Um protocolo conjunto assinado pela Controladoria Geral da União (CGU), Advocacia-Geral da União (AGU) e o Ministério Público Federal (MPF) parece ressuscitar uma agenda que muitos consideravam encerrada ou, no mínimo, muito enfraquecida.
De início, a simples celebração deste acordo de cooperação técnica indica o reforço da pauta de controle de corrupção e da segurança jurídica de acordos celebrados com empresas. E sinaliza o compromisso de atuação coordenada e cooperativa de dois órgãos de governo (AGU e CGU) e um de Estado (MPF), especialmente neste momento da conjuntura nacional e mundial.
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A despeito da natural e quase inevitável atitude cética dos cidadãos, em geral, quanto à continuidade da chamada “agenda de compliance” das empresas, o fato é que essas instituições consideraram suficientemente importante dirigir equipes e aparatos administrativos para enfrentar questões difíceis de relacionamento institucional com o propósito de fortalecer o controle conjunto contra a corrupção.
A recentemente lançada revisão do programa Pró-Ética (2025/2026) e a edição do Decreto 12.304/24, que estabelece parâmetros para a avaliação de programas de integridade em licitações de grande vulto, por exemplo, contribuem a compor um panorama (cautelosamente) promissor de renovada atenção institucional ao ambiente de integridade empresarial.
Carga na bateria do MPF
Adicionalmente, o protocolo dá novo fôlego para o Ministério Público nesta agenda. O texto reconhece claramente a atribuição do MPF para celebração de acordos de leniência. E este ponto, que estava – e ainda está, mesmo que de forma velada – em disputa no Supremo, ganha nova inflexão. [1]
Logo em sua Cláusula Primeira (Do Objeto), registra-se a referência à “autonomia do MPF” na celebração de acordos de leniência “no seu respectivo âmbito institucional” (Subcláusula segunda).
A referência é relevante especialmente porque diversos críticos, ao longo dos últimos anos, pretenderam desvalorizar a participação do MPF em acordos de colaboração empresarial anticorrupção, tratando-a como atípica e a admitindo apenas com ressalvas e fundamentos cada vez mais restritos, de maneira, talvez, a desincentivar a sua continuidade.
Essa tentativa de redução do papel do MPF em acordos de leniência já havia sido a razão de o mesmo MPF ter se recusado a assinar, em 2020, outro Acordo de Cooperação Técnica (ACT-TCU), daquela vez celebrado, sob os auspícios do Supremo Tribunal Federal – STF, entre a CGU, a AGU, o Tribunal de Contas da União – TCU e o Ministério da Justiça e Segurança Pública.[2] No ACT-TCU, procurou-se restringir o papel do MPF a atribuições penais, desconsiderando-se sua competência mais ampla e seus atributos institucionais peculiares como parte integrante do chamado microssistema de proteção do patrimônio público e combate à corrupção.
A desvalorização do papel do MPF na celebração de acordos de leniência tem menos caráter técnico-jurídico do que político e se expressou, sobretudo, na esteira das críticas à operação Lava Jato, reforçadas pelas revelações de conversas telemáticas entre o ex-procurador Deltan Dallagnol e o ex-juiz Sergio Moro, publicadas pelo periódico virtual The Intercept Brasil, que vieram a ser conhecidas como “Vaza Jato” e que posteriormente levaram o hacker responsável à prisão no âmbito da Operação Spoofing. Em outras palavras, as ações de indivíduos acusados – em alguns casos, com justiça – por abusar de seus papéis institucionais foram tratadas como suficientes para minar a atuação do Ministério Público como instituição.
A extensão mais radical dessa crítica se deu, recentemente, por diversas decisões monocráticas do ministro Dias Toffoli, que declarou a “imprestabilidade” dos elementos probatórios obtidos por intermédio de alguns acordos de leniência mais proeminentes celebrados pelo MPF, mesmo quando tais elementos probatórios sejam idênticos ou substancialmente similares àqueles oferecidos por intermédio de acordos celebrados pelas mesmas empresas com CGU e AGU.[3]
A atuação da PGR na gestão Augusto Aras não contribuiu particularmente para a melhora da reputação da instituição nessa matéria.
Sob o ponto de vista estritamente jurídico, entretanto, é difícil desmerecer a importância do MPF no controle de corrupção, inclusive e especialmente na utilização de instrumentos de consensualidade para esse fim. Basta lembrar que, além da competência exclusiva para persecução penal, o MPF também é legitimado para a persecução cível e que sua competência tanto penal quanto cível se aplica não apenas a cidadãos, empresas e agentes públicos, em sentido estrito, como também a agentes políticos.
