A polêmica tributação de beneficiários de trusts

A Solução de Consulta Cosit 75/2025 provocou forte repercussão na imprensa especializada e inquietação entre planejadores patrimoniais e investidores brasileiros com estruturas no exterior.

À primeira vista, o parecer sugere que beneficiários de trusts irrevogáveis e discricionários devem ser tratados como titulares dos bens e direitos alocados em um trust, ainda que não tenham recebido qualquer rendimento, não detenham controle ou sequer tenham ciência de sua condição. A interpretação abre margem para a exigência de declaração e até de tributação no Imposto de Renda da Pessoa Física (IRPF), gerando perplexidade e insegurança.

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Trata-se, contudo, de uma conclusão que exige maior rigor técnico e sistemático. A Lei 14.754/2023, que instituiu um regime jurídico mais estruturado para ativos no exterior de pessoas físicas, procurou conferir coerência e segurança jurídica a essas situações, especialmente após anos de jurisprudência fragmentada.

A solução de consulta ora comentada representa uma inflexão interpretativa relevante, mas que não encontra respaldo sólido nos fundamentos constitucionais do imposto sobre a renda, especialmente no que diz respeito ao critério da disponibilidade econômica ou jurídica como condição indispensável para a ocorrência do fato gerador.

Para entender o equívoco central da interpretação da Receita, é preciso diferenciar com precisão três planos distintos, que muitas vezes se confundem no debate público: (i) o plano formal, em que alguém é indicado como beneficiário no instrumento do trust; (ii) o plano jurídico, no qual essa pessoa adquire efetivamente o direito aos ativos ou rendimentos; e (iii) o plano fiscal, que pressupõe a disponibilidade econômica ou jurídica da renda e é o único que autoriza a incidência tributária.

Confundir esses planos, como faz a solução de consulta, não é apenas tecnicamente equivocado e, sobretudo, perigoso para a estabilidade do novo regime de transparência fiscal.

A Lei 14.754/2023 dispõe claramente que o settlor (instituidor) do trust continuará responsável pela tributação dos ativos ali alocados enquanto mantiver poder de revogação, controle, usufruto ou qualquer outra forma de influência relevante. A titularidade fiscal se desloca para o beneficiário apenas nos casos em que este passa a deter a disponibilidade sobre os bens. Nos demais casos, mesmo que formalmente indicado, o beneficiário permanece sendo titular de mera expectativa de direito.

É nesse ponto que a Solução COSIT nº 75/2025 erra ao equiparar a mera expectativa de direito à titularidade tributável, inclusive em trusts discricionários, nos quais o trustee tem autonomia para decidir se, quando e quanto distribuir. O beneficiário, nesse contexto, não tem acesso, controle, fruição nem qualquer garantia de recebimento. Tributar essa expectativa significa antecipar o imposto sobre um fato que ainda não ocorreu.

Além do equívoco jurídico, a interpretação traz consequências práticas alarmantes. É comum, por exemplo, que trusts sejam utilizados para fins sucessórios, instituídos por pais em favor de filhos menores ou herdeiros que sequer conhecem sua condição de beneficiário. Exigir que essas pessoas passem a declarar e tributar bens que não possuem, nem mesmo têm ciência, é afrontar os princípios da razoabilidade, isonomia, capacidade contributiva e segurança jurídica.

Mais grave ainda: caso o instituidor e o beneficiário sejam ambos residentes no Brasil, poderá haver bitributação, com a imputação da mesma base tributável a dois contribuintes distintos. Uma aberração jurídica e fiscal que contraria décadas de doutrina tributária e precedentes do STF.

Do ponto de vista institucional, o impacto é também preocupante. A Lei 14.754/2023 foi concebida para estimular a regularização voluntária e alinhar o Brasil aos padrões internacionais de compliance fiscal. Interpretá-la de forma excessivamente gravosa e dissociada de seus fundamentos pode induzir à evasão, ao desinvestimento e ao descrédito nas soluções legislativas. O trust, figura típica do direito anglo-saxão, não se encaixa perfeitamente nas categorias do direito brasileiro. Isso impõe ao intérprete cautela redobrada. É preciso respeitar os limites da lei e os princípios constitucionais da tributação sobre a renda.

Importa lembrar que soluções de consulta, embora relevantes, são atos administrativos, não vinculantes para os contribuintes. Podem — e devem — ser impugnadas judicialmente quando excedem os limites legais. Ao atribuir, com base apenas na indicação formal, obrigações fiscais ao beneficiário de trust irrevogável e discricionário, a Receita ultrapassa a fronteira entre o planejamento patrimonial legítimo e a presunção de disponibilidade inexistente.

A distinção entre titularidade formal, direito jurídico e disponibilidade econômica é essencial para preservar a racionalidade do sistema. A expectativa de direito não se confunde com o seu exercício. E, sem disponibilidade econômica ou jurídica, não há fato gerador. Não há obrigação tributária.

A Solução de Consulta Cosit 75/2025 merece, assim, ser lida com reserva. Embora procure esclarecer a posição da Receita sobre os conceitos de instituidor e beneficiário, acaba por desorganizar a lógica interna do regime de transparência fiscal recém-estabelecido. O papel do intérprete, diante de um novo marco legal, deve ser o de garantir sua eficácia e previsibilidade e não o de ampliar artificialmente seus efeitos com base em suposições não autorizadas pela lei.

O momento exige serenidade técnica, prudência institucional e firmeza na defesa dos fundamentos constitucionais da tributação. A Receita deve aplicar a lei com equilíbrio; os contribuintes, por sua vez, têm o direito de exigir interpretações compatíveis com o texto legal. A estabilidade do novo regime depende disso.

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