Como já afirmamos em recente artigo[1], o ano de 2024 se encerrou com um balanço extremamente positivo para a Justiça do Trabalho. Um ano mirabilis, podemos assim dizer – momento histórico em que ocorrem avanços de grande monta, quiçá a maior mudança promovida na Justiça Especializada laboral nas últimas décadas. Ao efetivar profundas alterações de suas normas internas, os Ministros do Tribunal Superior do Trabalho (TST) marcaram a adesão decisiva da Corte ao modelo de corte de precedentes, passando a adotar no processo do trabalho importantes mecanismos que já se encontravam previstos no CPC 2015 e no regimento interno do STF.
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A técnica de reafirmação de jurisprudência, já utilizada pelo Supremo Tribunal Federal desde 2010 (art. 323-A do RISTF), e agora também prevista no Regimento Interno do Tribunal Superior do Trabalho (art. 132-A, §§ 5º e 6º do RITST), constitui uma das principais mudanças. Possui grande potencial para permitir que o TST, em tempo razoável, aproveite sua extensa jurisprudência pacificada para a formação de uma rede de precedentes vinculantes, com um rito simplificado, cobrindo a maior parte dos temas tradicionais – isto, sem prejuízo do rito usual, com onde necessária a profunda discussão das questões jurídicas novas e ainda não pacificadas.
Em suma, através da reafirmação de jurisprudência, o Tribunal Pleno, composto por todos os ministros do TST, reafirma temas que já foram objeto de exaustivo debate e julgamento, em que há entendimento uniforme pacificado nas oito Turmas do TST. Para o Presidente da Corte, Ministro Aloysio Corrêa da Veiga, “isso nos dá a certeza de que o debate qualificado em torno da questão jurídica já foi previamente realizado, amadurecido e consolidado, com a participação ampla e ativa de vários agentes da sociedade, nos processos individuais que tramitam e tramitaram no tribunal”.[2]
Os primeiros meses de 2025 já evidenciam os frutos de tais mudanças. Na mesma sessão plenária do TST em 24 de fevereiro, foram 14 novos temas admitidos (afetados) para futuro julgamento, e 21 teses foram fixadas de imediato, a partir do julgamento de recursos de revista cuja questão debatida já se encontrava, na realidade, pacífica na jurisprudência da Corte, que assim foi reafirmada com efeitos vinculantes. Na seção de 24 de março, por sua vez, foram 32 novos temas afetados, para trâmite pelo rito dos recursos repetitivos (IRR) e 18 temas reafirmados, a partir de recursos de revista submetidos a julgamento, formando, nestes, teses vinculantes que aplicam tradicionais entendimentos já pacificados no TST.[3]
Os resultados impressionam – mas o Tribunal Superior do Trabalho não pode prescindir de adotar medidas de maior eficácia, diante do gigantismo de seus desafios.
Veja-se que, apesar de sucessivos recordes de produtividade – a qual, e.g., aumentou 3,7% em 2024 (de 494.724 processos julgados em 2023, para 513.887 em 2024)[4] – os processos recebidos crescem em ritmo sempre maior (por exemplo, o alarmante crescimento de 20% da demanda recursal em apenas um ano, de 456.108 em 2023, para 571.189 em 2024), tornando vãos quaisquer esforços que se baseiem apenas na contratação de mais equipes de apoio, para aumento da produtividade decisória. Se fazia imperiosa, assim, uma reformulação da própria visão da dinâmica do Tribunal Superior do Trabalho, com reflexos em todo o sistema recursal trabalhista.
Foi nesse espírito de celeridade e eficiência que a Emenda Regimental TST nº 7, de 25/11/2024[5], introduziu a possibilidade de formação de precedentes vinculantes por “reafirmação de jurisprudência,” permitindo que “o julgamento de mérito do incidente de recurso repetitivo, no caso de mera reafirmação de jurisprudência dominante da Corte” seja realizado “na mesma sessão virtual que decide sobre a proposta de afetação.” (RITST, art. 132-A, §5º, dispositivo derivado do art. 323-A, do RISTF). Com isso, a Justiça do Trabalho ganha a possibilidade de aproveitar sua vasta rede de entendimentos jurisprudenciais já pacificados para a formação de precedentes vinculantes trabalhistas em quantidade e velocidade suficientes para recuperar uma década perdida em relação ao STF e ao STJ – cada qual já com mais de 1.000 temas julgados, enquanto que o TST, até 2024, contava tão somente com cerca de 20.
