Novo regime da indisponibilidade cautelar de bens na LIA

A Lei de Improbidade Administrativa foi objeto de significativas mudanças implementadas pela Lei 14.230/2021. Entre essas mudanças está o regime de indisponibilidade cautelar de bens durante o trâmite das ações civis públicas que apuram os atos de improbidade.

Diante da revogação total dos dispositivos que regiam a matéria (artigos 7º e 16, §§ 1º e 2º, da antiga redação da LIA) e da inauguração de uma nova sistematização do regime (por meio dos novos caput e 14 parágrafos do artigo 16 da LIA), a legislação passou a definir balizas mínimas para a utilização e amplitude da indisponibilidade de bens.

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Estabeleceu-se, por exemplo:

  1. a necessidade da prévia intervenção do réu e alvo da medida (§§ 3º e 4º);
  2. a impossibilidade de o valor global da medida superar o quantum do alegado dano ao erário ou enriquecimento ilícito (§ 5º);
  3. a viabilidade de readequação da medida ao longo do processo (§ 7º);
  4. a vedação de o valor da multa ser englobado no quantum total (§ 10º); e
  5. a ordem de prioridade de bens em que será decretada a indisponibilidade (§ 11º).

Para além desses critérios, a inclusão da necessidade de demonstração, pelo Ministério Público, de “perigo de dano irreparável ou de risco ao resultado útil do processo” (§ 3º do artigo 16 da LIA), para fins de decretação da indisponibilidade, gerou a maior controvérsia no microssistema da improbidade administrativa.

Tanto é assim que foram ajuizadas duas Ações Diretas de Inconstitucionalidade (7.156 e 7.237) para discutir o tema. Essas ações aguardam julgamento de mérito pelo Supremo Tribunal Federal.

Em suma, para os autores das ADIs, ao se incluir a necessidade de comprovação do risco de dilapidação patrimonial do réu (periculum in mora) para decretação da medida, rompendo com o entendimento até então consolidado no Superior Tribunal de Justiça[1] no sentido de que haveria um “risco implícito”, o dispositivo teria enfraquecido a tutela da probidade administrativa.

De outro lado, os resultados concretos observados no âmbito das ações de improbidade administrativa indicavam a gravidade dessa presunção, na medida em que, como assinalado pela doutrina especializada, “o réu sofreria constrição patrimonial por tempo indefinido, paralisando a respectiva vida econômica e familiar no curso do processo”, considerando que “o processo constitucionalmente justo e equilibrado não pode abrigar semelhante consequência”.[2] 

Por isso, é certo que “a demonstração do periculum in mora – enquanto exigência de natureza factual – não pode, jamais, configurar-se em abstrato, com a mera aceitação exordial acusatória”.[3]

Indo além da modificação legislativa, o debate mais imediato sobre o tema diz respeito à sua aplicabilidade nos casos concretos em trâmite nos tribunais, a partir da seguinte questão a ser respondida: as modificações trazidas pela Lei 14.230/2021, em especial a do § 3º do art. 16, seriam aplicáveis aos processos em curso? Isto perpassa a compreensão de se adotar “a retroatividade da norma mais benéfica como uma diretriz própria de todo o direito sancionatório”.[4]

Sobre isso, o Ministério Público Federal, em parecer apresentado nos autos de processo em trâmite perante o Tribunal Regional Federal da 3ª Região, que bem resume o entendimento então vigente, sustentou que a “nova LIA não t[eria] efeitos retroativos, exceção feita à presença do dolo na conduta; não h[avendo], pois, cabimento na invocação de prescrição intercorrente e no requerimento de desbloqueio de bens sob a égide da nova legislação”.[5] 

A resposta à indagação acima só viria após um longo percurso, marcado por significativas oscilações jurisprudenciais, que teve início com a compreensão firmada pelo STF no julgamento do Tema de Repercussão Geral 1.199 (ARE-RG 843.989/PR), qual seja, a de que “a nova Lei 14.230/2021 aplica-se aos atos de improbidade administrativa culposos praticados na vigência do texto anterior da lei, porém sem condenação transitada em julgado”.[6]

A tese vinculante do STF, em um primeiro momento, foi interpretada de modo restritivo pelo STJ, que afirmava a sua limitação aos atos de improbidade administrativa culposos praticados na vigência da lei anterior, sem condenação transitada em julgado. Assim, as demais mudanças normativas, especialmente as de natureza processual – como os novos requisitos para medida de indisponibilidade de bens – seriam inaplicáveis aos processos em curso, também, em tese, por força do artigo 14 do CPC e do imperativo da segurança jurídica.

