A nova era da pejotização: repercussões das decisões do STF no Carf

Após a última decisão do STF, em abril deste ano, no julgamento do Tema 1.389, sob a sistemática da repercussão geral, a pejotização voltou a ganhar destaque, juntamente com a recente discussão sobre a terceirização das atividades-fim — temas que têm gerado grande repercussão no Brasil nos últimos anos e que já foram analisados pelos conselheiros Fernando Gomes Favacho[1], Ana Carolina da Silva Barbosa e Roberto Junqueira de Alvarenga Neto[2], em coluna publicada no JOTA.

As transformações nas relações de trabalho têm gerado impactos significativos não apenas no mercado laboral, mas também na economia, nas relações público-privadas, na Administração Pública e na esfera tributária, especialmente sob o viés previdenciário, com reflexos diretos na arrecadação da Previdência Social.

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É importante fazer uma reflexão sobre a pejotização e a terceirização.

Atualmente, o termo pejotização pode ser utilizado tanto para descrever uma situação fraudulenta — na qual o empregador coage o trabalhador a constituir uma pessoa jurídica para lhe prestar serviços — quanto para se referir à possibilidade legítima de contratação de pessoas jurídicas para prestação de serviços, seja na atividade-meio ou na atividade-fim da empresa contratante, sendo esta última prática conhecida como terceirização.

Em março de 2024, o STF reconheceu a repercussão geral no Tema 1.291, relativo ao RE 1.446.336, para decidir se existe vínculo empregatício entre motoristas de aplicativo e a empresa criadora e administradora da plataforma digital. O caso não poderia ser de outra empresa senão a própria Uber, que iniciou no mundo todo a prestação de serviço nessa modalidade.

O tema ainda pende de decisão final, e apesar do Tribunal Superior do Trabalho (TST) ter reconhecido a existência de vínculo empregatício entre uma motorista e a citada empresa, o precedente da Corte Suprema é contrário à existência de vínculo empregatício em casos desta natureza[3], assim como em outros casos após inclusive a reforma trabalhista de 2017. Já o TST entendeu que a empresa deve ser considerada uma “empresa de transporte” e não uma “plataforma digital”.

Por outro lado, no Carf, apesar da publicação da Solução de Consulta COSIT 47, de 24/3/2021, e da Solução de Consulta COSIT 109, de 7/6/2023 — que ratificam o entendimento da primeira —, tivemos a oportunidade de julgar o processo 15746.720683/2023-73, Acórdão 2101-002.883, julgado em 5/9/2024.

Nesse caso, com fundamento no princípio da primazia da realidade[4], nos termos do artigo 229, § 2º, do Decreto 3.048/99, a fiscalização autuou a empresa Uber, entendendo que estavam preenchidos os requisitos para configurar vínculo empregatício, com a consequente exigência de contribuições previdenciárias patronais e de terceiros (SEST/SENAT). Contudo, não foi dado provimento ao recurso da Fazenda, que já havia tido decisão desfavorável em primeira instância, sendo a autuação anulada pela DRJ de origem.

Com a reforma trabalhista (Lei 13.467/2017), que alterou o artigo 4º-A da Lei 6.019/1974, passou-se a permitir a terceirização inclusive das atividades-fim, o que afastou a aplicação da Súmula 331 do TST, julgada inconstitucional pelo STF em 2018. O § 2º do mesmo artigo, incluído pela Lei 13.429/2017, estabeleceu que não se configura vínculo empregatício entre os trabalhadores ou sócios das prestadoras de serviço e a empresa contratante. 

É interessante destacar que a Receita Federal do Brasil (RFB) reconhece, em certa medida, a figura da pejotização, uma vez que a Instrução Normativa 2.110/2022, em seu artigo 115, inciso III[5], admite essa modalidade de contratação por profissionais cujo exercício dependa de profissão regulamentada por lei federal, desde que os serviços sejam prestados pessoalmente pelos sócios. Nesses casos, a norma dispensa, em regra, a retenção previdenciária de 11% sobre a nota fiscal ou fatura emitida.

Alguns juristas defendem que as decisões do STF no Tema 725 e ADPF 324 (ambas de 2022) não versam propriamente sobre a pejotização, mas sim sobre a constitucionalidade da terceirização da atividade-fim. Em dezembro de 2020, o STF também reconheceu, na ADC 66/DF, a constitucionalidade do artigo 129 da Lei 11.196/2005, que prevê a possibilidade de prestação de serviços intelectuais por pessoas jurídicas, afastando as características de vínculo de emprego.

Diante de diversas reclamações ajuizadas no STF, o ministro Gilmar Mendes, ao analisar o ARE 1.532.603 (Tema 1.389), determinou, em 14 de abril de 2025, a suspensão nacional de todos os processos que discutem a legalidade da contratação de trabalhadores como pessoa jurídica[6].

A Corte deverá fixar três teses principais:

  1. A pejotização é legal?;
  2. Quem deve provar eventual fraude: o trabalhador ou a empresa?; e
  3. A Justiça do Trabalho é competente para julgar esses casos?

Resta saber se essa suspensão também poderá ser estendida aos processos em trâmite na esfera administrativa fiscal[7]. Apesar de já haver precedentes em que reclamações no STF resultaram no cancelamento de autuações fiscais, a exemplo da Rcl 71838, a decisão atual do STF parece ter, num primeiro momento, alcance restrito à esfera trabalhista, sem previsão de reflexo direto no contencioso administrativo fiscal.