Justamente por estarem sedimentados, não demandam uma mais completa e complexa instrução, apenas para confirmar a aplicação do entendimento já reiteradamente aplicado pelas frações da Corte. Permitir uma completa rediscussão de tais temas, na realidade, se chocaria frontalmente com o dever geral de estabilidade jurisprudencial, comandado pelo art. 926 do CPC.
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Assim, de forma alguma se pode dizer que o procedimento seja ilegítimo ou que peque por falta de debate e aprofundamento. Antes pelo contrário, reflete apenas um aproveitamento mais célere e eficaz da tradicional jurisprudência do TST – discutida centenas ou milhares de vezes, com todo o vigor do contraditório implementado pelas partes e Ministério Público, em todas as 8 Turmas do TST, após a absoluta sedimentação e pacificação na Corte. Presentes tais premissas e, efetuada pesquisa jurisprudencial que confirme a absoluta pacificidade do tema, por questões de celeridade, aproveita-se a estrutura administrativa da Presidência para a pesquisa de novos casos-piloto discutindo a mesma velha questão. Justamente para evitar a permanência de uma resistente recorribilidade em torno das questões já sedimentadas, é adotado um procedimento simplificado, onde um novo recurso que a exemplifique é levado pelo Presidente ao Pleno, colegiado máximo do TST, que soberanamente decidirá, na mesma sessão, se admite a afetação e se desde já lhe reaplica o tradicional entendimento da Corte, julgando-lhe o mérito com efeito vinculante.
A aceleração procedimental, aqui, se dá pela possibilidade de pesquisa centralizada e imediata submissão ao Pleno, pela Presidência, assim como pela possibilidade de afetação do tema e reaplicação do entendimento pacificado na mesma sessão – ambos os procedimentos absorvidos a partir das boas práticas já sedimentadas pelo Supremo Tribunal Federal, no sistema da Repercussão Geral. No TST, tem sido responsável pelos números impressionantes, discutidos acima.
A eficiência e a efetividade do novo sistema se completam com a:
(a) legitimidade concorrente do Presidente do TST para propor IRR, IAC, e IRDR (RITST, art. 41, XLVII), e
(b) com o descabimento de agravos de instrumento em face da inadmissão de recurso de revista em face de acórdãos já prolatadas em conformidade com precedentes vinculantes (art. 1º-A da IN nº 40/2016 através da Resolução TST nº 224/2024).
Quanto à legitimidade concorrente do Presidente do TST, a partir dos recursos “ainda não distribuídos, submetendo-os ao Tribunal Pleno para fins de afetação de IRR, IAC ou IRDR, inclusive mediante reafirmação de jurisprudência (RITST, art. 41, XLVII), trata-se de regra também inspirada no Regimento Interno do STF (art. 323, caput e § 1º).
Tradicionalmente, o Presidente já atuava como relator quanto aos processos ainda não distribuídos, seja para “realizar a admissibilidade prévia dos recursos de revista e agravos de instrumento,” podendo “denegar-lhes seguimento” quando manifestamente inadmissíveis (RITST, art. 41, XL), assim como “determinar a devolução ao tribunal de origem dos recursos fundados em controvérsia idêntica àquela já submetida ao rito de julgamento de casos repetitivos para que o órgão que proferiu a decisão recorrida exerça o juízo de retratação” (XLI).
A atribuição expressamente acrescida através do inciso XLVII permite que o Tribunal – que, sob as regras anteriores, vinha firmando apenas um ou dois novos precedentes por ano – passe a atuar nesta seara de forma bem mais intensa, justamente pelo ganho de economia de escala, através de uma atuação estratégica da Administração da Corte. Viabiliza uma mais eficaz atuação no gerenciamento de precedentes, inclusive pela racionalização dos recursos humanos e tecnológicos da Administração do Tribunal, aproveitando as equipes ligadas à Presidência para a triagem, pesquisa e indicação de temas e processos representativos de controvérsias.
