A judicialização da saúde é questão recorrente na pesquisa e na prática do Direito brasileiro. Enquanto o Catálogo de Teses e Dissertações da CAPES aponta mil resultados de trabalhos acadêmicos sobre o assunto em mais de duzentas instituições diferentes, o STF tem produzido diversos precedentes em sede de repercussão geral, como os Temas 6, 262, 345, 500, 579, 1033 e 1234, além de examinar (e determinar) políticas públicas na área, como ocorreu durante a pandemia de Covid-19 e no Tema 698 (processos estruturais).
Não há dúvidas de que a matéria tem robusta densidade normativa. Judicialização envolve acesso à justiça, que é uma garantia tanto convencional (CADH, artigos 8º e 25) quanto constitucional (CRFB, artigo 5º, XXXV), enquanto a saúde é direito humano e fundamental (PIDESC, artigo 12; Protocolo de San Salvador, artigo 10; CRFB, artigos 6º e 196; Lei Federal 8.080/1990).
Todavia, em um mundo de recursos escassos e finitos, o reconhecimento de qualquer direito, inclusive o de simples acesso à justiça, deve vir acompanhado de ponderada reflexão sobre os custos envolvidos – inclusive os custos para titulares de outros direitos igualmente previstos em dispositivos internacionais ou constitucionais. Um desenho institucional, que equilibre as consequências práticas de decisões que visem a concretizar direitos humanos e fundamentais, é essencial para que a própria garantia de direitos não redunde em uma retórica de mera “folha de papel”.
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Nesse contexto, no segundo semestre de 2024, o STF adotou aquela que, do ponto de vista da disciplina judiciária e da segurança jurídica, tornou-se a mais impactante providência sobre a judicialização da saúde. Além de fixar teses extensas e detalhadas nos Temas 06 e 1234, assegurou a observância desses precedentes, respectivamente, nos enunciados 61 e 60 da Súmula Vinculante.
O efeito prático de “promover” precedentes de repercussão geral à Súmula Vinculante é duplo: por um lado, assegura-se sua aplicação incontornável pela Administração Pública (CRFB, artigo 103-A, caput; Lei Federal 9.784/1999, artigos 56, § 3º, 64-A e 64-B; Lei Federal 11.417/2006, artigo 2º).
Por outro lado, permite que sentenças e, até mesmo, decisões provisórias de primeiro grau sejam examinadas de imediato pelo STF, independente do prazo recursal (CPC, artigo 988, § 6º), e possivelmente cassadas, em sede de reclamação constitucional (CRFB, artigo 103-A, § 3º; CPC, artigo 988, III e § 4º), já que, se o precedente fosse somente de repercussão geral, a reclamação só seria cabível após o esgotamento das instâncias ordinárias (CPC, artigo 988, § 5º, II).
Em reclamação ou em recurso extraordinário, na esfera administrativa ou judicial, uma dúvida pode surgir: os novos precedentes do STF, robustecidos em Súmula Vinculante, aplicam-se a planos privados de assistência à saúde? Como os Temas 6 e 1234 foram decididos em recursos extraordinários envolvendo o fornecimento de medicamentos pelo Poder Público, há dois caminhos para examinar sua extensão aos contratos privados.
O primeiro caminho é uma leitura das próprias teses fixadas pelo STF. Embora o precedente, em rigor, seja uma norma a ser construída a partir dos fatos juridicamente relevantes do respectivo julgamento, a praxe brasileira de fixar teses prontas tem a virtude de sinalizar à comunidade jurídica qual foi a norma a que o tribunal pretendeu chegar.
Nesse sentido, o Enunciado 61 da Súmula Vinculante aponta que a “concessão judicial de medicamento registrado na ANVISA, mas não incorporado às listas de dispensação do Sistema Único de Saúde, deve observar as teses firmadas no julgamento do Tema 6 da Repercussão Geral (RE 566.471)”. Ao tratar da “concessão judicial”, a tese não limita o polo passivo a entes públicos, antes devota sua atenção ao exame das listas de dispensação do SUS; estas, por sua vez, orientam o fornecimento de medicamentos tanto pelos governos quanto por planos privados de saúde.
No Tema 6 da Repercussão Geral, embora algumas das teses fixadas refiram-se aos trâmites administrativos necessários à incorporação de fármacos, pode acontecer de o beneficiário do plano privado postular judicialmente o fornecimento de um medicamento ausente nas listas do SUS e não-incorporado pela Conitec (itens 01 e 02 do Tema 6). Nessa hipótese, os atos administrativos podem ser examinados pelo juízo cível como questão incidental, sendo nula a decisão judicial que deixar de ouvir o NATJUS ou especialistas independentes (item 3 do Tema 6).
