Em artigo pioneiro publicado neste JOTA1, Paulo Mendes de Oliveira identificou que o Supremo Tribunal Federal – STF criou, na prática, uma nova sistemática para o processamento e julgamento do recurso extraordinário, indo além das disposições previstas pelo CPC/2015 e pelo próprio Regimento Interno do STF.
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Em vez de adotar um rito único, pelo qual o STF apenas decidiria sobre a existência ou não de repercussão geral da matéria discutida no recurso extraordinário (art. 1030, I, “a”, do CPC/2015) – decisão essa que teria sempre eficácia vinculante – os recursos extraordinários passaram a seguir outros caminhos dentro da Corte, sem implicar, necessariamente, a formação de um precedente obrigatório.
Paulo Mendes demonstrou, em seu ensaio, que o recurso extraordinário pode tramitar no STF por cinco diferentes “circuitos processuais”: quatro deles não resultam em formação de precedente vinculante (e pelos quais tramita a grande maioria dos recursos extraordinários)2; o quinto circuito corresponde à regra geral prevista no CPC/2015, chamado “regime de repercussão geral”, em que a decisão produz eficácia vinculante.
Recentemente, porém, percebeu-se que o processamento do recurso extraordinário não se limita aos cinco circuitos identificados por Paulo Mendes. Adaptando livremente a famosa frase de Shakespeare, há mais caminhos possíveis no STF do que poderiam prever os nossos legisladores e doutrinadores.
Um exemplo recente de novo caminho do recurso extraordinário (e, portanto, de flexibilidade procedimental no STF) ocorreu com o Ministro Vice-Presidente, Edson Fachin. Ao examinar um recurso extraordinário, ele determinou, como de costume, que o tribunal de origem aplicasse um tema de repercussão geral com base no art. 1030 e incisos do CPC/2015.
Devolvidos os autos ao tribunal inferior, seu Vice-Presidente identificou uma distinção relevante, concluindo que o precedente de repercussão geral indicado pelo STF não se aplicava ao caso concreto. Em lugar de simplesmente se submeter à decisão superior, como normalmente ocorre, o tribunal inovou e encaminhou novamente os autos ao STF, apontando expressamente a má aplicação do precedente e sugerindo sua reapreciação. Diante disso, o Ministro Edson Fachin reconsiderou sua decisão anterior e determinou a redistribuição do recurso extraordinário a um Ministro relator para processamento regular na forma regimental3.
A excepcionalidade do procedimento descrito decorre principalmente de dois fatores. Em primeiro lugar, não há previsão legal ou regimental expressa para essas “idas e vindas” no processamento do recurso extraordinário. Em segundo lugar, a decisão da Presidência ou Vice-Presidência do STF do recurso extraordinário, ao determinar que o tribunal recorrido aplique determinado tema de repercussão geral, não possui caráter decisório e, por isso, não admite recurso. Ainda assim, como visto, pode o STF reconsiderar sua posição caso o tribunal inferior apresente uma distinção relevante.
Nesse contexto, é natural que surjam críticas à suposta “heterodoxia procedimental”. Teresa Arruda Alvim e Bruno Dantas, por exemplo, afirmam que os procedimentos diferenciados do recurso extraordinário revelariam “menos a sincera opinião da Corte sobre como deveria operar o regime de repercussão geral e mais uma certa decepção, que acabou reinando entre os Ministros, no sentido de que o sistema da repercussão geral não conseguiu produzir, na prática, os objetivos esperados”4.
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No entanto, em nossa visão, o exemplo descrito releva importante e produtivo diálogo entre o STF e os tribunais inferiores, dos quais será exigido um novo papel: identificar, de maneira fundamentada, distinções relevantes capazes de afastar, no caso concreto, o precedente indicado pelo STF. Tal postura será essencial para assegurar a aplicação isonômica e justa do direito. Afinal, somente alcançaremos efetivamente os atributos da estabilidade, integridade e coerência da jurisprudência quando os precedentes vinculantes forem aplicados corretamente, isto é, considerando as particularidade de cada caso.
A prática adotada pelo Ministro Edson Fachin deve ser abraçada. A riqueza de situações surgidas no cotidiano do STF merece ser reconhecida e incorporada explicitamente ao regimento interno e à legislação processual. Essa positivação é essencial para assegurar segurança jurídica e isonomia de tratamento aos jurisdicionados. É que, como sabemos, o direito jamais poderá ignorar o incessante movimento da vida.
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1 Disponível em https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/coluna-cpc-nos-tribunais/recurso-extraordinario-e-seus-circuitos-processuais.
2 São eles: i) quando o recurso é inadmitido por algum óbice processual (exemplo: Súmula 279 do STF); ii) quando o recurso é inadmitido pela sua natureza infraconstitucional; iii) quando é simplesmente distribuído e tem o seu mérito apreciado pelas Turmas; e iv) quando já há precedente vinculante formado no STF (e o recurso extraordinário é devolvido à origem).
3 Decisões do STF proferidas em 13 de janeiro de 2025 e 07 de março de 2025, no Recurso Extraordinário n. 1.506.742/PE. A mesma situação já ocorrera no passado em outros casos similares: vide ARE 1078145/AC, Rel. Min. Carmen Lúcia, como Presidente (decisão em 04/06/2018) e ARE 1034645/RN, Rel. Min. Dias Toffoli, também como Presidente (decisão em 20/02/2019).
4 ALVIM, Teresa Arruda; Dantas, Bruno. Precedentes, Recurso Especial e Recurso Extraordinário. 7ª Ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2023. P. 746.