O PL 283/2025 e o backlash sobre o racismo reverso

O passado é sempre uma interpretação do presente. Walter Benjamin afirma que a historiografia oficial constitui o amálgama de eventos observados não pelos oprimidos e humilhados, mas sim por aqueles que venceram ao longo da trajetória humana. Assim, para ele, é necessário “escovar a história a contrapelo” para reconstruir o passado, reinterpretar o presente e projetar o futuro.[1]

No histórico julgamento do HC 929.002, a 6ª Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) rejeitou categoricamente a tese do “racismo reverso” ao determinar, por unanimidade, o trancamento de ação penal que imputava a suposta prática do crime de injúria racial a homem negro que teria proferido ofensas contra homem branco em razão da cor da pele.

A decisão é muito acertada, a nosso ver. Mas nem todos concordam.

No dia seguinte à sua publicação, foi apresentado o PL 283/2025, na intenção de, in litteris, conferir “maior abrangência à tipificação dos crimes de preconceito, para que sejam reconhecidos e punidos independentemente da cor, raça, etnia, religião ou procedência nacional da vítima.”.

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Na prática, se o PL for aprovado, será possível que pessoas negras, pardas, indígenas ou pertencentes a algum outro grupo étnico-racial historicamente excluído sejam investigadas e condenadas por praticar racismo contra pessoas brancas.

A justificativa apresentada pelo autor da proposta se baseia na hipotética busca pela efetivação dos princípios da igualdade, dignidade da pessoa humana e não discriminação.

Tal entendimento deriva da equivocada concepção de que a matéria legislativa em vigor gera “interpretações restritivas na aplicação da norma”, quando o combate ao preconceito deveria garantir “a todas as pessoas a mesma proteção jurídica contra atos discriminatórios, independentemente de sua identidade racial, étnica, religiosa ou nacional.”.

Entendemos, no entanto, que eventual aprovação do projeto de lei em tela figuraria verdadeiro retrocesso civilizatório. Explica-se.

O conteúdo da proposição se preocupa única e exclusivamente com a aplicação da concepção formal do princípio da igualdade, de modo a ignorar a dimensão material. Na dimensão formal, este princípio impõe, basicamente, que todos devem submeter-se à lei, de modo a impedir que o ordenamento seja fonte de favoritismos ou perseguições de grupos ou indivíduos.

Na dimensão material, por outro lado, busca a concretização efetiva da isonomia na sociedade, e considera, com essa finalidade, que a sociedade é plural e que, lamentavelmente, é composta por desigualdades estruturais, de ordem física, econômica e social, as quais resultam na existência de indivíduos favorecidos e desfavorecidos.

Perante essa realidade, caso o Estado conferisse exatamente o mesmo tratamento aos indivíduos de uma sociedade, sem a necessidade de quaisquer adaptações para incluir aqueles assolados por desvantagens sociais e econômicas, gerar-se-ia um cenário de desigualdade fática irremediável.

Robert Alexy leciona, a esse respeito, que o princípio da igualdade impõe um paradoxo imanente: a igualdade de direitos sempre culmina em alguma desigualdade de fato. Logo, quem almeja proporcionar uma igualdade de fato, deverá estar disposto a aceitar desigualdades de direitos.[2]

No contexto brasileiro, cujo processo de formação civilizatória fora marcado por uma série de tragédias que vitimaram a população negra, agir de modo a prestigiar a igualdade exige a observância de ambas as acepções (formal e material) do princípio.

Não é segredo que “a economia colonial latino-americana valeu-se da maior concentração de força de trabalho até então conhecida (…)”[3], de modo que para a realização do propósito mercantil europeu, a metrópole portuguesa contou com abundante mão de obra escrava.

Apenas o Brasil, do descobrimento até a metade do século XIX, recebeu um contingente assustador de escravos africanos: 4,9 milhões de cativos, isto é, “47% do total desembarcado em todo o continente americano entre 1500 e 1850[4]. 