Por outro lado, o Enunciado 60 da Súmula Vinculante aponta que o “pedido e a análise administrativos de fármacos na rede pública de saúde, a judicialização do caso, bem ainda seus desdobramentos (administrativos e jurisdicionais), devem observar os termos dos 3 (três) acordos interfederativos (e seus fluxos) homologados pelo Supremo Tribunal Federal, em governança judicial colaborativa, no tema 1.234 da sistemática da repercussão geral RE 1.366.243”.
A repetição das expressões similares “judicialização do caso” e “desdobramentos jurisdicionais” permite concluir que não se trata de mera redundância, e sim de duas hipóteses distintas: a primeira é a judicialização do caso envolvendo a análise administrativa do fármaco (como questão principal, portanto); o segundo pode abranger desdobramentos judiciais tanto com entes públicos quanto com planos privados (hipótese em que os trâmites administrativos sobre os fármacos podem ser abordados incidentalmente, no juízo cível).
No Tema 1234 da repercussão geral, a tese 4.3 afirma que, tratando-se “de medicamento não incorporado, é do autor da ação o ônus de demonstrar, com fundamento na Medicina Baseada em Evidências, a segurança e a eficácia do fármaco, bem como a inexistência de substituto terapêutico incorporado pelo SUS”.
Não há dificuldades em exigir de um juízo cível, em demanda proposta em face de plano privado, a adesão à medicina baseada em evidências, submetendo, por exemplo, a pretensão resistida ao crivo técnico do NATJUS, ou exigindo, do autor, as provas da segurança, eficácia e exclusividade do medicamento para o tratamento em discussão.
O segundo caminho, para a interpretação dos precedentes, é examinar a proximidade entre os fatos juridicamente relevantes do caso paradigma e do caso concreto, independente da tese fixada pelo tribunal no julgamento original.
Nesse contexto, por mais que o Estado não tenha intuito lucrativo como o têm os planos privados de saúde, ambos dependem de um planejamento para a concretização das prestações devidas, de modo que um desequilíbrio orçamentário e fiscal, no caso do Poder Público, ou uma indefinição atuarial, no caso dos planos, pode comprometer benefícios devidos, respectivamente, a todos os cidadãos ou a todos os consumidores.
Assim, os fatos juridicamente relevantes que motivam a resistência do Estado e dos planos à concessão de medicamentos aproximam-se, permitindo que, por identidade de razões, os precedentes decorrentes da atuação estatal se adaptem à realidade dos planos. No mesmo sentido, Governos e planos de saúde, em rigor, negam o fornecimento de medicamentos quando não estão incorporados ao SUS, ou não estão registrados na Anvisa (Tema 990 do STJ), de modo que os motivos da recusa são similares.
Na realidade, a restrição ao fornecimento de medicamentos pelo Estado, contida na Súmula Vinculante, aplica-se à hipótese de fornecimento de medicamentos por planos de saúde, pois o Estado é garantidor primeiro dos direitos fundamentais, enquanto o plano de saúde se torna responsável pelo direito à saúde no âmbito de um contrato de direito privado, sem o alcance universal que é típico das prestações estatais. Se, segundo a jurisprudência do STF, um medicamento não é devido nem mesmo pelo Estado, com ainda mais razão não seria pelo plano – salvo por liberalidade ou obrigação contratual específica.
Por outro lado, se um beneficiário de plano de saúde for tratado no SUS, este poderá ressarcir-se junto ao plano (Lei Federal 9.656/1998, artigo 2). Assim, se nem mesmo o SUS é obrigado a fornecer determinado fármaco, não haveria sentido em determiná-lo ao plano de saúde.
De fato, é provável que a redução da judicialização da saúde, intentada pelos novos precedentes do STF, só seja mesmo concretizada, se as teses forem estendidas aos planos privados. Caso isso não ocorra, as pretensões resistidas pelo Estado tendem a ser direcionadas aos planos, que enfrentarão dificuldades de planejamento, devido à sistêmica falta de previsibilidade, gerada por decisões judiciais que porventura não respeitem os parâmetros do SUS, da Anvisa e do NATJUS.
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Em meio à indefinição atuarial, é provável que se aumentem, cada vez mais, os custos dos planos, especialmente para ingressantes. Como jovens, em geral, não estão habituados a planos com alto custo – e têm menos aversão ao risco de não ter um plano de saúde –, a tendência que se vislumbra é uma migração cada vez maior da população jovem para o SUS.
Portanto, seja pela interpretação das teses fixadas, seja pela aproximação dos fatos juridicamente relevantes, os Enunciados 60 e 61 da Súmula Vinculante se aplicam a planos privados de assistência à saúde. Além disso, seria insuficiente tentar reduzir a judicialização da saúde apenas com medidas direcionadas ao setor público, pois a insegurança jurídica no setor da saúde suplementar tende a dificultar o planejamento do próprio SUS.