Nesse sentido, as duas Turmas de Direito Público do STJ consignaram, nessa fase inicial da construção interpretativa, que “h[averia] de prevalecer o disposto no art. 14 do Código de Processo Civil de 2015, segundo o qual ‘a norma processual não retroagirá e será aplicável imediatamente aos processos em curso, respeitados os atos processuais praticados e as situações jurídicas consolidadas sob a vigência da norma revogada’”[7] e que “a discussão ora em mesa não se inser[iria] dentre os pontos controvertidos em debate no Tema 1.199/STF”.[8]

Contudo, logo em seguida, o alcance do Tema 1.119 da Repercussão Geral foi progressivamente ampliado pelo próprio STF, ao afirmar que a ratio daquele julgamento consistiu na “irretroatividade das alterações introduzidas pela Lei 14.230/2021 para fins de incidência em face da coisa julgada ou durante o processo de execução das penas e seus incidentes, mas ressalvou exceção de retroatividade para casos […] em que ainda não houve o trânsito em julgado da condenação por ato de improbidade”.[9] Isto é, definiu-se que as modificações deveriam ser aplicadas aos processos ainda em tramitação.

Como consequência, a conclusão anteriormente firmada pelo STJ foi diametralmente modificada, passando a se assentar o entendimento de que as inovações legislativas promovidas na Lei de Improbidade Administrativa deveriam incidir imediatamente aos processos em curso sem decisão final transitada em julgado.

Nesse sentido, especificamente quanto à incidência imediata do § 3º do artigo 16 da LIA, três fundamentos principais lastrearam a mudança de orientação do STJ:

  1. a ampliação da ratio do Tema 1.199 pelo STF;
  2. a natureza de tutela de urgência cautelar da medida de indisponibilidade; e
  3. a natureza processual dos dispositivos em questão, vigendo, portanto, imediatamente aos processos em curso, consoante o art. 14 do CPC.[10]

Essa compreensão foi cristalizada pela 1ª Seção do STJ, no recente julgamento do REsp 2.074.601/MG, sob o rito dos repetitivos (Tema 1.257), tendo sido fixado que “as disposições da Lei 14.230/2021 são aplicáveis aos processos em curso, para regular o procedimento da tutela provisória de indisponibilidade de bens, de modo que as medidas já deferidas poderão ser reapreciadas para fins de adequação à atual redação dada à Lei 8.429/1992”.[11] 

Com isso, foi revogado o antigo Tema Repetitivo 701,[12] que trazia a orientação contrária firmada sob a ratio da antiga redação da LIA, segundo a qual era possível a decretação de indisponibilidade sem demonstração de risco de dano.

Em processo recentemente julgado pelo TRF3,[13] os problemas enfrentados na prática processual relativamente à aludida controvérsia ficaram muito bem ilustrados. No caso em questão, sob a égide do regramento anterior, de acordo com o qual o risco de dilapidação do patrimônio poderia ser presumido, fora decretada indisponibilidade de 280 imóveis dos réus. A indisponibilidade perdurava há sete anos e foi mantida inclusive após a sentença de improcedência da ação, vigendo por ocasião de recursos interpostos pela acusação.

Após longo trâmite, o TRF3 revogou a indisponibilidade de bens decretada sob a égide do risco implícito. O voto do desembargador federal relator Marcelo Saraiva consignou que, diante das alterações promovidas na LIA, a afirmação da decisão de 1º grau sobre um “fundado receio de que os réus possam praticar atos tendentes à alienação dos seus patrimônios, de modo a obstar o ressarcimento dos prejuízos causados em caso de eventual procedência desta demanda” mostrava-se insuficiente para atender os requisitos legais.

