A dívida ativa dos devedores contumazes no setor de combustíveis saltou 20% nos últimos seis meses, conforme projeção do Instituto Combustível Legal (ICL), divulgada no último dia 16. O valor, que neste mês alcançou R$ 203 bilhões, ajuda a explicar por que o Ministério da Fazenda definiu como prioridade do governo para 2025 o projeto de lei que estabelece normas para aprimorar a identificação e o controle de devedores contumazes.
Atualmente, tramitam no Congresso pelo menos dois projetos relevantes voltados à revisão do tratamento legal dos devedores contumazes: o PLP 125/2022 e o PLP 164/2022. Este último, aprovado pela Comissão de Constituição e Justiça do Senado no último dia 9, foi originalmente apresentado com o propósito de estabelecer normas gerais para a identificação e o controle desses devedores, tendo como objetivo declarado a prevenção de distorções concorrenciais.
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De fato, para além dos efeitos nefastos mais óbvios das práticas de sonegação fiscal sobre a economia, como perda de arrecadação, incentivo ao crime organizado e estímulo à venda de produtos de baixa qualidade, o agente que faz do não recolhimento de tributos seu modelo de negócios traz um desequilíbrio imediato ao ambiente concorrencial.
Não é incomum que empresas adotem a evasão fiscal como estratégia competitiva, obtendo vantagem expressiva em ambientes com elevada carga tributária, como os mercados de combustíveis, tabaco e bebidas alcoólicas.
A tributação interfere na concorrência por impactar o custo de produtos e serviços. O inadimplemento de tributos, em especial de impostos indiretos, dá ao contribuinte que não os pagou vantagem extraordinária em relação aos que pagaram. A atuação de empresas que reiteradamente deixam de pagar tributos acaba sendo uma barreira à entrada relevante nos mercados em que isso ocorre, afastando competidores e criando uma espécie de seleção negativa em evidente prejuízo do consumidor.
Entretanto, em que pese essa relação bastante direta com a existência de danos à concorrência, até hoje o tratamento do tema pela autoridade concorrencial brasileira, o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) oferece mais perguntas do que respostas.
Em levantamento realizado pela obra Concorrência e Tributação[1], de 2019, a análise da jurisprudência do Cade sobre o tema apontou que a autoridade historicamente se mostrou reticente em examinar denúncias de infrações à ordem econômica que envolvam diretamente condutas de natureza tributária. Com efeito, apesar do fato inconteste que tais práticas possam gerar efeitos anticoncorrenciais, não há registros conhecidos de condenações por condutas dessa natureza.
O estudo supracitado identificou que um dos argumentos utilizados pelo Cade para evitar a análise de condutas desse tipo é o entendimento de que as distorções concorrenciais decorrentes da evasão fiscal, por resultarem do descumprimento de normas tributárias — e não da legislação concorrencial —, configurariam situações pontuais, passíveis de correção imediata a partir da regularização das obrigações fiscais.
No entanto, a realidade se mostra mais complexa, na medida em que devedores contumazes costumam construir complexos arranjos societários e tributários voltados ao inadimplemento ilícito, se aproveitando de brechas legais e regulamentares para obstruir qualquer tentativa de regularização e assim perpetuar as vantagens competitivas que obtêm a partir da sonegação.
O próprio ministro da Fazenda, Fernando Haddad, no último dia 10, resumiu esse modus operandi ao afirmar que: “O devedor contumaz está numa condição de concorrência muito satisfatória, porque não paga nada [de imposto], depois a empresa fecha e ele abre outra”.[2]
Diante desse cenário, parece evidente que o Cade pode – e deve – avançar. E, de fato, nas ocasiões mais recentes em que a autarquia se debruçou sobre a atuação dos chamados devedores contumazes, foi possível observar relativo amadurecimento em sua abordagem.
É o que se nota, por exemplo, no Inquérito Administrativo 08700.002532/2018-33, instaurado a partir de denúncia da Associação Brasileira de Combate às Fraudes de Combustíveis (ABCFC) contra a Rodopetro. A acusação apontava que a empresa estaria deliberadamente deixando de recolher tributos como forma de praticar preços artificialmente baixos no mercado de distribuição de etanol. Posteriormente, o escopo da apuração foi ampliado em razão de denúncia para incluir também a Refinaria de Manguinhos, a 76 Oil e outras distribuidoras.
Apesar de a Superintendência-Geral ter optado pelo arquivamento do caso, um pedido de avocação feito pelo conselheiro Luis Braido levou o tema à discussão no Tribunal do Cade. Na ocasião, ainda que uma dúvida em torno da existência de posição dominante por parte da Rodopetro e das demais representadas tenha servido de justificativa para o arquivamento definitivo do caso, ficou firmado um entendimento relevante: há, sim, pertinência concorrencial em investigações dessa natureza, mesmo quando o cerne da conduta envolve questões tributárias.
O debate ganhou novo fôlego novamente em 2023, quando o Departamento de Estudos Econômicos do Cade publicou Nota Técnica sobre o PLP 164/2022, que trata da identificação e controle de devedores contumazes. Embora o parecer tenha sido crítico ao projeto – sobretudo por prever mecanismos de controle de preços –, o DEE reconheceu expressamente que práticas reiteradas de inadimplência fiscal podem causar distorções relevantes no ambiente concorrencial. Essa postura, que parece ter se sedimentado desde o caso envolvendo a Rodopetro, deixa aberta a possibilidade de futuras intervenções do Cade sobre o tema.
Ou seja, à medida que diferentes setores da sociedade se mobilizam para enfrentar os impactos provocados pelos devedores contumazes, é certo que o Cade também já deu sinais claros de que entende que esse tema também adentra sua seara de atuação Como próximo passo, cabe ao Cade enfrentar as distorções na concorrência causadas pela conduta anticompetitiva de devedores contumazes. Ao fazê-lo, o Cade não apenas reforçará sua autoridade como guardião da concorrência, mas também contribuirá para a construção de um ambiente econômico mais justo e eficiente. Ganha a autarquia. Ganha o país.
[1] CARVALO, V. M. C.; MATTIUZZO, M.; MARQUES PROL, F.; LANGANKE, A. L. Concorrência e Tributação. Editora CEDES, 2019.
[2] SOUZA, N. Devedor contumaz ganha fôlego no Senado com apoio da Fazenda. Portal Eixos, 10 de abril de 2025. Disponível em: https://eixos.com.br/combustiveis-e-bioenergia/devedor-contumaz-ganha-folego-no-senado-com-apoio-da-fazenda/