Essa última característica – a competência para promover ações cíveis e penais sobre agentes políticos – distingue marcadamente o MPF da CGU nas iniciativas de controle da corrupção. De fato, embora seja incontroverso, poucos lembram que a CGU não tem competência disciplinar sobre agentes políticos, entre os quais se incluem, no âmbito federal, o presidente da república e seus ministros (inclusive da própria CGU e da AGU), que são demissíveis pelo presidente ad nutum.
Também pouco notada, a ausência de competência disciplinar da CGU sobre agentes políticos sempre permitiu identificar um fundamento diretamente na Lei 12.846/13 (Lei Anticorrupção ou LAC) para celebração de acordos de leniência autônomos pelo MPF. Isso porque a própria LAC atribui ao MPF, em seu artigo 20, competência para aplicação das sanções administrativas instituídas por aquela lei, cuja atenuação ou eliminação constituem a razão de ser do acordo de leniência criado pela mesma LAC.
A condição para exercício dessa competência pelo MPF é que seja “constatada a omissão das autoridades competentes para promover a responsabilização administrativa”. Ocorre que, no caso de agentes políticos, essa omissão das autoridades administrativas não é opcional; é, por falta de competência e por seu caráter de órgãos de governo, inclusive necessária.
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A lógica do art. 16 da LAC, que regula especificamente os acordos de leniência, reforça esse raciocínio. O caput desse artigo, define que a celebração de acordos de leniência compete à “autoridade máxima de cada órgão ou entidade pública”, isto é, ao topo da cadeia hierárquica do órgão ou entidade pública em questão. Se os fatos relatados no acordo de leniência dizem respeito a agentes políticos hierarquicamente superiores à autoridade administrativa de controle, então, de duas, uma: ou não se pode celebrar acordos de leniência em relação a tais fatos ou a autoridade competente para celebrá-lo não é a autoridade administrativa de controle. Como a primeira hipótese é absurda, só resta a segunda e, no desenho institucional brasileiro, ao menos no âmbito federal ou nacional, a autoridade que resta é o MPF, cuja atuação deve ser, como sempre, controlada pelo Judiciário. A coerência da lei é, nesse ponto, impecável.
A “burocracia racional” e cooperação inter-institucional
As considerações sobre o papel potencialmente autônomo do MPF no microssistema de proteção do patrimônio público e combate à corrupção não excluem, entretanto, a possibilidade e conveniência de cooperação do MPF com as autoridades administrativas de controle, em certas circunstâncias, inclusive naquelas indicadas.
Afinal, CGU e AGU são compostas de servidores públicos responsáveis pelo desempenho de uma missão institucional, que não necessariamente se confunde com eventuais condutas da alta cúpula política dos governos. Constituem a chamada “burocracia racional” weberiana, com cuja qualificação e profissionalismo o Estado brasileiro – inclusive na cooperação com órgãos como o MPF – deve poder contar sobretudo em face de tentativas de captura indevida.
Parâmetros de Racionalidade, inclusive em âmbito Nacional
Além dos aspectos enfatizados – o simples fato do acordo representar um símbolo de reforço da agenda de controle da corrupção empresarial por intermédio de acordos de leniência e o reconhecimento da importância do MPF, que andava combalido, nessa pauta –, o acordo de cooperação técnica assinado registra outros desenvolvimentos.
Dois compromissos institucionais previstos de maneira expressa no acordo são bem-vindos. Primeiro, a utilização de “parâmetros pré-estabelecidos para o cálculo dos valores a serem pactuados em acordos de leniência… com o fim de conferir previsibilidade aos colaboradores” (Cláusula Terceira, I). Embora CGU e AGU adotem desde 2018 parâmetros de cálculo já conhecidos de profissionais que atuam na negociação de acordos de leniência e de o MPF, quando celebra acordos-espelho, tipicamente concordar com tais parâmetros, sua consolidação e uniformização provavelmente trará ganhos de racionalidade para o sistema de controles como um todo.
O segundo compromisso institucional resulta do conjunto de mecanismos de “intercâmbio controlado de informações … objetivando diminuir a desconfiança de potenciais colaboradores para delatar fatos ilícitos perante autoridades que estejam em ostensiva posição de conflito de interesses” (Cláusula Terceira, I), “sigilo das negociações” (Cláusula Nona) e “proteção das pessoas jurídicas colaboradoras” (Cláusula Décima). Apesar do caráter genérico de certas disposições e das dificuldades operacionais e jurídicas inerentes a esses desafios, seu reconhecimento representa um avanço oficial no sentido de atentar às circunstâncias específicas de negociações que coloquem as empresas colaboradoras em risco especial de sofrer retaliações e com operações comerciais sensíveis, que possam ser afetadas pelos acordos em discussão.