Tais equipes permanentes e altamente especializadas – a exemplo do que já antes ocorria com o STF e STJ – podem fornecer valiosos subsídios à Presidência do TST, especialmente quanto à pesquisa no próprio acervo ainda não distribuído, o que confere uma visão globalizada do que ingressa no Tribunal. Essa forma de trabalho permite uma mais célere identificação dos temas repetitivos e localização dos casos pendentes que os exemplifiquem, levando-os diretamente à soberana consideração do Pleno. Tal agilidade não seria possível caso tais equipes tivessem de se limitar à difícil pesquisa de possíveis casos-piloto pulverizados por todos os gabinetes, e caso se dependesse exclusivamente da iniciativa de diversos relatores, sem se aproveitar da economia de escala decorrente da estrutura especializada – em termos de pessoal e recursos tecnológicos – gerida pela Presidência da Corte.
Finalmente, reitere-se que o ciclo de formação de precedentes vinculantes, fomentado através da dinâmica acima, não estaria completo sem a restrição dos agravos de instrumento em matérias já com eles em conformidade, prevista no art. 1.030, §2º, do CPC, e externada como aplicável ao processo do trabalho através do art. 1º-A da IN nº 40/2016 (introduzido pela Resolução TST nº 224/2024). A medida busca diminuir a atual inundação da Corte com agravos de instrumento em recurso de revista (AIRR), que representam, atualmente, cerca de 79,2% do volume de recursos recebidos, ainda que para um irrisório índice de provimento, de 3,8%, em 2024[6]. De acordo com o novo art. 1º-A da IN nº 40/2016, em tais casos, caberá apenas “agravo interno da decisão que negar seguimento ao recurso de revista interposto contra acórdão que esteja em conformidade” com entendimento do TST em IRR, IAC ou IRDR.
Assim, de uma só vez, as mudanças acima:
- valorizam a jurisprudência tradicional da Corte, dando-lhe eficácia vinculante, mais potente na pacificação de dissidências entre os Tribunais Regionais;
- facilitam a provocação, com a legitimidade concorrente da Presidência;
- e evitam que, uma vez formado o precedente, outros processos repetidos sobre a mesma questão jurídica possam continuar indefinidamente a atingir a Corte Superior, sob a forma de AIRR, desviando-a de sua missão constitucional de concentrar-se na unidade do Direito nacional.
Compatibilidade da formação de teses
Finalmente, é preciso que se façam alguns breves comentários quanto à compatibilidade da emissão de teses – objeto da reafirmação de jurisprudência – com o sistema brasileiro de precedentes. Alguns temem que a divulgação de teses sintéticas para representar e divulgar os novos precedentes vinculantes – método utilizado por todos os Tribunais pátrios, em observância à divulgação padronizada estabelecida pelas Resoluções CNJ nºs 235/2014 e 444/2022[7] – possam empobrecer o sistema, engessando-o em curtos verbetes abstratos, que nem sempre conseguem capturar a complexidade da questão jurídica subjacente, resolvida no caso-piloto pela Corte prolatora do precedente[8].
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O temor poderia parecer em parte fundado. Afinal, durante quase oitocentos anos, a tradição jurídica luso-brasileira se lastreou no largo uso de teses abstratas – primeiro os assentos e os stylos da corte, e mais recentemente as súmulas[9] – cujos entendimentos eram firmados em lides concretas e então registrados nos assentos do Tribunal. Ocorre que a recorrente praxe jurídica se cristalizou na invocação abstrata de tais verbetes, desacompanhados de um exame mais profundo acerca do contexto fático-jurídico subjacente, debatido nos respectivos acórdãos de onde extraído o respectivo entendimento. Nos séculos anteriores – ou até mesmo nos anos 60, 70 e 80 do século XX, quando a prática dos verbetes sumulares foi introduzida no Brasil – até poderíamos compreender a abstrativização do debate, diante da maior dificuldade (às vezes impossibilidade) de consulta à íntegra dos precedentes que davam origem a tais verbetes. No entanto, na atualidade – em tempos de absoluta informatização do Poder Judiciário – tal abstrativização não se justifica.
