Reserva de vagas para pessoas com deficiência como critério em licitações públicas

Já há muitos anos a Lei 8.213/91 prevê, em seu art. 93, a exigência de que empresas com mais de 100 empregados devem preencher de 2% a 5% de seu quadro de pessoal com vagas destinadas a pessoas com deficiência ou reabilitados da Previdência Social[1]. Embora já bastante consolidado no campo do Direito do Trabalho, o tema voltou a ganhar relevância mais recentemente, agora para os operadores do Direito Administrativo, com a Nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos.

O art. 63, IV da Lei nº 14.133/21 prevê que na fase de habilitação será exigido dos licitantes “declaração de que cumpre as exigências de reserva de cargos para pessoa com deficiência e para reabilitado da Previdência Social, previstas em lei e em outras normas específicas.”

Conheça o JOTA PRO Poder, uma plataforma de monitoramento político e regulatório que oferece mais transparência e previsibilidade para empresas

De início, é importante esclarecer que, embora seja frequente a confusão nesse sentido, a Lei em momento algum exige, como requisito de habilitação, o emprego de um percentual mínimo de menores aprendizes. Para a fase de habilitação, o que a Lei exige (em seu art. 68, VI)[2] é apenas o cumprimento do art. 7º, XXXIII da Constituição Federal, no sentido de não empregar menores em trabalho noturno, perigoso ou insalubre.

Por outro lado, a Lei trata da contratação de menores aprendizes como cláusula necessária do contrato administrativo a ser firmado como o vencedor da licitação (art. 92, XVII)[3], obrigação que deve ser observada durante toda a execução contratual (art. 116)[4], sob pena, até mesmo, de extinção do contrato (art. 137, IX)[5]. Contudo, por não se tratar de requisito expressamente previsto para a fase de habilitação, não se pode admitir decisões de inabilitação de empresas que, ainda na fase de licitação, não cumprirem com a exigência do art. 429 da CLT[6].

Além disso, é certo que a aplicação prática da exigência contida no art. 63, IV da Lei nº 14.133/21 tem encontrado certa flexibilização. A mais emblemática decisão nesse sentido é o Acórdão nº 523/2025, recentemente prolatado pelo Plenário do TCU. O caso tratava de representação apresentada contra decisão administrativa em sede de pregão que habilitou empresa que, à época da licitação, contava com certidão do Ministério do Trabalho e Emprego indicando o descumprimento do percentual mínimo de empregados com deficiência ou reabilitados da Previdência Social.

Diante desse contexto fático, o TCU consignou dois importantes entendimentos. O primeiro é o de que a certidão automática do MTE não pode ser utilizada, por si só, para determinar a inabilitação de licitante, por se tratar de certidão que simplesmente apura dados alimentados em um sistema on-line, que podem não representar a situação real das empresas em razão da defasagem na atualização de dados registrados no e-Social. 

Assim, entendeu o TCU que “a exigência legal, na fase de habilitação, é apenas a declaração formal do licitante de que cumpre as exigências de reserva de cargos para pessoa com deficiência e para reabilitado da Previdência Social, presumindo-se sua veracidade com base nos princípios da boa-fé e da lealdade processual.”

O segundo é um alinhamento à jurisprudência, já bastante consolidada na Justiça do Trabalho,  de que as empresas não devem ser responsabilizadas pelo não cumprimento da cota mínima quando demonstrarem que estão envidando os esforços necessários para o seu atingimento[7]. No caso analisado, a demonstração de que a empresa buscava atingir o preenchimento de tais vagas através de medidas concretas (como, por exemplo, parcerias com entidades especializadas na área) foi fundamental para a decisão de rejeição da representação.

Na mesma linha é o posicionamento da Advocacia Geral da União (AGU) em pareceres consultivos a respeito do reflexo desse tema para as licitações e contratos administrativos.