De qualquer forma, no caso de ambos os compromissos, o efeito maior da coordenação de CGU-AGU e MPF, em nível federal, pode ser referencial e indutor, mediante a disseminação e percolação intergovernamental e interestatal, para os níveis subnacionais, especialmente estados, prefeituras e ministérios públicos estaduais, que poderão contar com um repertório consensual de parâmetros mais objetivos e uniformes de negociação e práticas de preservação de sua integridade e da confiança de colaboradores potenciais e efetivos.
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Por fim, o acordo de cooperação técnica atribui à CGU, no caso de negociações coordenadas, a avaliação dos programas de integridade e seu acompanhamento (Cláusula Sexta, Subcláusula sexta), como parece natural diante da pouca especialização do MPF e da senioridade e qualificação reconhecida dos servidores da CGU na área.
Sopro de vida
Por mais conturbada que tenha sido no passado e possa ainda vir a ser a cooperação inter-institucional em matéria de controle da corrupção, parece inegável que ela avança ao se sustentar sobre as bases de um protocolo oficial, que registra a competência autônoma do MPF, conta com quadros e lideranças de CGU e AGU qualificados, experientes e forjados no conflito pela preservação de sua missão institucional e na busca pelo aumento da racionalidade e uniformidade de parâmetros de negociação.
O ACT entre CGU-AGU e MPF, portanto, parece fornecer, no conjunto de desenvolvimentos recentes, condições incrementais, porém decisivas, de esperarmos por uma espiral ascendente, com menos voluntarismos e menos dependente de iniciativas unicamente individuais, em matéria de controle da corrupção e acordos de leniência.
[1] A título exemplificativo de recente e competente bibliografia sobre o tema: ATHAYDE, Amanda. Manual dos Acordos de Leniência no Brasil: Teoria e Prática. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2019; CANETTI, Rafaela Coutinho. Acordo de leniência: fundamentos do instituto e os problemas de seu transplante ao ordenamento jurídico brasileiro. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2019; PIMENTA, Raquel de Mattos. A Construção dos Acordos de Leniência da Lei Anticorrupção. São Paulo: Blucher, 2020; TAMASAUSKAS, Igor Sant’Anna. O Acordo de Leniência Anticorrupção: Uma Análise sob o Enfoque da Teoria de Redes. Curitiba: Appris, 2021. Para uma discussão de tema correlato ao deste artigo, embora sob outra perspectiva, vide também Mendes, Gilmar; Fernandes, Victor Oliveira, “Acordos de leniência e regimes sancionadores múltiplos”, Portal Jota, 13 de abril de 2021.
[2] Para uma consolidação das justificativas oficiais da recusa do MPF a firmar o ACT-TCU, vide a Nota Técnica nº 2/2020 – 5ª Câmara de Coordenação e Revisão, que formula uma análise crítica do ACT-TCU.
[3] Embora o MPF também tenha sido acusado de “quebrar as empresas” ao exigir o pagamento de valores considerados irrazoáveis em acordos de leniência, estudos mais detidos demonstram que os valores negociados em acordos de leniência do MPF são, na média, inferiores aos valores negociados em acordos de leniência de CGU-AGU, pelos mesmos fatos. Vide [Inserir nota de rodapé com referência a estudo que mostra que os valores de acordos do MPF era, na média, inferior ao de acordos-espelho celebrados pelas mesmas empresas com CGU-AGU]DOBROWOLSKI, Samantha Chantal; WATANABE, Beatriz. “Notas preliminares sobre a ADPF 1.051/DF e a inviabilidade de revisão dos valores estipulados nos acordos de leniência celebrados com o Ministério Público Federal e de sua invalidação”, in 10 Anos da Lei Anticorrupção – Avanços e Desafios – 2023 (Marcelo Ribeiro Oliveira, org.), Editora Letramento: São Paulo, 2023; e WATANABE, Beatriz. O Acordo de Leniência Anticorrupção e a Destinação de Valores Recuperados: um mecanismo de reparação de direitos dos lesados por atos de corrupção?. Liber Ars: São Paulo, 2025.
[4] Vide, por exemplo, a seguinte entrevista do Valor Econômico com integrante da alta cúpula do governo de então: “Para AGU, acordo de leniência não destrava crédito do BNDES” (07/03/2017). A mesma integrante veio, um pouco mais de um ano depois, a assinar o acordo de leniência em questão.