberania digital, nesse sentido, exige não apenas capacidade normativa, mas também controle efetivo sobre protocolos, linguagens, data centers, computação em nuvem e a própria infraestrutura física e lógica da internet.

O investimento em IPDs é imprescindível para evitar qualquer forma de subordinação tecnológica a sistemas desenvolvidos no exterior, cuja assimetria pode relegar o Estado à condição de dependência estrutural. São estruturas tecnológicas fundamentais voltadas ao fornecimento de serviços e aplicações digitais de interesse público, especialmente aquelas com amplo alcance social.

A sua relevância aumenta diante da incapacidade das fronteiras nacionais tradicionais de conter a atuação de grandes corporações tecnológicas transnacionais. Diversos organismos internacionais, como o Fórum Econômico Mundial, tratam as IPDs sob a ótica da prestação de serviços públicos, mas é preciso pensar na sua função estratégica na relação entre soberania e neocolonialismo de dados.

Casos como o impasse entre o TikTok e os Estados Unidos evidenciam como a internet e as plataformas digitais se tornaram instrumentos centrais da geopolítica contemporânea, com capacidade de influenciar diretamente decisões soberanas. Ao concentrarem poder econômico, informacional e comunicacional, essas corporações privadas passaram a exercer pressões que transcendem fronteiras e impactam áreas sensíveis como segurança nacional, processos eleitorais, dinâmicas culturais e políticas econômicas.

A tentativa de construir formas de interlocução institucional com essas plataformas têm se mostrado limitada, como evidenciam episódios envolvendo bloqueios unilaterais de conteúdos, resistência à regulação estatal ou mesmo litígios entre governos e empresas em temas sensíveis.

Esses impasses reforçam a urgência de se repensar os marcos regulatórios e as capacidades institucionais dos Estados, bem como a necessidade de desenvolver infraestruturas digitais públicas robustas, que garantam não apenas a soberania jurídica e política, mas também a soberania tecnológica e informacional no século XXI.

A soberania digital não é apenas uma questão técnica, mas sim um imperativo para o Brasil. O investimento em pesquisas, desenvolvimento e regulação própria é essencial, não apenas para garantir que o país acompanhe, mas que influencie os rumos das transformações digitais globais, como no caso do Marco Civil da Internet que serviu de paradigma para outros países. Em um mundo cada vez mais dividido em blocos de interesses e empresas que afetam a política de países, a soberania digital é uma forma de garantir os interesses nacionais.


[1] DIAS, Daniela S. Soberania. a legitimidade do poder estatal e os novos rumos democráticos. Revista de Informação Legislativa. Brasília, v. 48, n. 192, 2011. Acesso em: 21.04.2025. Disponível em: https://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/242929/000936209.pdf?sequence=3&isAllowed=y.

[2] POLIDO, Fabrício Bertini Pasquot. Estado, soberania digital e tecnologias emergentes: interações entre direito internacional, segurança cibernética e inteligência artificial. Revista de Ciências do Estado, v. 9, n. 1, p. 1-30, 2024. Acesso em: 22.04.2025. Disponível em: https://periodicos.ufmg.br/index.php/revice/article/view/e53066/e53066.

[3] DA SILVEIRA, Sérgio Amadeu et al. Colonialismo de dados: como opera a trincheira algorítmica na guerra neoliberal. Autonomia literária, 2022. Acesso em: 22.04.2025. Disponível em: https://fpabramo.org.br/editora/wp-content/uploads/sites/17/2022/06/colonialismodedados_fpa_WEB. pdf.

[4] Google Fiber. Acesso em: 22.04.2025. Disponível em: https://fiber.google.com/.

[5] Amazon.        Acesso        em:        22.04.2025. https://www.aboutamazon.com.br/noticias/noticias-da-empresa/o-que-esperar-do-primeiro-lancamento-em-grande-escala-do-projeto-kuiper.

[6] Revista Veja. Acesso em:        22.04.2025.        Disponível        em: https://veja.abril.com.br/economia/projeto-waterworth-entenda-o-ambicioso-plano-de-conectividade-d a-meta/.

[7] COSTA, Simone. Tele.Síntese. Acesso em: 22.04.2025. Disponível em: https://telesintese.com.br/juntas-ericsson-e-huawei-concentram-98-das-vendas-de-antenas-5g-no-brasi l/#:~:text=Juntas%2C%20Ericsson%20e%20Huawei%20concentram,de%20antenas%205G%20no%2 0Brasil&text=As%20empresas%20Ericsson%20e%20Huawei,de%20infraestrutura%205G%20no%20 pa%C3%ADs.

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