O procedimento adotado pelos Ministros do TST, todavia, é hígido e harmônico com a formação em concreto de precedentes vinculantes, em conformidade com a Constituição e com a dinâmica preconizada no CPC 2015. Se baseia no julgamento de um novo caso-piloto pendente de julgamento e, se corre de forma mais célere, isto se dá apenas porque repete o entendimento já discutido exaustivamente em centenas ou milhares de outros casos análogos na Corte, sendo despicienda e não recomendável a rediscussão de entendimentos sedimentados, colocando em risco a estabilidade ordenada pelo art. 926 do CPC.
Aliás, se as próprias súmulas também devem, hoje, refletir as “circunstâncias fáticas dos precedentes que motivaram sua criação” (art. 926, §2º, do CPC), com muito mais razão tal se dá com as teses dos precedentes qualificados, que nada mais são do que julgamentos concretos que, em cumprimento dos deveres de isonomia (CF, art. 5º, caput) e coerência (CPC, art. 926, caput), deverão ser replicados nos casos subsequentes, quando discutida a mesma questão jurídica. Veja-se, por outro lado, que nem o Regimento Interno do TST nem tampouco os acórdãos dos precedentes firmados por reafirmação da antiga e tradicional jurisprudência do TST – restou autorizada a aplicação das respectivas teses em descompasso com os limites objetivos dos respectivos casos concretos. Antes pelo contrário, como recentemente asseverou o Ministro Cláudio Brandão,
o que cabe efetivamente a cada um que pretende aplicar o tema é ler e estudar a sua fundamentação, seus fundamentos determinantes, aquilo que se costuma chamar na jurisprudência de ratio decidendi. O que vincula não é simplesmente o enunciado da tese, mas os fundamentos que lhe dão sustentação, que estão contidos no respectivo acórdão, que é, na verdade uma síntese dos precedentes que embasaram aquele enunciado…é importante salientar… até para que se possa verificar a eventual existência ou não de distinção…[10]
Teme-se que a comunidade jurídica olhe com velhos vieses a lei nova, aplicando aos precedentes vinculantes a antiga e equivocada praxe da leitura abstrata dos enunciados que os sintetizam – como se lei fossem.
No entanto, como temos reiterado desde a primeira edição de nosso “Manual de Prática dos Precedentes”[11], o contexto fático relevante do litígio subjacente será sempre a moldura do entendimento jurídico firmado pela Corte – inclusive porque o Poder Judiciário julga casos, lides concretas – não legisla em abstrato. E nem poderia, diante do art. 60, § 4ª, III, da Constituição, que torna a separação dos poderes cláusula pétrea, não podendo o legislador – e nem mesmo o constituinte derivado, por emenda à Constituição – outorgarem aos juízes o poder de criar normas abstratas, como se lei fossem.
É exatamente nesse sentido a manifestação, acima transcrita, do Ministro Cláudio Brandão, no sentido de que não são os enunciados de tese que vinculam, mas sua fundamentação – conforme lastro na unanimidade da doutrina. Por exemplo, para Neil MacCormick e Robert Summers, “precedentes são decisões anteriores que funcionam como modelos para decisões posteriores. Aplicar lições do passado para resolver problemas do presente e do futuro é uma parte básica da razão prática humana”[12]. Em outras palavras, ainda que se possa cogitar de extratos que sintetizem o entendimento firmado em um precedente, ele nunca perderá sua natureza de decisão judicial, dada em determinado contexto, cuja lógica deverá ser, por coerência, repetida nas decisões posteriores.
Veja-se: serão reaplicados seus fundamentos, sua lógica, e não necessariamente as palavras exatas escolhidas para o verbete que divulgará tal entendimento ao público. A edição do verbete – muito conveniente, por seu poder de síntese da ideia firmada, e de fácil divulgação – não exime o operador do direito de interpretar, comparar, argumentar, e de verificar exceções não cobertas pela ratio decidendi do precedente original.