O caso evidencia a gravidade das consequências que podem advir da decretação automática e sem critérios de uma indisponibilidade de bens com base em risco presumido. O caráter potencialmente injusto de medidas adotadas sem a devida demonstração de urgência reforça a importância das mudanças introduzidas na LIA pela Lei 14.230/2021, especialmente quanto ao necessário equilíbrio entre a necessidade de proteger o interesse público e a salvaguarda das garantias individuais dos réus.

É dizer: as alterações promovidas na LIA, longe de consubstanciarem inovações meramente formais, representam um avanço substancial em direção a um processo sancionador mais justo, técnico e garantista. Ao estabelecer critérios objetivos para a decretação da indisponibilidade de bens e permitir sua reavaliação ao longo do processo, o novo regime fortalece a segurança jurídica e evita o uso desmedido de uma medida de natureza excepcional.

Trata-se de um passo importante para assegurar que as ações de improbidade deixem de ser um instrumento de punição antecipada e passem a se consolidar como um verdadeiro instrumento de responsabilização responsável, eficiente e constitucionalmente orientado.


[1] Apesar de o entendimento também ser encontrado em precedentes anteriores, foi no julgamento do Tema Repetitivo 701 que o STJ externou de forma colegiada e vinculante (art. 1.039 do CPC) que “É possível a decretação da ‘indisponibilidade de bens do promovido em Ação Civil Pública por Ato de Improbidade Administrativa, quando ausente (ou não demonstrada) a prática de atos (ou a sua tentativa) que induzam a conclusão de risco de alienação, oneração ou dilapidação patrimonial de bens do acionado, dificultando ou impossibilitando o eventual ressarcimento futuro’“.

[2] ASSIS, Araken de. Medidas de urgência na ação de improbidade administrativa. In: MARQUES, Mauro C. Improbidade Administrativa – Temas Atuais e Controvertidos. Rio de Janeiro: Forense, 2016, p. 50.

[3] CARNEIRO, Rafael de Alencar Araripe. De garantista contramajoritário a inspirador da reforma legislativa: a contribuição de Napoleão Nunes Maia Filho em matéria de improbidade administrativa. In: CORREIA, Atalá; CARNEIRO, Rafael de Alencar Araripe. Controle da administração pública – desafios e tendências: estudos em homenagem a Napoleão Nunes Maia Filho. São Paulo: Almedina, 2024, p. 109.

[4] CARNEIRO, Rafael de Alencar Araripe. A reformulação limitadora do conceito de improbidade administrativa. In: MENDES, Gilmar Ferreira; CARNEIRO, Rafael de Alencar Araripe. Nova lei de improbidade administrativa: inspirações e desafios. São Paulo: Almedina, 2022, p. 113.

[5] Parecer apresentado nos autos da Ap. Cív. 5003114-44.2017.4.03.6110, em trâmite perante a 4ª Turma do TRF-3.

[6] STF, ARE 843.989, Pleno, Rel. Min. Alexandre de Moraes, julg. 18.8.2022.

[7] STJ, AREsp 2.031.414/MG, 1ª T., Rel. Min. Gurgel de Faria, julg. 13.6.2023.

[8] STJ, AgInt no AREsp 2.148.510/SP, 2ª T., Rel. Min. Francisco Falcão, julg. 4.3.2024.

[9] STF, ARE 803.568 AgR-segundo-EDv-ED, Pleno, Rel. p/ acórdão Min. Gilmar Mendes, julg. 22.8.2023.

[10] V.: STJ, AgInt no AREsp 2.272.508/RN, 1ª T., Rel. Min. Gurgel de Faria, julg. 6.2.2024.

[11] STJ, STJ, REsp 2.074.601/MG, 1ª S., Rel. Min. Afrânio Vilela, julg. 6.2.2025.

[12] Tema 701/STJ: “É possível a decretação da “indisponibilidade de bens do promovido em Ação Civil Pública por Ato de Improbidade Administrativa, quando ausente (ou não demonstrada) a prática de atos (ou a sua tentativa) que induzam a conclusão de risco de alienação, oneração ou dilapidação patrimonial de bens do acionado, dificultando ou impossibilitando o eventual ressarcimento futuro” (DJe 19.9.2014).

[13] TRF-3, Ap. Cív. 5003114-44.2017.4.03.6110, 4ª T., Rel. Des. Federal Marcelo Saraiva, DJe 1º.4.2025.

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