O Brasil atravessa um dos períodos mais críticos de desmonte das garantias sociais conquistadas ao longo do século 20, fruto da luta coletiva contra condições laborais extenuantes e indignas.
Esses direitos foram consolidados na Constituição de 1988, especialmente no artigo 7º, mas apesar de sua importância, Darcy Ribeiro[1] lembrava com frequência que o Brasil, último país a acabar com a escravidão, guarda uma perversidade intrínseca “que torna a nossa classe dominante enferma de desigualdade, de descaso”. E é justamente essa perversidade que ameaça continuamente as conquistas históricas dos trabalhadores.
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Em breve resumo histórico dessas hostilidades aos direitos sociais, o senador Aloysio Nunes Ferreira (PSDB-SP), inspirado nas recomendações expedidas pelo Banco Mundial (Documento Técnico 319) e na ideologia que anima o Consenso de Washington, em 1999 protocolou uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC) prevendo o fim da Justiça do Trabalho. A proposição, derrotada pelo engajamento da sociedade, mirava órgão constitucionalmente definido como responsável pela aplicação dos direitos laborais, o que desde então já demonstrava uma certa aversão ao Judiciário trabalhista.
Cinco anos depois, ao invés de extinta, a Justiça do Trabalho teve suas competências ampliadas pela Emenda Constitucional 45, passando a contemplar todas as relações de trabalho, e não apenas as de emprego. Ainda assim, a jurisprudência reacionária manteve viés contrário à ampla efetividade dos direitos sociais, rechaçando aspectos relevantes desse novo regime de competência, muitas vezes sem base teórica aceitável[2].
Em um novo ciclo de ações desconstrutivas, a partir de 2015 somaram-se ataques ao Judiciário laboral, orquestradas por personagens ligados ao setor financeiro e empresarial, como Ricardo Barros e Rodrigo Maia. Barros, que em declaração pública registrada em vídeo[3] disse ter “alergia à Justiça do Trabalho”, como relator do orçamento federal de 2016 propôs corte de 50% nas dotações de custeio e 90% nos recursos para investimento desse ramo do Judiciário. A justificativa? Pressionar juízes a reverem suas decisões e viabilizar “reformas” trabalhistas.
A proposta foi aprovada pelo Congresso Nacional e mesmo com o evidente desvio de finalidade nessa atuação legislativa, afrontando a independência do Judiciário, por um dos seus mais importantes segmentos, a presidente Dilma Rousseff não vetou esses cortes, embora alertada a respeito, enquanto o STF, ciente dessa tentativa de asfixiamento orçamentário, rejeitou a ADI 5468, ajuizada pela Anamatra para questioná-lo[4].
Não bastasse, no ano seguinte, em 2017, o então presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia, declarou publicamente que “a Justiça do Trabalho não deveria nem existir”. Naquele mesmo ano, foi aprovada a Lei 13.467/2017, responsável por promover uma profunda reforma da CLT, suprimindo direitos históricos, invertendo princípios basilares do Direito do Trabalho e ampliando de forma indiscriminada a terceirização para todas as atividades das empresas, inclusive as finalísticas.
A esse processo de redução de direitos somaram-se manifestações de integrantes do Poder Judiciário, desde personagens menores da própria Justiça do Trabalho, mensageiros da precarização, até o ministro Gilmar Mendes, notório defensor da desregulamentação das relações laborais que, entre tantas declarações infelizes, minimizou a gravidade do trabalho análogo à escravidão no Brasil[5], ironizando a sua condição exaustiva de trabalho como magistrado como sendo comparável a essa prática.
Em novas declarações públicas, na mesma época, atacou[6] o Tribunal Superior do Trabalho (TST) acusando a instituição de ser uma corte aparelhada, laboratório do PT e com atuação “antagônica ao capital”, chegando a sugerir que seus integrantes poderiam compor até mesmo um tribunal da extinta União Soviética.