A emissão de uma tese que a sintetiza não possui, como vimos (e nem poderia ter) a pretensão de exaurir a discussão. Apenas resume aquela parte da controvérsia que foi resolvida no caso concreto julgado, da qual se pode extrair o comando jurídico subjacente, que especificamente pôs fim à controvérsia, a chamada ratio decidendi. Para Cross e Harris, esta poderia ser tida como uma “regra de direito expressa ou implicitamente tratada pelo juiz como passo necessário em atingir sua conclusão, na linha de raciocínio por ele adotada…”[13]. Já Arthur Goodhart, em um esforço para melhor precisar a ratio decidendi e seu alcance para reaplicação a casos posteriores, indicou que esta corresponderia aos fatos tratados pelo juiz da causa como essenciais (material facts) e a determinação judicial neles baseada[14]. Assim, nenhuma análise da ratio decidendi – parte vinculante do precedente – pode se exaurir com a mera leitura do enunciado de tese, abstratamente, sem o conhecimento do contexto do caso subjacente, de sua fundamentação e contornos fáticos, para fins de comparação com o contexto do caso atual.
Aliás, nem o próprio texto de lei exaure em sua literalidade todas as situações de sua possível aplicação, não sendo incomum que se cogitem de exceções expressamente mencionadas pelo legislador. Com muito mais razão, a formação de precedentes tampouco possui a pretensão de exaurir determinada temática com o julgamento de um único caso-piloto. O precedente formado sobre este piloto reflete apenas a questão jurídica neste discutida, não sendo aproveitável para cunhar exceções e abranger outras variantes fáticas, que não estejam englobadas na lógica da ratio decidendi original.
No entanto, nem tanto ao mar, nem tanto à montanha. Ainda que o enunciado de tese, quanto aos precedentes vinculantes não seja per se suficiente para exaurir a análise quanto à sua aplicabilidade a casos posteriores, isto tampouco significa que a emissão de teses seja um equívoco procedimental.
Antes pelo contrário, como vimos, as teses têm sido elaboradas por todos os Tribunais pátrios – inclusive nossa Suprema Corte. Decorrem de todo um sistema de publicização dos precedentes – conforme Resoluções CNJ nºs 235/2014 e 444/2022 – e são bastante úteis e práticas para tal finalidade. Para que não se transformem em verbetes abstratos que engessem e deturpem o sistema, basta que o intérprete lembre que teses não são leis, mas sim meras representações de julgamentos concretos – estes sim os precedentes vinculantes, através da respectiva ratio decidendi.
Assim, quando os Ministros do TST firmam um precedente vinculante e editam o respectivo enunciado de tese, tal busca refletir apenas a solução jurídica que constituiu fundamento determinante para a resolução do caso concreto julgado como representativo da respectiva controvérsia. Afinal, se nem o próprio legislador conseguirá antever todas as infinitas aplicações de um novo dispositivo de lei, da mesma forma não poderá o Judiciário, a partir de um único caso-piloto, conseguir regular as infinitas variações fáticas passíveis de ocorrência, mas estranhas aos limites objetivos da lide posta sob julgamento.
Tomemos como exemplo o Tema de IRR 61 (RR-0011574-55.2023.5.18.0012), referente aos danos morais in re ipsa em razão do medo e sofrimento psicológico decorrente da possibilidade de assaltos, vivenciado por aquele trabalhador que transporta valores sem o devido preparo e segurança. A tese firmada pelo TST, versou o seguinte: “O transporte de valores por trabalhador não especializado configura situação de risco a ensejar reparação civil por dano moral in re ipsa, independentemente da atividade econômica do empregador.”
No respectivo caso piloto (conforme fatos ventilados nas instâncias ordinárias):
É incontroverso que o reclamante, motociclista, transportava valores. (…) A testemunha Jerri Adriano Martins Neto afirmou que: “recebe os pagamentos das entregas realizadas, a maioria dos pagamentos é feito por boleto, pix ou transferência, a minoria é paga em espécie, recebendo em média R$3.000,00 a R$3.500,00 por dia, em dinheiro. O valor em espécie recebido é colocado no cofre, ficando com apenas em torno de R$50,00 para troco.
