O avanço do retrocesso na questão do aborto

A legislação brasileira com relação ao aborto é das mais restritivas do mundo. Nós, mulheres, alcançamos na Constituição de 1988 o reconhecimento do direito de escolher livremente o número de filhos, bem como o dever do Estado em fornecer informação e meios para tal (Artigo 226, §7º). Desde 1940, temos a possibilidade de interromper a gravidez em casos de estupro e risco de vida. Em 2012, o STF ampliou esse direito para casos de anencefalia do feto.

Essas são as únicas situações permitidas por uma legislação que praticamente é a mesma há mais de 80 anos. E o direito brasileiro não considera outras causais, como problemas de saúde da gestante, anomalias fetais incompatíveis com a vida e condições socioeconômicas vulneráveis.

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Como se as poucas conquistas no tema não fossem tímidas, elas estão constantemente ameaçadas por iniciativas que buscam restringir ou até mesmo negar direitos adquiridos, violando a dignidade humana e a saúde das meninas e das mulheres.

Em 2024, o Congresso ensaiou colocar em votação em regime de urgência o “PL do Estupro” (Projeto de Lei 1904/2024), que equiparava o aborto legal em idade gestacional acima de 22 semanas, inclusive em casos de estupro, ao crime de homicídio simples. O retrocesso da proposta reacendeu o debate sobre o aborto legal no país e com o lema “Criança não é mãe” tornou-se uma grande oportunidade para conscientizar a sociedade brasileira quanto à necessidade de barrar retrocessos e evoluir as leis e políticas públicas voltadas à saúde reprodutiva.

Afinal, estamos a 80 anos de distância da última legislação a respeito do tema.
Desde 2017, segundo levantamento da ONG Azmina, multiplicam-se em todo o país projetos de lei inconstitucionais sobre direitos reprodutivos, propostos por vereadores conservadores. Nos últimos oito anos — e ainda que esta seja uma pauta de competência federativa —, foram apresentadas 103 propostas nas câmaras das capitais sobre os temas aborto ou nascituro, na maioria propondo retrocessos.

É o caso, por exemplo, da obrigação de que pessoas que buscam realizar um aborto legal sejam obrigadas a ouvir os batimentos cardíacos do feto, a receber informações falsas sobre supostos efeitos colaterais e psíquicos de um aborto ou a se submeter a demonstrações de como um feto é extraído do ventre da mãe.
Além disso, são ainda escassos os serviços de atendimento a vítimas de violência sexual em nosso país. De acordo com o Ministério da Saúde, o serviço de interrupção legal da gestação é oferecido somente em 2% dos municípios.

E essa rede de apoio tem sido reduzida e constantemente atacada por forças fundamentalistas, religiosas e laicas, que hoje ocupam espaços de poder e têm sido exitosas em colocar o aborto no rol dos temas “malditos”, em que não há espaço para princípios de laicidade, ciência, saúde, direitos humanos, pluralismo, democracia. Onde o aniquilamento moral do outro substitui a argumentação, o diálogo, a discussão política.

Nossa luta é para que movimentos internacionais autodenominados “pró-life” e seus seguidores nacionais não violem direitos adquiridos desde 1940, em situações reconhecidas pela expressiva maioria dos 193 Estados-parte das Nações Unidas.

Porque as consequências desse ambiente de violências, obstáculos e criminalização, são trágicas: cerca de 800 mil mulheres brasileiras passam por abortamentos inseguros todos os anos. Dessas, 200 mil recorrem ao SUS para tratar as sequelas desses procedimentos.

Para a Organização Mundial da Saúde (OMS), que já cobrou ações do governo brasileiro, o número de abortos inseguros pode ultrapassar um milhão de mulheres. Essa é a quinta causa de mortes maternas no Brasil. Com dolorosas consequências para as famílias destas mulheres e de seus filhos, órfãos.

A justiça reprodutiva, que aponta as diferentes formas de opressão às mulheres, como racismo e pobreza, destaca o impacto ainda maior da morte materna para as mulheres e meninas negras.

O debate sobre o direito ao abortamento não é uma pauta de um grupo específico, como as feministas, ela diz respeito a toda a sociedade brasileira. Esse é um grave problema que deve ser enfrentado com seriedade e clareza em um debate republicano, no respeito a cidadania plena das mulheres, adolescentes e meninas brasileiras. Elas precisam exercer seus direitos de tomar decisões autônomas nas diversas dimensões de suas vidas, na família, no trabalho e sobretudo na sexualidade e no planejamento familiar.

O voto feminino era algo impensável há 200 anos. Hoje, é impensável negá-lo. É necessário expandir o debate e permitir o progresso, e não o retrocesso das conquistas até aqui alcançadas.

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