O tempo não apenas flui, ele transforma tudo e todos. Para a sociedade contemporânea, essa transformação, quando associada ao envelhecimento, torna-se uma maldição. Envelhecer significa, muitas vezes, perder oportunidades, voz e reconhecimento. O filme A Substância ilustra essa realidade, evidenciando que a jovialidade é o parâmetro para definir quem merece existir plenamente e quem, gradualmente, deve ser esquecido.
Um dos diálogos do filme merece destaque: a cena em que, dias após o acidente de carro, Elisabeth (Demi Moore) reencontra o enfermeiro que lhe apresentou a substância capaz de restaurar sua juventude. Agora envelhecido, ele a encara com um misto de frustração e resignação antes de lhe dizer: “Fica cada vez mais difícil lembrar que você ainda merece existir! Que essa parte de você ainda vale algo, que você ainda importa!”.
O que se retrata aqui é o abandono social que vem com o envelhecimento. As palavras ditas descrevem um fenômeno coletivo: ao ser categorizada como idosa, a pessoa não apenas deixa de ser vista e ouvida, mas tem seu próprio valor e dignidade humana questionados.
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Esse processo de apagamento é tratado na obra cinematográfica, na qual se contrasta o viver de Elisabeth e Sue. Enquanto Sue, sua versão jovem e “melhorada”, vive intensamente, ganha ascensão profissional, reconhecimento e desfruta de uma vida social vibrante, Elisabeth passa os sete dias que lhe pertencem confinada em casa, cozinhando e assistindo TV. Enquanto a juventude é celebrada e impulsionada, a velhice é restrita à solidão e à passividade.
O que A Substância denunciou na ficção se concretizou de forma quase cínica na realidade. Na premiação do Oscar 2025, realizada em 2 de março, Demi Moore, que no filme interpreta uma mulher descartada pela indústria e pela sociedade devido à idade, experimentou o mesmo destino fora das telas.
Apesar de sua performance memorável, foi novamente relegada ao segundo plano, enquanto o prêmio de Melhor Atriz foi concedido a Mikey Madison (25) por Anora. Seu talento é inegável, mas o resultado reforça um padrão persistente: a juventude ainda ocupa o centro do reconhecimento, provando que a lógica etarista persiste – dentro e fora da ficção.
Entre as indicadas estavam Fernanda Torres (59) por Ainda Estou Aqui, Demi Moore (62) por A Substância, Karla Sofía Gascón (52) por Emilia Pérez e Cynthia Erivo (38) por Wicked, atrizes de diferentes gerações cujos desempenhos excepcionais não foram suficientes para romper a lógica que, historicamente, favorece intérpretes mais jovens. É claro que estamos diante de uma questão que perpassa um recorte de gênero, pois o tempo, que para uns (homens) amplia possibilidades, para outras (mulheres) se impõe como limite.
O processo de indignidade ocasionado pelo envelhecimento vai além do mercado de trabalho ou do entretenimento. Ele ocorre em todas as esferas da vida, seja quando as opiniões das pessoas idosas são constantemente desconsideradas ou ignoradas, sua autonomia é questionada e sua presença, muitas vezes, tratada como incômoda.
Esse cenário se agrava com a segregação digital, que limita o acesso dessas pessoas à vida pública, e com a infantilização da pessoa idosa, que reforça a ideia de que ela não pode mais decidir por si mesma.
As leis tentam conter essa realidade. O Estatuto do Idoso (Lei 10.741/2003) garante formalmente direitos como dignidade, participação e igualdade de oportunidades. No âmbito internacional, a Convenção Interamericana sobre a Proteção dos Direitos Humanos dos Idosos e os princípios da ONU estabelecem diretrizes contra a discriminação etária. Mas essas normas, por si só, não mudam uma cultura que continua a associar valor exclusivamente à juventude.
Vive-se, há muito tempo e a cada dia mais, um paradoxo, pois, ao mesmo tempo em que a experiência e a maturidade são exigidas, impõe-se um padrão que valoriza a juventude. Quer-se ambas simultaneamente, ignorando que são conceitos antagônicos. Afinal, para se ter experiência, pressupõe-se tempo, o que não se alinha com a juventude.