Com a promulgação da Lei Áurea, em 1888, a escravidão no país foi formalmente extinta. Entretanto, o momento posterior à edição da medida foi marcado pelo descaso em relação aos libertos, sem que houvesse a fixação de condições mínimas de dignidade à população há muito explorada.

Nesse sentido, Laurentino Gomes denuncia que:

Ao todo, cerca de 700 mil escravos ganharam a liberdade com a Lei Áurea. Em proporção ao total de habitantes do país, era um número relativamente pequeno. Na época da Independência, o Brasil tinha cerca de 1,5 milhão de cativos, que representavam quase 40% do total da população. Em 1888, essa proporção tinha caído para apenas 5%. Mesmo assim, os ex-escravos foram abandonados à própria sorte.
[…]

Mesmo entre os abolicionistas, foram poucos os que manifestaram alguma preocupação com a sorte dos ex-cativos. “Estavam mais interessados em livrar a sociedade brasileira do câncer da escravidão do que em cuidar da sorte dos libertos”, acrescentou Viotti da Costa. “Uma vez conquistada a abolição, a maioria deu-se por satisfeita: tinha alcançado seu objetivo.” Além do abandono a que foram relegados os ex-cativos, havia um traço mais sutil e duradouro da escravidão que, a rigor, jamais se apagou na cultura brasileira. É o preconceito contra negros e mulatos.[5]

A abolição de escravatura foi realizada no Brasil à míngua de um inicial projeto de democracia da abolição[6] idôneo a implementar a integração dos sujeitos de direitos, com a respectiva promoção da igualdade e dos demais direitos fundamentais da população negra. Como consequência, a sociedade brasileira precisa, ainda hoje, de ações efetivas a serem adotadas para extirpar o processo de produção e de manutenção do racismo[7], inclusive com envolvimento de múltiplos atores, à luz do princípio da solidariedade[8], uma vez que a situação de precariedade social vivida pela população negra perdura no tempo.

Totalmente aplicável ao contexto brasileiro a reflexão de Angela Davis em relação aos Estados Unidos: “certamente, a liberdade negra, no sentido estrito, ainda não foi conquistada. Ainda mais considerando que um grande número de pessoas negras está assentado na pobreza[9].

De todo modo, é certo que a violência, que antes era legitimada, passou a assumir feições mais rebuscadas e a se manifestar com frieza mais sorrateira nas diversas searas da vida, mas até hoje pode ser notada com facilidade. Os dados demonstram patentemente a marginalização de que ainda é vítima a população negra.

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O último censo disponibilizado pelo IBGE revela, por exemplo, que a taxa de desemprego observada entre os negros é superior àquela observada entre aqueles que se declararam brancos em aproximadamente 50% (cinquenta por cento).

Os índices de escolaridade também se fizeram díspares: mais da metade da população negra não concluiu o ensino médio. Ademais, “levando-se em consideração o grupo de jovens de 14 a 29 anos do país, 9,0 milhões não completaram o ensino médio, seja por terem abandonado a escola antes do término desta etapa ou por nunca a terem frequentado.”. Desses, “27,4% eram brancos e 71,6% eram pretos ou pardos.”.

Quando consideradas as taxas de analfabetismo, a marginalização do negro é igualmente patente. Com efeito, cerca de 3% (três por cento) dos indivíduos de 15 (quinze) anos ou mais de cor branca são analfabetos. Em relação às pessoas pretas ou pardas nessa faixa etária, o percentual cresce para mais que 7% (sete por cento), de modo a superar o dobro do percentual relativo às pessoas brancas.

Ao se examinar o analfabetismo em pessoas com 60 (sessenta) anos ou mais, de acordo com o mesmo censo, verifica-se que 8,6% (oito inteiros e seis décimos por cento) das pessoas de cor branca não sabem ler e escrever, enquanto 22,7% (vinte e dois inteiros e sete décimos por cento) das pessoas pretas ou pardas são analfabetas, percentual que representa quase o triplo daquele observado na população branca.

