Não é novidade que o planejamento urbano e adensamento populacional representam duas das principais preocupações das municipalidades. Tais questões são especialmente relevantes nas capitais brasileiras mais populosas em que o crescimento populacional não foi planejado e o processo de favelização acentuado suplantou qualquer tentativa de organização urbana.
Somado a isso, boa parte dessas capitais possuem construções urbanas de relevância histórica, cujas edificações são objeto de preservação e proteção, estrangulando ainda mais o potencial de exploração imobiliário dos seus territórios.
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Isso tudo sem mencionar eventuais áreas de preservação ambiental que, apesar de trazerem inúmeros benefícios para as cidades, obviamente restringem a exploração construtiva de grandes lotes urbanos.
Nesse sentido, o instituto previsto no artigo 35 do Estatuto da Cidade (Lei 10.257/2001) pode ser uma solução para o aumento da exploração imobiliária em regiões em que a subutilização territorial se faz necessária para a preservação de patrimônio histórico ou ambiental.
Este dispositivo legal prevê a possibilidade de que municípios regulamentem a transferência do potencial construtivo para fins de:
- implantação de equipamentos urbanos e comunitários;
- preservação de patrimônio histórico, ambiental, paisagístico, social ou cultural; e
- servir a programas de regularização fundiária.
E o que isso significa na prática? Os municípios podem definir zonas de preservação e áreas receptoras de potencial construtivo a fim de que isso seja negociado entre os particulares. Assim, imóveis que possuem sua capacidade de exploração restrita, por exemplo, por tombamento, podem ceder a capacidade de edificação vertical não explorada para outros imóveis presentes nas áreas receptoras. Os valores levantados dessa forma devem ser revestidos para manutenção e revitalização do patrimônio que se busca preservar.
Esse assunto não é uma inovação do Estatuto da Cidade, Belo Horizonte (MG) já previa o instrumento da Transferência do Direito de Construir no Plano Diretor de 1996 (Lei Municipal 7.165/1996). Atualmente, a capital mineira regulamenta a questão entre os artigos 51 a 56 do Plano Diretor de 2019 (Lei Municipal 11.181/2019).
A Lei Municipal de Curitiba (PR) 6.337/1982 já previa o incentivo construtivo para a preservação de imóveis de valor cultural, histórico ou arquitetônico. O antigo Plano Diretor de Natal (RN) (Lei Complementar 7/1994) previa a transferência de potencial construtivo para fins de preservação de zonas de proteção ambiental e teve sua abrangência ampliada com o Plano Diretor atual (Lei Complementar Municipal 208/2022).
No entanto, ainda que essa solução administrativa seja conceitualmente boa, nem sempre traz resultados práticos efetivos. De um lado, temos os casos em que há enorme quantidade de exigências (ou restrições) às áreas receptoras, dificultando encontrar interessados na aquisição do direito de construir. De outro lado, há cenários em que a ausência de intervenção municipal pode gerar diversas externalidades negativas à vizinhança do imóvel que adquire o potencial construtivo.
A título de exemplo, Belo Horizonte limitou a abrangência das regiões receptoras ao entorno dos imóveis tombados, pouco valorizados, o que tornou o instrumento pouco atraente para investidores. Já no caso de Natal (RN), o Plano Diretor de 1994 não estabeleceu limites para a verticalização das edificações nas áreas receptoras, fazendo com que regiões com previsão de imóveis de 10 a 12 pavimentos passassem a ter 30 andares.[1]
No último ano, na capital carioca, esse instituto administrativo ganhou os holofotes da paixão nacional: o futebol. A venda de potencial construtivo se tornou a panaceia para a solução dos problemas do Vasco e do Flamengo. O Vasco, com o objetivo de modernizar e revitalizar seu estádio, conseguiu junto a Lei Complementar Municipal 272/2024 instituir a Operação Urbana Consorciada do Estádio de São Januário.
A legislação complementar foi promulgada em julho de 2024 e regulada pelo Decreto 55.511/2024 de dezembro, mas o clube vem relatando dificuldade em encontrar interessados. Vale lembrar que o município instituiu uma taxa extra excepcional para o adquirente do potencial construtivo de R$ 150 por metro quadrado transferido, o que, por certo, desestimula o interesse de investidores.
Já o Flamengo busca viabilizar a venda do potencial construtivo de sua sede na Gávea para conseguir levantar capital para construção de seu estádio. Ainda que a área de sua sede fique em região com restrição construtiva decorrente do tombamento da Lagoa Rodrigo de Freitas, a equipe rubro-negra irá enfrentar uma dificuldade técnica a mais com o seu plano.
Uma vez que a lei atrela diretamente a transferência do direito de construir à manutenção do próprio bem protegido, o mais querido do Brasil precisará atrelar a venda do potencial edificante de sua sede na Gávea (protegido por tombamento) à construção do seu estádio (implantação de equipamentos urbanos). Não é impossível, mas é mais complexo do que o caso vascaíno.
Independentemente disso, ainda que o mecanismo seja implementado com todos os cuidados técnicos necessários, o Flamengo irá enfrentar, no mínimo, a mesma dificuldade encontrada pelo seu rival: encontrar um interessado. O problema relatado pelo cruzmaltino não se trata apenas de uma questão de precificação, o sucesso na política de direito construtivo depende do equilíbrio entre interesses que não é simples.
Em vista das experiências já relatadas, para que a venda de potencial construtivo seja bem-sucedida, o município precisa de, pelo menos, três condições a serem sopesadas.
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Primeiro, precisa apontar áreas receptoras do direito construtivo com potencial econômico imobiliário que interessem ao mercado. Segundo, é necessário impor limitações nas áreas receptoras que evitem transtornos paisagísticos e urbanísticos aos imóveis vizinhos. E, por último, o município precisa fazer isso tudo sem onerar excessivamente a operação a ponto de afastar possíveis interessados.
Apenas o futuro vai dizer se essa política ainda vai ter um desfecho positivo no caso dos times cariocas. Seja qual for o resultado, vale a nossa atenção, uma vez que essa experiência servirá como um excelente estudo de caso para identificar uma forma alternativa de financiamento da expansão urbana já que o futebol que move mentes e corações, também move muito dinheiro.
[1] Vide nota técnica 23/2020 do Sistema Integrado de Planejamento e Gestão Urbana (SIPlan) e Comitê Técnico Permanente de Acompanhamento do Plano Diretor da Cidade do Rio de Janeiro (CTPD), disponível em: <https://www.rio.rj.gov.br/documents/91237/670f0b1c-ae76-4f17-946d-4ef4c301b68f>. Acesso em 22.04.2025.