Suprema Corte do México entre pressões políticas e reformas judiciais

Nos últimos meses, o governo mexicano de Claudia Sheinbaum enfrentou uma de suas primeiras crises diplomáticas com os Estados Unidos. Em um movimento que tensionou ainda mais as relações entre os países, o presidente Donald Trump anunciou a imposição de tarifas de 25% sobre a importação de produtos mexicanos. Justificou tal medida como necessária para conter a imigração ilegal e o tráfico de fentanil, embora tenha suspendido temporariamente o início de sua vigência até abril.

Entre ameaças e recuos, a instabilidade persiste. O México segue altamente vulnerável às decisões unilaterais dos EUA, seguindo a tônica história das relações bilaterais. Mas, por mais que o “tarifaço” prometa impactos em escala global, os problemas reais enfrentados pelo México parecem ser de outra natureza. O desafio interno de manutenção da estabilidade democrática, por exemplo, acabou, pouco a pouco, sendo absorvido pelas polêmicas tarifárias. Contudo, é este o problema que deveria chamar a atenção dos demais países na região.

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De particular interesse para a América Latina, os processos de erosão democrática observados nos anos mais recentes caracterizam-se por subverter a democracia sem violar diretamente a ordem constitucional, fenômeno que ganhou luzes a partir dos conceitos de constitucionalismo abusivo (Landau, 2013) e legalismo autocrático (Scheppele, 2018).

A região latino-americana tem sido terreno fértil para toda sorte de experimentos em matéria de democracia e constitucionalidade (Marona, 2024). Como esquema geral, os caminhos em direção ao autoritarismo encadeiam medidas de concentração de poderes no Executivo, perseguição a líderes de oposição, mudanças nas regras eleitorais, cerceamento da liberdade de expressão, novas constituições ou emendas constitucionais com abuso de poder pelas maiorias, inclusive para ampliação do período de permanência de líderes no poder, com reeleições sucessivas (Barroso, 2022). Nestes experimentos, o enfraquecimento de Supremas Cortes é a estratégia que sela um destino fatal às democracias.

Ataques às Supremas Cortes na América Latina

Países como Peru, Colômbia, Bolívia, Venezuela, Nicarágua, Brasil e México passaram por episódios marcantes – ainda que diversos em intensidade e gradação – de retaliação, captura, deslegitimação e descredibilização pública do Judiciário e de seus integrantes nos últimos anos.

Para focar apenas nos casos mais recentes e graves, começamos pela Venezuela. O país representa um caso extremo de captura do Judiciário, no qual a Suprema Corte do país foi transformada em um instrumento do regime autoritário sob o comando de Hugo Chávez (1999-2013) e Nicolás Maduro (2013-presente). A derrocada que pôs fim à independência judicial venezuelana envolveu reformas legais, nomeações políticas estratégicas e perseguição a magistrados dissidentes, garantindo o controle quase absoluto do Executivo sobre o sistema judicial.

Na Nicarágua o processo foi semelhante. Sob o governo de Daniel Ortega (2007-presente), a Suprema Corte tornou-se um dos exemplos mais claros de captura total do Poder Judiciário na América Latina, em que o Judiciário foi transformado em um instrumento de repressão do regime, garantindo a perpetuação do poder de Ortega e eliminando qualquer oposição política.

A Bolívia representa um ponto peculiar nas estratégias de enfraquecimento de Supremas Cortes: foi o primeiro país do mundo a adotar um modelo de eleições diretas para escolha de magistrados das principais Cortes que organizam o sistema judicial boliviano (Olvero, 2024). Esse modelo, adotado em 2009 e vigente desde 2011 passou a emitir sinais de que a “inovação” não caminha bem. Entre 2023 e 2024, foram registrados impasses na renovação dos magistrados, com adiamentos nas eleições para a escolha dos novos juízes.

No Brasil, o Supremo Tribunal Federal (STF) tem sido alvo de sucessivas tentativas de captura, tanto por governo que tentou intervir ou fazer desacreditar suas decisões, quanto pelo Congresso e setores políticos que buscam limitar sua atuação, isso sem deixar de lado as tentativas de destruição física da sede do tribunal e os ataques – físicos e verbais – aos ministros da corte.

