Planos de baixa complexidade ou minimalista: soluções ou problemas para as filas do SUS?

Desde a promulgação da Lei dos Planos de Saúde (Lei 9.656/98) e a criação da estrutura reguladora da saúde suplementar, que criou a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) (Lei 9.961/2000), os agentes privados que operam o setor buscam minimizar os custos e flexibilizar as segmentações ofertadas, em outras palavras, diminuir a oferta de procedimentos como forma de economia.

O entendimento é que qualquer alteração das modalidades de coberturas dos planos deve ser pauta do Congresso Nacional, pela gravidade e impacto que pode gerar, tanto para os beneficiários quanto para o sistema de saúde brasileiro.

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A “popularização” da saúde suplementar, ou o nome que queiram atribuir, pode ter diversos objetivos e os resultados impactam diretamente na saúde do beneficiário e na organização dos sistemas de saúde, em especial no Sistema Único de Saúde (SUS). Certamente impactará na competitividade interna do mercado de saúde suplementar e na sua própria organização.

Para os beneficiários, as preocupações são de diversas ordens. Do ponto de vista da assimetria das relações, estes são sempre os mais frágeis. São os que mais sofrem com a ausência ou dificuldade de acesso às informações sobre as coberturas de seus planos, que nem sempre chegam no momento que mais precisam. 

Por vezes também, e não raro, dificuldades e limitações financeiras fazem desistir de pagar seus planos, enquanto operadoras dialogam apenas de forma burocrática em situações de fragilidade desses beneficiários, sem oferecer alternativas ou negociações mais personalizadas ou direcionadas. O beneficiário, no momento da contratação de seu plano, não consegue projetar as suas necessidades futuras. A saúde não pode ser comparada a aquisição de nenhum produto.

O rol de procedimentos da ANS é um parâmetro mínimo dos procedimentos cobertos pelos planos. O rol é elaborado visando a integralidade da atenção à saúde, um dos princípios constitucionais. Com as mudanças provenientes da Lei 14.454/2022, as alterações do rol tornaram-se mais dinâmicas, pois sua revisão deixou de ser a cada dois anos, para uma análise a cada pedido, além da incorporação de todos procedimentos que forem incorporados ao SUS.

Novas tecnologias não podem esperar demais para serem incorporadas, tendo em vista que podem ser as melhores alternativas terapêuticas ou com melhor custo-benefício. Assim, o objetivo do rol é de que as necessidades de saúde do cidadão estejam minimamente assistidas pelo plano de saúde contratado. A informação sobre a cobertura de cada plano não é simples nem tão fácil de acessar, além da dificuldade de obter as informações claras e transparentes sobre as coberturas.

De certo, que acesso às informações está cada dia mais fácil, em especial com instrumentos de tecnologia que permitem alcançar as informações em tempo mais adequado. Mas, a incerteza da continuidade dos tratamentos será sempre angustiante. Imaginem um cidadão que tenha um plano nessa nova modalidade e que não tenha direito de acessar às consultas, exames ou mesmo tratamentos mais especializados no sistema suplementar. Terá de buscar a continuidade do seu cuidado no SUS e provavelmente em momentos de mais sofrimento.

Para agilizar seu cuidado em saúde adquire um plano de saúde de baixa complexidade e consegue, no máximo, seu diagnóstico, ainda assim, limitado a exames de baixa complexidade. A angústia continuará, pois na parte mais sensível de solução de seus problemas de saúde terá de recorrer ao SUS, e não “escapará” da fila que tanto o preocupa.

Atualmente a modalidade de plano ambulatorial já existe. Mas, com obrigatoriedade de cobertura de urgência e de 24 horas de internação e com o conjunto dos procedimentos realizados ambulatoriamente. Tempo mínimo para estabilizar o paciente e ter possibilidade de transferência para o SUS, se for necessário. É exatamente nessa questão e os tratamentos crônicos, Terapia Renal Substitutiva, tratamentos oncológicos e exames de alta complexidade, que desestimulam as operadoras a comercialização deste produto.

O itinerário do paciente dos planos minimalistas no sistema de saúde brasileiro será misto, entre público e privado. Quem regulará isso? Que estrutura no sistema de saúde tem capacidade de organizar essa engenharia? É possível a atenção especializada do SUS ter duas portas de entrada, sem que haja um processo de furar a fila? 