Além disso, a representatividade negra nos espaços de poder também se revela prejudicada. Nunca, na história do país, uma pessoa negra foi eleita diretamente para ocupar a presidência da República. Outrossim, do número de 171 (cento e setenta e um) ministros e ministras que já compuseram o Supremo Tribunal Federal, os poucos homens negros representam uma quantidade ínfima e rarefeita ao longo da história da Corte.

Portanto, mesmo após 137 (cento e trinta e sete) anos do fim da escravidão, a população negra permanece absolutamente marginalizada no Brasil, como produto do grande êxito do fenômeno consistente em manutenção de “pactos narcísicos[10].

E o efeito disso inevitavelmente se traduz em violência: segundo o Atlas da Violência 2024 do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), “a vitimização de pessoas negras – soma de pretos e pardos – em registros de homicídios correspondeu a 76,5% do total de homicídios registrados no país. (…) Ou seja, proporcionalmente às respectivas populações, em média, para cada pessoa não negra assassinada no Brasil, 2,8 negros são mortos.”.

Parece-nos evidente que é a criação de mecanismos destinados à proteção de uma população historicamente vulnerabilizada da perpetuação do racismo estrutural que colaborará para a realização mais plena da igualdade delineada pelo Constituinte. É preciso criar uma desigualdade de direito para tentar proporcionar cenário de maior igualdade de fato.

Ampliar o escopo dos crimes de preconceito em razão da cor, raça ou etnia para prever possível que pessoas brancas sejam vítimas de racismo seria conceder-lhes um aparato de defesa que só faz sentido quando destinado à proteção de grupos que compõem minorias vulnerabilizadas.

Pensar o contrário seria como criar mecanismos para evitar que automóveis sejam atropelados por pedestres. Apesar de haver coerência na criação de mecanismos destinados à proteção de pedestres contra os atropelamentos por automóveis, não parece fazer sentido que haja sistemas projetados a proteger veículos automotores contra os atropelamentos por pedestres. Isso porque quem atropela é o veículo, ao passo que quem é atropelado é o pedestre, e não vice-versa.

Paralelamente, quem sofre racismo não são os brancos, mas, sim, as pessoas inseridas nos grupos étnicos minoritários. Proteger o branco de sofrer racismo, portanto, seria medida incoerente e completamente dissociada da realidade histórica, da dimensão material da igualdade, dos dados atuais e do sentido de proteção cidadã efetiva, preconizada pela Constituição Federal.

À vista disso, o relator do HC 929.002, ministro Og Fernandes, brilhantemente expôs em seu voto que o racismo é um fenômeno estrutural que se conserva mesmo com a presença dos mecanismos de mitigação desenvolvidos pelo ordenamento pátrio e aflige os grupos minoritários, que não abarcam as pessoas brancas. Veja-se:

Ainda que seja possível observar que a evolução jurídica das sociedades, especialmente com base no conceito de igualdade material derivado de movimentos Iluministas, tenha tentado arrefecer as estruturas do racismo, o fato é que tal dinâmica segue estabelecida. Em outras palavras, o racismo como fenômeno estruturado, acaba por se revelar, muitas vezes, em atos e posturas silenciosas.

A expressão “grupos minoritários” induvidosamente não se refere ao contingente populacional de determinada coletividade, mas àqueles que, ainda que sejam numericamente majoritários, não estão igualmente representados nos espaços de poder, público ou privado, que são frequentemente discriminados inclusive pelo próprio Estado e que, na prática, têm menos acesso ao exercício pleno da cidadania.

Não é possível acreditar que a população brasileira branca possa ser considerada como minoritária. Por conseguinte, não há como a situação narrada nos autos corresponder ao crime de injúria racial. 

Menciona-se, ainda, que o Brasil é signatário da Convenção Interamericana contra o Racismo, a Discriminação Racial e Formas Correlatas de Intolerância de 2013 (dois mil e treze), incorporada ao direito pátrio com natureza de norma constitucional em 2022 (dois mil e vinte e dois), por meio do Decreto 10.932/2022.