O envelhecimento não pode ser sinônimo de exclusão. A sociedade precisa redefinir sua relação com o tempo e reconhecer a dignidade da velhice.
A pesquisadora Patrícia Novais Calmon[1] destaca a urgência de repensar a construção social da velhice, ressaltando que essa mudança deve abranger todas as faixas etárias. Para ela:
[…] é indispensável que se repense a forma pela qual se constrói socialmente a velhice, bem como as características e atributos que a ela se agregam. E essa tarefa deve incluir todos os grupos etários sociais, alterando-se essa percepção nefasta por parte de crianças, adolescentes, adultos e, até mesmo, de idosos. Todos esses grupos precisam dissociar tais conceitos estereotipados, bem como o medo e a rejeição do envelhecimento (alguns chegam a ter gerascofobia, isto é medo irracional e incontrolável de envelhecer). Afinal, toda conduta humana é baseada em exterioridade e interioridade, isto é, em como ela se apresenta diante de terceiros e em como ela se assume para si.
No entanto, a estrutura social e jurídica ainda opera com um viés etarista, perpetuando a marginalização da pessoa idosa e reforçando estereótipos que reduzem seu papel na sociedade. O Direito, longe de ser uma instância neutra, constrói e reproduz essas exclusões, conforme argumenta Edelman (1999), ao afirmar que a norma jurídica não apenas reflete a realidade social, mas a inventa, legitimando relações de poder e hierarquizações[2].
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A transformação desse cenário exige uma abordagem que vá além da formalidade normativa, incorporando uma leitura interseccional que evidencie os múltiplos fatores de opressão que operam simultaneamente.
O Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero[3], do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), é um marco nessa direção, pois reconhece que a aplicação do Direito não pode ignorar os impactos das desigualdades estruturais na interpretação jurídica. Embora focado na desigualdade de gênero, o protocolo estabelece diretrizes que permitem um olhar interseccional, essencial para compreender como fatores como idade, classe e gênero interagem na perpetuação da exclusão social.
A aplicação desse protocolo pode reorientar a prática judicial, garantindo que magistradas e magistrados evitem decisões que reforcem a marginalização da pessoa idosa e promovam uma interpretação das normas que efetivamente assegure direitos e dignidade.
A perspectiva interseccional permite romper com essa lógica ao evidenciar como a exclusão da pessoa idosa não ocorre isoladamente, mas se cruza com outras formas de discriminação, como gênero e classe. Para que o reconhecimento jurídico da velhice seja efetivo e não apenas formal, é essencial ressignificar o papel social da idade avançada dentro do ordenamento jurídico.
O Direito determina quem é reconhecido e quem é marginalizado. Essa marginalização da pessoa idosa reflete uma normatividade jurídica que privilegia a juventude e a produtividade. Enquanto a aplicação da lei permanecer presa a uma falsa neutralidade, a velhice seguirá relegada à obsolescência. O Direito deve ser um instrumento de inclusão, assegurando que envelhecer não signifique perder dignidade e direitos.
O tempo avança e, independentemente das tentativas de retardar seus efeitos, todos envelhecem. A pergunta que permanece é: quando chegar a nossa vez, ainda teremos nosso valor reconhecido? Enquanto não mudarmos essa lógica, seguimos condenados a um ciclo de exclusão que, inevitavelmente, nos alcançará.
[1] CALMON, Patrícia Novais. Direito das Famílias e da Pessoa Idosa. 3. ed. Indaiatuba, SP: Editora Foco, 2025.
[2] EDELMAN, Bernard. Quand les juristes inventent le réel. Paris: Flammarion, 1999.
[3] CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA (Brasil). Protocolo para julgamento com perspectiva de gênero. Brasília, DF: CNJ, 2022. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/programas-e-acoes/protocolo-para-julgamento-com-perspectiva-de-genero/. Acesso em: 18. mar. 2025.