No Parecer nº 0118/2024/CGAQ/SCGP/CGU/AGU, consta que a Administração Pública não deve proceder a inabilitação de empresas, mesmo se não atingido os patamares mínimos de reserva de vagas, quando: “(…) b) eventual não ocupação de tais cargos destinados deve se dar exclusivamente por razões alheias à vontade da empresa; c) a empresa efetivamente deve estar empreendendo esforços para preencher o percentual legal de vagas.”

Em sentido semelhante, no Parecer nº 00571/2024/CGSEM/CGU a AGU manifestou o entendimento de que “uma vez demonstrado que houve destinação das vagas para beneficiários reabilitados ou pessoas portadas de deficiência, mas que tais vagas não foram preenchidas por razões alheias à vontade da empresa, apesar da concreta e efetiva busca pelo preenchimento do percentual legal das vagas, deve-se considerar atendido o disposto no art. 63, IV da Lei nº 14.133/21, quer seja na fase de habilitação ou na fase de execução contratual”.

Tais ressalvas são de suma importância, especialmente considerando que boa parte dos contratos administrativos envolve a execução de obras e serviços de engenharia em que a própria natureza da atividade empreendida pode trazer dificuldades adicionais para o preenchimento das vagas direcionadas a pessoas com deficiência e reabilitados da Previdência Social.

Assine gratuitamente a newsletter Últimas Notícias do JOTA e receba as principais notícias jurídicas e políticas do dia no seu email

Frise-se, no entanto, que não basta a mera alegação de dificuldade. Esta deve ser comprovada, junto com a demonstração de que a empresa empreende os esforços necessários para o preenchimento dos percentuais exigidos pela legislação.


[1] Lei nº 8.213/91. Art. 93. A empresa com 100 (cem) ou mais empregados está obrigada a preencher de 2% (dois por cento) a 5% (cinco por cento) dos seus cargos com beneficiários reabilitados ou pessoas portadoras de deficiência, habilitadas, na seguinte proporção: I – até 200 empregados – 2%; II – de 201 a 500 – 3%; III – de 501 a 1.000 – 4%; IV – de 1.001 em diante. – 5%.

[2] Lei nº 14.133/21. Art. 68. As habilitações fiscal, social e trabalhista serão aferidas mediante a verificação dos seguintes requisitos: VI – o cumprimento do disposto no inciso XXXIII do art. 7º da Constituição Federal.

[3] Lei nº 14.133/21. Art. 92. São necessárias em todo contrato cláusulas que estabeleçam: XVII – a obrigação de o contratado cumprir as exigências de reserva de cargos prevista em lei, bem como em outras normas específicas, para pessoa com deficiência, para reabilitado da Previdência Social e para aprendiz.

[4] Lei nº 14.133. Art. 116. Ao longo de toda a execução do contrato, o contratado deverá cumprir a reserva de cargos prevista em lei para pessoa com deficiência, para reabilitado da Previdência Social ou para aprendiz, bem como as reservas de cargos previstas em outras normas específicas.

[5] Lei nº 14.133. Art. 137. Constituirão motivos para extinção do contrato, a qual deverá ser formalmente motivada nos autos do processo, assegurados o contraditório e a ampla defesa, as seguintes situações: IX – não cumprimento das obrigações relativas à reserva de cargos prevista em lei, bem como em outras normas específicas, para pessoa com deficiência, para reabilitado da Previdência Social ou para aprendiz.

[6] Consolidação das Leis do Trabalho. Art. 429. Os estabelecimentos de qualquer natureza são obrigados a empregar e matricular nos cursos dos Serviços Nacionais de Aprendizagem número de aprendizes equivalente a cinco por cento, no mínimo, e quinze por cento, no máximo, dos trabalhadores existentes em cada estabelecimento, cujas funções demandem formação profissional.

[7] Veja-se, nesse sentido: TST, RR-1000978-91.2016.5.02.0074, 5ª Turma, Relatora Ministra Morgana de Almeida Richa, DEJT 24/05/2024.

Adicionar aos favoritos o Link permanente.