Agora, refletindo sobre o aspecto da organização do sistema de saúde, certamente se avizinha um outro grande desafio. A análise que a ANS fez sobre o SUS, ao menos citada, é que há uma “fila” nas consultas básicas. Realmente o acesso pode não estar tão facilitado, ou tão rápido quanto os pacientes gostariam ou necessitam. Mas, hoje existem em torno de 50 mil estabelecimentos de atenção primária em saúde no SUS para atender aos milhões de brasileiros dependentes unicamente do SUS, além dos beneficiários de planos de saúde, que recorrem ao SUS para a realização de diversos procedimentos.

Há, ainda, desafios importantes no SUS, especialmente, no acesso às consultas, exames e terapias especializadas, nas cirurgias e no cumprimento dos prazos legais para cuidado dos pacientes com câncer. Sendo, inclusive, uma das metas do governo federal e do Ministério da Saúde a ampliação do acesso a esses procedimentos.

O famoso conceito de “desafogar o SUS” não passa por diminuir a “fila” na atenção básica, mas sim dar conta de ampliar o acesso e encurtar os prazos para atendimentos de média e alta complexidade. Esse é um grande desafio que passa por maiores investimentos, reorganização de processos e parcerias com o setor privado e suplementar para fornecimento de serviços, novas formas de gestão. Definitivamente aumentar a fila no SUS dos procedimentos mais complexos não só desorganiza o sistema, como deixa os pacientes mais vulneráveis.

Essa solução é absolutamente enviesada e produzida com um olhar de apenas para parte do sistema de saúde brasileiro. É não querer enxergar a real necessidade do SUS. Pode-se usar outros argumentos, como oportunidades de negócio, organizar um setor margeado de regulação ou até mesmo repensar o modelo de sistema universal alterando-o para o de cobertura universal, sendo este último o mais preocupante de todos. 

Não podemos fechar os olhos para os novos modelos de negócio que aparecem. Podem ser sempre oportunidades para novos investimentos e de novas parcerias que otimizem a relação público-privada. Lembram-se das administradoras de planos de saúde? Começaram a tomar corpo no mercado e precisaram ser regulados. Estão estabelecidos hoje como um modelo de negócio que ampliou o acesso de beneficiários aos planos de saúde. Por outro lado, este segmento, bem como as outras modalidades de planos de saúde, ainda carecem de ajustes e de um novo olhar regulatório. 

Existem clínicas populares e cartões de desconto que estão à margem da regulação suplementar. Se este segmento se dispõe a ofertar alguma ação próxima com uma atenção à saúde ofertada pelos planos de saúde, é necessário submeterem-se às regras do Estado.

O cidadão não pode e não deve ser enganado, como se estes estivessem adquirindo um plano de saúde no formato regulado. A integralidade da atenção à saúde não é disponibilizada. Isto prejudica o cidadão, e as demais operadoras que seguem as regras da ANS tornando-se uma competição desleal. Essa oferta de serviços migrará para o modelo de planos acessíveis? 

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Não menos importante, o processo de debate de um novo modelo de produto, em especial que possa trazer riscos à saúde dos beneficiários, bem como desequilibrar o sistema de saúde, não pode ser feito de forma açodada, ou sem um olhar dos gestores de saúde. O sandbox não pode substituir instrumentos como Análise do Impacto Regulatório ou até descumprimento da agenda regulatória. Muito menos, ser olhado apenas pelo viés dos operadores que se interessam pelo novo nicho de mercado.

Não existe “novidade” no produto ofertado. Esse tipo de plano era a mais comum antes da Lei 9656/98. Se trata de um retorno ao passado. Trará ainda mudanças importantes na estrutura do mercado regulado, não só pelo surgimento de inúmeras empresas sem condições de operação, como pela possibilidade de rebaixamento dos planos ofertados pelas empresas aos seus empregados, reduzindo assim, a cobertura dos planos já existentes. 

Conass, Conasems, CNS e Ministério da Saúde se debruçaram suficientemente para inferir os impactos na organização dos sistemas de saúde local? Os espaços de audiência pública e consulta pública não são suficientes para um debate tão denso que tanto pode impactar no sistema de saúde brasileiro.

Torcemos pela melhoria da saúde de toda população brasileira e pela melhoria dos sistemas de gestão públicos e privados. Acreditamos em novas formas e alternativas que reorganizem o SUS e a saúde suplementar e que estes tenham capacidade de interações e inteligências que melhorem a gestão de ambos os sistemas. Nesse ganha-ganha quem mais ganha é o cidadão brasileiro. 

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