O presente caso exemplifica algo comum na análise e edição e aplicação de precedentes – a Corte julga o caso diante de si e extrai a ratio deste, buscando editar uma tese que sintetize satisfatoriamente tal ideia, sem a pretensão de prever o futuro, ou de julgar uma infinidade de variações possíveis, conexas à situação existente no caso-piloto. Assim, no caso acima, não é possível, abstratamente, pensar que o Tribunal Superior do Trabalho pretendeu incluir toda e qualquer situação de transporte de valores no escopo de aplicação dos danos morais. O que se tem certeza é que entendeu por deferir indenização por danos morais, numa situação de transporte por entregador que recebe alguns pagamentos em espécie, que porta diariamente, em média, R$3.000,00 a R$ 3.500,00 – sem que fossem ventilados outros fatos que pudessem levar a conclusão dos Ministros para caminhos diversos.
Pensemos em outras hipóteses, de fatos com diferenças gritantes, que certamente poderiam levar os Ministros do TST a outra conclusão, caso integrassem o caso sub judice. Poderíamos pensar na situação de transporte de valores ínfimos, por exemplo, um vendedor ambulante de pipocas, que tenha nos bolsos uma média de R$ 100,00 a R$ 200,00 por dia. O correspondente empregador teria de pagar indenização por danos morais ao empregado, portanto sendo considerado um ato ilícito submeter o vendedor ambulante ao transporte de R$ 100,00? Provavelmente não – até mesmo porque, sendo valores habitualmente carregados por qualquer cidadão. Seria situação de distinguishing em relação ao caso-original (repita-se, não em relação ao verbete – o qual não é vinculante por sua literalidade – mas sim em prelação ao caso precedente).
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Veja-se, assim, que a aplicação de precedentes já existentes – ou a sua distinção, levando à formação de precedentes novos – depende da peculiar discussão travada no caso concreto. A cada nova situação que não se enquadre na ratio, surge outra discussão, com o potencial de formar novo precedente. Adicionam-se capítulos ao romance em cadeia de que fala Dworkin. O celebrado autor destaca que precedentes nunca são uma obra acabada, devendo, isto sim, formar uma rede íntegra de julgados, onde as decisões posteriores desenvolvem, a cada nova situação enfrentada, um subsequente capítulo, coerente com o quanto já antes escrito.
Assim, não deve ser preocupação do Tribunal “regulamentar” determinada matéria de forma completa, tentando prever todas as suas possíveis implicações e desdobramentos. Tal é a seara própria do legislador – este sim podendo criar norma abstratamente. Todavia, nada impede que os Tribunais afetem mais de um caso-piloto simultaneamente, um de cada variante conexa à questão principal, ampliando a base fática e assim permitindo a formação de uma tese mais ampla – na realidade, um conjunto de teses conexas, conveniente e didaticamente reunidas, em um mesmo IRDR ou IRR.
Em suma, não cabe ao Tribunal estipular limites precisos, abstratamente, mas sim julgar casos concretos onde tais limites estejam controvertidos – tal é justamente a diferença entre a atuação Legislativa e a esfera Judiciária[15].
Buscamos expor, aqui, algumas considerações introdutórias sobre o novo instituto da reafirmação de jurisprudência, no contexto de sua implementação no TST, com impressionantes resultados quanto à recente produção de precedentes. Tais reafirmações se dão através do julgamento de recursos novos sobre questões já bastante conhecidas e devidamente pacificadas na Corte – justamente por isso permitindo uma abreviação procedimental e, assim, maior celeridade, essencial para que o TST consiga avançar no ritmo que a sociedade espera. Finalmente, registramos que as respectivas teses que resumem tais precedentes não possuem a intenção de exaurir as complexas temáticas enfrentadas diuturnamente na Justiça do Trabalho, geralmente permeadas de substancial diversidade fática. Antes pelo contrário, tais teses são, na realidade, o ponto de partida de um mais profundo exame comparativo entre o caso precedente e o caso atual, inclusive permitindo enriquecer o sistema de precedentes cada vez que se conclui existir distinguishing – viabilizando complementar tal sistema, redigindo-lhe mais um “capítulo”.