No Carf, até o momento, identificam-se uma média de 45 acórdãos que tratam do tema, sendo 36 deles proferidos a partir de 2020, majoritariamente desfavoráveis ao contribuinte.

Na 2ª Seção, alguns acórdãos reconhecem que a prestação de serviços por pessoa jurídica não é proibida, mas, havendo abuso da personalidade jurídica, desvio de finalidade, confusão patrimonial ou interposição fraudulenta, o vínculo de emprego deve ser reconhecido. É o caso dos Acórdãos 2101-002.942, de 06/11/2024 e 2301-011.422, de 03/09/2024.

A 2ª Turma da Câmara Superior teve uma decisão interessante acerca do tema, onde no Acórdão 9202-011.423, de 21/8/2024,  alegou que a opção pela contratação de pessoa jurídica para a prestação de serviços intelectuais, conforme autorizado pelo artigo 129 da Lei 11.196/2005, está submetida à avaliação de legalidade e regularidade pela Administração Tributária, por inexistirem no ordenamento constitucional garantias ou direitos absolutos, acorde decidido pelo Supremo Tribunal Federal, nos termos do voto da ministra Carmen Lúcia, na Ação Declaratória de Constitucionalidade 66/DF.

Já o Acórdão 2102-003.601, de 5/2/2025, reconheceu vínculo empregatício ao entender que os serviços eram executados pelos sócios das prestadoras sob condições típicas de subordinação, autorizando o enquadramento desses profissionais como empregados pela fiscalização. Decisão semelhante consta do Acórdão 2101-002.982, de 5/12/2024, entre outros.

Na 1ª Seção, o Acórdão 1401-007.301, de 10/10/2024, afastou o vínculo e reconheceu a licitude da contratação de serviços intelectuais personalíssimos por pessoa jurídica, com base na interpretação da ADC 66. A decisão enfatizou que contratos dessa natureza pressupõem maior grau de autonomia do prestador, o que dificulta a caracterização da subordinação típica da relação de emprego.

Esse entendimento aproxima-se do conceito de hiperssuficiente da CLT (artigo 444, parágrafo único), incluído pela reforma de 2017 e pouco abordado nos precedentes do Carf. São profissionais especializados e com ensino superior, com alto grau de instrução e autonomia e tendem a negociar livremente os termos contratuais, diferentemente dos hipossuficientes (artigo 3º da CLT), cuja subordinação e dependência justificam a proteção trabalhista.

O Acórdão 2101-002.824, de 05/06/2024, chegou a mencionar o parecer do professor Fábio Zambitte Ibrahim, que defende a análise da hiperssuficiência para afastar a subordinação e a consequente configuração do vínculo. Contudo, nesse caso, o vínculo foi reconhecido por voto de qualidade.

Por outro lado, o Acórdão 2101-002.830, de 06/06/2024, reconheceu a licitude dos pagamentos sob forma de distribuição de lucros a profissionais hiperssuficientes, e por unanimidade deu provimento ao recurso voluntário, entendendo não haver interposição fraudulenta, inexistindo vínculo de emprego.

Diante disso, é possível que a decisão do STF sobre a pejotização no âmbito trabalhista venha a ter impactos significativos na esfera administrativa fiscal. Também é provável que eventuais lacunas ou conflitos sejam solucionados por meio de alteração legislativa, a cargo do Congresso Nacional, sobretudo diante da potencial perda arrecadatória envolvida.


[1] https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/por-dentro-do-carf/a-pejotizacao-esta-liberada 

[2] https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/por-dentro-do-carf/o-carf-e-a-pejotizacao 

[3] STF, Reclamação n.º 60.347.

[4] Situação de verificação, no caso concreto, dos elementos caracterizadores da qualidade de segurados-obrigatórios ao RGPS, previstos na alínea “a” do inciso I do artigo 12 da Lei nº 8.212/91, onde O fisco, ao constatar a ocorrência da relação empregatícia, dissimulada em contratação de pessoa jurídica, deve desconsiderar o vínculo pactuado e exigir as contribuições sociais sobre remuneração de segurado empregado.

[5] “Art. 115. A contratante fica dispensada de efetuar a retenção na forma do art. 110, e a contratada, de registrar o destaque da retenção na nota fiscal ou fatura, quando: (…)

II – a contratada não possuir empregados, o serviço for prestado pessoalmente pelo titular ou sócio e o seu faturamento do mês anterior for igual ou inferior a 2 (duas) vezes o limite máximo do salário de contribuição, cumulativamente; ou

III – a contratação envolver somente serviços profissionais relativos ao exercício de profissão regulamentada por legislação federal, ou serviços de treinamento e ensino definidos no inciso X do caput do art. 112, desde que prestados pessoalmente pelos sócios, sem o concurso de empregados ou de outros contribuintes individuais.”

[6] “Ante o exposto, determino a suspensão nacional da tramitação de todos os processos que tratem das questões mencionadas nos presentes autos, relacionadas ao Tema 1.389 da repercussão geral, até julgamento definitivo do recurso extraordinário. Comunique-se à Presidência do Tribunal Superior do Trabalho e aos Presidentes de todos os Tribunais Regionais do Trabalho, que deverão informar os juízes sob sua jurisdição acerca o teor desta determinação”.

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