Assim sendo, a referida Convenção definiu que

As vítimas do racismo, da discriminação racial e de outras formas correlatas de intolerância nas Américas são, entre outras, afrodescendentes, povos indígenas, bem como outros grupos e minorias raciais e étnicas ou grupos que por sua ascendência ou origem nacional ou étnica são afetados por essas manifestações;

À luz das suas naturezas convencional e constitucional, o PL 283/2025, com o teor que apresenta até o momento, não passa pelo teste de convencionalidade e, à luz da incipiência nacional do exercício do controle de convencionalidade, vale ressaltar que se revela também inconstitucional. Isso não somente em razão da inobservância da mais adequada acepção do princípio da igualdade, mas, também, por sua manifesta violação da referida Convenção Interamericana, aprovada com o rito de emenda constitucional, em edificação de uma democracia constitucional antirracista.

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Foi justamente em atenção ao passado trágico e traumático que assolou o Brasil, à arquitetura normativa delineada pelo constituinte e aos compromissos internacionais assinados pelo país, que o STJ julgou o HC 929.002. E a conclusão adotada naquele julgado, a nosso ver, é incensurável, uma vez que implementou uma hermenêutica jurídica negra, vale dizer, aquela que desestabiliza “práticas sociais que estabelecem o pertencimento aos grupos dominantes como critério para o acesso a direitos [11].

É importante que se mantenha viva a lembrança da história brasileira – por mais horrenda que ela possa ser, em alguns aspectos. Por vezes, o esquecimento pode criar condições para a reiteração de tragédias do passado, ou, no mínimo, possibilitar a renovação de erros outrora já cometidos.


[1] BENJAMIN, Walter. Sobre o Conceito de História: edição crítica. São Paulo: Alameda Editorial, 2020.

[2] ALEXY, Robert. Teoría de los derechos fundamentales. Madrid: Centro de Estudios Políticos y Constitucionales; 2001.

[3] GALEANO, Eduardo. As Veias Abertas da América Latina. Porto Alegre: L&Pm Editores, 2022, p. 62.

[4] GOMES, Laurentino. Escravidão. Volume 1: Do Primeiro Leilão de Cativos em Portugal até a Morte de Zumbi dos Palmares. 1ª Ed. Rio de Janeiro: Globo Livros, 2019, p. 254.

[5] GOMES, Laurentino. 1889: Como um Imperador Cansado, um Marechal Vaidoso e um Professor Injustiçado Contribuíram Para o Fim da Monarquia e a Proclamação da República no Brasil. Rio de Janeiro: Globo Livros, 2013, p. 218 – 219.

[6] Cf. DU BOIS, W. E. Burghardt. Black Reconstruction: an essay toward a history of the part which black folk played in the attempt to reconstruct democracy in America, 1860-1880. New York: Harcourt, Brace and Company, Inc., 1935, p. 325.

[7]  Fundamental para superar o passado, como preconizado por Frantz Fanon. Cf. FANON, Frantz. Pele Negra, Máscaras Brancas. Salvador: EDUFBA, 2008, p. 187.

[8] Angela Davis destaca a imprescindibilidade da solidariedade para o delineamento de um futuro antirracista, vide DAVIS, Angela. A democracia da abolição: para além do império, das prisões e da tortura. Rio de Janeiro: Difel, 2019, p. 31.

[9] DAVIS, Angela. A liberdade é uma luta constante. Trad.: Heci Regina Candiani. São Paulo: Boitempo, 2018, p. 49.

[10] BENTO, Cida. O Pacto da Branquitude. São Paulo: Companhia das Letras, 2022, p. 76.

[11] MOREIRA, Adilson José. Pensando como um negro: ensaio de hermenêutica jurídica. São Paulo: Editora Contracorrente, 2019, p. 263.

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