A ideia de enfraquecimento da Justiça do Trabalho prosseguiu no governo Bolsonaro quando em entrevista concedida ao SBT, em janeiro de 2019, pouco após sua posse, o ex-presidente manifestou a intenção de extinguir o Judiciário trabalhista ou, quando menos, transferir suas atribuições para a Justiça comum, como defendem alguns hermeneutas na atualidade, alegando que representava um “excesso de proteção” ao trabalhador. Ao tomar posse, não levou adiante a ideia, mas extinguiu o Ministério do Trabalho.
Na mais nova versão, esses ataques se aprofundam com o avanço da pejotização e a relativização da competência da Justiça do Trabalho pelo STF aparentando ganhar força, nesse contexto, a visão de que o contrato regido pela CLT é apenas uma opção entre outras formas contratuais supostamente legítimas.
A Reclamação 72.458[7] é exemplo dessa narrativa ao nela se afirmar que a Justiça do Trabalho não seria competente para examinar contratos civis de prestação de serviços, mesmo quando há indícios de fraude e disfarce de vínculo empregatício. Ignora-se até mesmo, nesse ponto, a teoria da asserção — consagrada na jurisprudência há décadas, inclusive no STF— segundo a qual a competência se define pela causa de pedir e pedidos contidos na petição inicial, independente da narrativa fática vir a se confirmar na análise de mérito.
Essa compreensão vem sustentada, aliás, em diversas decisões do STF e do STJ, como nos precedentes ARE 1.528.630, Rcl 73.949, Rcl 73.300, AgInt no AREsp 894.141. Desconsiderá-los é romper com o princípio do juiz natural e enfraquecer a proteção jurídica do trabalho.
A prevalecer o entendimento da Rcl 72.458, não apenas se fragilizam as garantias sociais do artigo 7º da CF, como se instauram prejuízos econômicos à ordem fiscal. Nesse sentido, a Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (PGFN) alertou o STF de que a pejotização traz “consequências nefastas” à arrecadação tributária e ao financiamento da Previdência, destacando a evasão de imposto de renda e de contribuição patronal.
Mas isso não ocorre apenas com o imposto de renda e com a contribuição patronal. É que embora o microempreendedor ou empresário individual pejotizado sejam segurados obrigatórios da Previdência, em alguns casos o recolhimento de suas contribuições não se dá na fonte, mas de forma voluntária, o que também gera inadimplência, especialmente entre os que vivem em condições precárias, obrigados a priorizar os custos imediatos de subsistência e a postergar os recolhimento ao INSS, afetando tanto a arrecadação quanto a proteção previdenciária desses trabalhadores que, nessas situações, deixam de reunir tempo ou valores para ter acesso a benefícios como auxílio-doença ou aposentadoria.
Para Nelson Marconi, economista da FGV ouvido em reportagem do Valor Econômico, o avanço da pejotização sobre metade dos vínculos celetistas pode gerar impacto de R$ 380 bilhões nas contas públicas. E foi para evitar esse colapso que a PGFN defendeu junto ao STF que a livre iniciativa deve ser compatibilizada com os artigos 3º, 9º e 442 da CLT, preservando o princípio da verdade real, consagrado na clássica doutrina de Américo Plá Rodríguez[8] ao ensinar que “em casos de discordância entre o que ocorre na prática e o que emerge de documentos ou acordos, deve-se dar preferência ao primeiro, isto é, ao que sucede no terreno dos fatos”.
Caso prospere a linha defendida pelo relator da Rcl 72.458, viola-se não apenas a Constituição de 1988, mas os fundamentos internacionais de proteção ao trabalho, expressos na Declaração da Filadélfia (1944) ao enunciar que “a) o trabalho não é uma mercadoria; b) a pobreza (…) constitui um perigo para a prosperidade geral; (…) d) todos os seres humanos têm o direito de assegurar o bem-estar material e o desenvolvimento espiritual dentro da liberdade e da dignidade, da tranquilidade econômica e com as mesmas possibilidades”.