Tal sistema é exatamente aquele ainda em processo de maturação no cenário nacional, e que agora é intensificado no TST. Com a mecânica inspirada naquela do STF, de reafirmação de jurisprudência, não pretende o TST criar teses novas, mas sim, de uma forma mais ágil, dar força nova para sua jurisprudência antiga. Elevando sua jurisprudência tradicional à categoria vinculante, reforça a disciplina judiciária e efeitos de pacificação nacional (sua missão maior) e abreviação da recorribilidade.
A medida fomenta a disciplina judiciária que já existe espontaneamente em alguns outros países de civil law, como Alemanha e França (onde seguidos os precedentes superiores a despeito de inexistir coercibilidade expressa para sua inobservância), mas que aqui ainda depende do uso de incidentes próprios para a formação de precedentes formalmente vinculantes, a fim de romper com o anterior paradigma de eternização dos dissensos.
Espera-se que, a médio prazo, após a criação de uma mais completa e complexa rede de precedentes vinculantes, tanto nos Tribunais de segundo grau e quanto nos superiores, a divergência entre frações de um mesmo Tribunal deixe de ser visto como algo natural ou tolerável, sendo tal cultura jurídica substituída pela busca de coerência total, entre todos os julgados de um mesmo Tribunal e entre Tribunais diversos, como preconiza a singela mas ambiciosa determinação contida no profunda norma do art. 926 do CPC: “Os tribunais devem uniformizar sua jurisprudência e mantê-la estável, íntegra e coerente”.
[1] PRITSCH, Cesar Zucatti. 2024: o ano em que o TST se tornou uma corte de precedentes. Revista Consultor Jurídico – CONJUR. 30/12/2024. Disponível em <https://www.conjur.com.br/2024-dez-30/2024-o-ano-em-que-o-tst-se-tornou-uma-corte-de-precedentes/>.
[2] BRASIL. Tribunal Superior do Trabalho. Nova página facilita acompanhamento de recursos repetitivos no TST. 27/03/2025. Disponível em <https://tst.jus.br/en/web/guest/-/nova-p%C3%A1gina-facilita-acompanhamento-de-recursos-repetitivos-no-tst>.
[3] BRASIL. Tribunal Superior do Trabalho. TST reafirma jurisprudência em novos temas e cria novos incidentes de recursos repetitivos. 24/03/2025. Disponível em < https://tst.jus.br/en/web/guest/-/tst-reafirma-jurisprud%C3%AAncia-em-novos-temas-e-cria-novos-incidentes-de-recursos-repetitivos>.
[4] BRASIL. Tribunal Superior do Trabalho. Movimentação Processual do TST 2024, pg. 3. Disponível em <https://tst.jus.br/web/estatistica/tst>.
[5] BRASIL. Tribunal Superior do Trabalho. Emenda Regimental n. 7, de 25 de novembro de 2024, republicada em 17 de dezembro de 2024. Disponível em <https://juslaboris.tst.jus.br/handle/20.500.12178/242869>.
[6] BRASIL. Tribunal Superior do Trabalho. Movimentação Processual do TST 2024, pgs. 20-21. Nov. 2024. Disponível em <https://tst.jus.br/web/estatistica/tst>.
[7] O uso de teses, para representar os precedentes dos Tribunais, é mencionado também no codex, por exemplo, em seus arts. 12, § 2º, II, 311, II, 927, § 4º, 947, § 3º, 955, § único, II, 976, § 4º, 978, § único, 979, § 2º, 984, § 2º, 985, 986, 987, § 2º, 988, § 4º, 1.022, § 2º, II, 1.038, § 3º, 1.039, 1.040, III e IV, 1.043, § 1º. Por mais que o termo “tese” seja, no CPC 2015, na realidade utilizado como sinônimo de ratio decidendi – ou seja da do princípio ou regra jurídica que se extrai do entendimento firmado no acórdão – nenhum de tais dispositivos desautoriza a divulgação de tais entendimentos de forma sintética. Mecanismos eficazes e práticos para sua ampla divulgação informam todo o nosso atual sistema processual – a exemplo do art. 979 do CPC, e das Resoluções CNJ nºs 235/2014 e 444/2022.