Como destaca José Joaquim Gomes Canotilho[9], o princípio da democracia econômica e social impõe limites à atuação estatal, notadamente por meio da proibição de retrocesso social. Segundo ele, são inconstitucionais medidas que, sem a criação de esquemas alternativos ou compensatórios, resultem na prática em anulação, revogação ou aniquilação do núcleo essencial dos direitos sociais.
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Nessa mesma linha, Ingo Wolfgang Sarlet[10] ressalta que a dignidade da pessoa humana não pode ser considerada respeitada quando os indivíduos se veem submetidos a um grau de instabilidade jurídica tão profundo que já não conseguem confiar minimamente nas instituições sociais e estatais — inclusive no próprio Direito —, nem tampouco manter uma expectativa razoável quanto à estabilidade de suas posições jurídicas.
Se no século 20 a humanidade enfrentou guerras, holocaustos, jornadas exaustivas e salários indignos, mas foi capaz de construir um projeto civilizatório alicerçado no valor do trabalho digno, nos dias atuais o enfraquecimento do pacto social firmado na Constituição de 1988 nos conduzirá ao cenário desenhado por Boaventura de Sousa Santos[11] ao destacar que a corrosão do contrato social sob o avanço do neoliberalismo, abandonando a lógica de direitos coletivos e solidariedade em favor de um contratualismo individualista e possessivo, excluirá vastas parcelas da população das garantias básicas de cidadania, tornando-as invisíveis ou descartáveis aos olhos do Estado e da sociedade, sem acesso a direitos mínimos, vivendo à margem do pacto civilizatório e mergulhados em um “novo estado de natureza” que o autor identifica como expressão de um “fascismo social”, caracterizado pela naturalização da exclusão e da desigualdade extremas.
Portanto, defender o trabalho digno, a seguridade social e a Justiça do Trabalho é lutar pela própria ideia de democracia substancial e pelo Estado de Direito como instrumento de justiça e inclusão. É, sobretudo, afirmar que o Brasil não pode se render à barbárie desumanizante que transforma cidadãos em sujeitos descartáveis e o trabalho em mercadoria.
[1]-O POVO BRASILEIRO – Grupo Editorial Global
[2] -nunca foram capazes – ou não quiseram- entender, por exemplo a distinção conceitual entre relação de emprego e relação de trabalho ou entre empregado e trabalhador.
[3]https://www.youtube.com/watch?v=mllh7ySkpaY
[4]-Talvez o destino desse julgamento fosse outro se a investida do Legislativo mirasse, à época, a operação Lava Jato ou o próprio orçamento do Supremo Tribunal.
[5]–https://g1.globo.com/politica/noticia/gilmar-diz-que-faz-trabalho-exaustivo-mas-nao-considera-que-seja-escravo.ghtml
[6]–https://g1.globo.com/sp/vale-do-paraiba-regiao/noticia/gilmar-mendes-chama-tribunal-superior-do-trabalho-de-laboratorio-do-pt.ghtml
[7]-Relator o Min. Gilmar Mendes
[8]“PRINCÍPIOS DE DIREITO DO TRABALHO” – LTr .
[9] – DIREITO CONSTITUCIONAL – Almedina , 1998, p. 320-321.
[10]-A Eficácia dos Direitos Fundamentais: uma Teoria Geral dos Direitos Fundamentais na Perspectiva Constitucional
[11] –“SE DEUS FOSSE UM ATIVISTA DOS DIREITOS HUMANOS”- Editora Cortez , in litteris : “o contrato social, concebido como raiz fundacional da modernidade ocidental, está a transformar-se numa opção entre muitas outras. Assim deve ser lido o movimento neoliberal de recuo em relação ao contrato social e em direção ao contratualismo individualista e possessivo”, de modo que “grupos sociais cada vez mais vastos são expulsos do contrato social (..) ou que a ele sequer têm acesso tornando-se populações descartáveis. Sem direitos mínimos de cidadania são, de fato, lançados num novo estado de natureza, a que chamo fascismo social”.