[8] MOLINA. André Araújo Molina. O TST tenta apanhar as estrelas com as mãos. Revista Consultor Jurídico – CONJUR. 22/03/2025. Disponível em <https://www.conjur.com.br/2025-mar-22/o-tst-tenta-apanhar-as-estrelas-com-as-maos/>. O autor do respectivo ensaio é pessimista em relação à aprovação de teses em bloco, na chamada reafirmação de jurisprudência, uma vez que tal método “somente acrescentará complexidade, estimulará disputas e potencializará a subjetividade dos intérpretes, gerando o efeito reflexo com aumento do número de reclamações que chegarão à corte, levando à necessidade de revisão das teses ou mesmo ao seu colapso”.
[9] Tivemos a alegria de compartilhar a autoria de recente estudo em tal sentido com o Exmo. Ministro Aloysio Corrêa da Veiga, Presidente do TST, VEIGA, Aloysio Corrêa da; PRITSCH, Cesar Zucatti. Paralelos entre a Lei da Boa Razão de 1769, na tradição lusa, e o sistema brasileiro de precedentes. In Liber Amicorum: Homenagem aos 13 Anos de Atuação do Ministro Marco Buzzi na Corte da Cidadania (org. Aline Gomes Caselato et al.), Leme-SP: Mizuno, 2025, pgs. 312-329.
[10] BRANDÃO. Cláudio Mascarenhas. Os 21 novos precedentes do TST. Webinário CSJT. 24/03/2025. Disponível em < https://www.youtube.com/watch?v=K6O0ESWTebg, minuto 26º>.
[11] PRITSCH, Cesar Zucatti. Manual de Prática dos Precedentes. 1ª ed., São Paulo: LTr, 2018, pg. 148-149.
[12] Precedents are prior decisions that function as models for later decisions. Applying lessons of the past to solve problems of present and future is a basic part of human practical reason. MACCORMICK, D. Neil; SUMMERS, Robert S. Introduction. In: MACCORMICK, D. Neil; SUMMERS, Robert S. (org.). Interpreting Precedents (1997). Oxfordshire: Routledge, 2016, p. 1.
[13] CROSS, Rupert; HARRIS, J. W. Precedent in English Law. 4. ed. Oxford University Press, 1991 (reimpressão em 2014, Nova Deli). p. 52.
[14] GOODHART, Arthur L. Determining the ratio decidendi of a case. The Yale Law Journal, v. 40, n. 2, p. 162 e ss., 1930.
[15] O exemplo em tela foi também utilizado na mencionada crítica – MOLINA. André Araújo Molina. O TST tenta apanhar as estrelas com as mãos. Revista Consultor Jurídico – CONJUR. 22/03/2025. Disponível em <https://www.conjur.com.br/2025-mar-22/o-tst-tenta-apanhar-as-estrelas-com-as-maos/>. As provocações do colega quanto às variantes fáticas não respondidas pelo IRR nº 61 são excelentes. Transcrevo: “E, a partir da premissa, se 1) o treinamento fornecido àqueles que forem incumbidos de transportar dinheiro afastaria a ilicitude? 2) se o montante transportado é relevante para a definição da ilicitude da exigência empresarial? E, se sim, qual o parâmetro? 3) se o transporte precisa ser constante e habitual ou se bastaria a exposição eventual ou intermitente? 4) se apenas o motorista, diretamente incumbido do recebimento, ou também o ajudante que o acompanha no itinerário está exposto? 5) se o contexto fático-social em que o contrato foi executado – indicadores de criminalidade da região, a existência de anteriores incidentes, a previsibilidade concreta etc. – é relevante para se apurar a ilicitude da conduta?”.
Todos os fatos mencionados, se comprovados nos autos, smj poderiam levar os Ministros do TST a reconhecerem distinguishing ou, no mínimo, a uma robusta discussão – já que são fatos que não constavam do caso-piloto original e que, portanto, não integram sua ratio-decidendi. Divirjo, entretanto, de que seja obrigação da Corte de Precedentes antever todas tais variantes e buscar seu enfrentamento imediato. Em que pese até recomendável localizar possíveis outros casos-piloto, contendo tais discussões complementares, para fins de julgamento conjunto no incidente, tal nem sempre é possível, e nada impede que seja feito a posteriori, dando seguimento ao romance em cadeia de que falou Dworkin.