Em um dos momentos de maior tensão política no país, em 8 de janeiro de 2023, movimentos de rua e setores militares chegaram a sugerir o fechamento do STF, houve destruição física da corte e uma tentativa fracassada de golpe de Estado, que resultou na denúncia de 34 pessoas, incluindo o ex-presidente da República, atualmente sob andamento no STF. Embora o Judiciário brasileiro tenha sobrevivido a esses gravíssimos episódios, sua estrutura e resiliência institucional impediram que tais investidas chegassem ao propósito derradeiro.

Por fim, o caso mais recente de investida contra as Cortes Supremas na região se encontra no México. O país conta com uma Suprema Corte relativamente independente, mas que enfrentou pressões políticas ao longo da história (Ansolabehere. 2010; Castillos-Aragón, 2013; Magaloni, 2003, 2008). Especialmente durante o governo de López Obrador (2018-2024), o Judiciário foi alvo de tentativas de captura que envolveram ataques verbais, descredibilização do Poder Judiciário perante a opinião pública, redução de garantias judiciais e uma proposta ampla de reforma judicial.

A polêmica reforma do Judiciário no México

Entre os inúmeros desafios pulsantes no México, destaca-se a nova reforma do Judiciário, proposta durante o governo de López Obrador e em vias de implementação por sua sucessora política, a atual presidente Claudia Sheinbaum.

A reforma do sistema judicial integra um pacote de 20 medidas apresentado pelo ex-presidente para modificar várias partes da Constituição do país. Ao emergir de um contexto político populista, nacionalista e polarizado, a reforma judicial serviu de resposta ao desempenho da Suprema Corte na contenção de medidas do Executivo.

Chama a atenção, também, o fato de o processo de aprovação dessa proposta de reforma judicial ter transcorrido de modo excepcionalmente célere. Para se ter uma ideia, o processo legislativo começou na Câmara dos Deputados em 3 de setembro e foi aprovado pelo Senado em 11 de setembro de 2024, às 3 da manhã.

A nova reforma judicial introduziu alterações estruturais e profundas no Poder Judiciário mexicano. Dentre as mais polêmicas, estão a eleição direta de juízes e ministros, a redução do número de magistrados da Suprema Corte, a criação do Tribunal de Disciplina Judicial e a prática dos “juízes sem rosto”, para os casos envolvendo o crime organizado.

No que tange à abrangência, a reforma inclui o término dos mandatos de todas as autoridades judiciais mexicanas para permitir eleição popular da magistratura do país. Calcula-se que entre 2025 e 2027, cerca de 7.000 juízes sejam substituídos, ao custo de um processo eleitoral inicialmente estimado em 7 bilhões de pesos.

Em meio a esses acontecimentos, oito juízes da Suprema Corte renunciaram simbolicamente aos seus mandatos, em protesto contra a reforma. A medida é simbólica justamente porque a reforma judicial já exigia a renúncia de magistrados que não desejassem participar das eleições, como forma de manter suas aposentadorias.

As mudanças têm provocado intensos debates, especialmente sobre a independência da Suprema Corte de Justiça da Nação (SCJN), a Suprema Corte do país. Enquanto seus defensores apontam para uma democratização do Judiciário, críticos temem sua politização, a ameaça à independência dos juízes e o comprometimento grave ao acesso à justiça e à vigência do Estado de Direito no país.

Não sem razão, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos – autoridade internacional encarregada da observância dos direitos humanos na região – emitiu um comunicado de imprensa advertindo sobre os possíveis impactos negativos da reforma judicial no México.

Por sua vez, a relatora especial sobre a independência de magistrados e advogados das Nações Unidas expressou sua preocupação com a incompatibilidade das propostas em relação às obrigações do direito internacional dos direitos humanos. Destacou que considerações políticas poderiam se sobrepor aos méritos objetivos na seleção de juízes e juízas, e advertiu sobre os riscos à estabilidade do cargo, bem como as possíveis interferências na autonomia administrativa e disciplinar do Judiciário.

Em resumo, as tensões atuais no contexto mexicano mostram que a independência judicial, a separação dos Poderes e a democracia continuam sendo temas sensíveis e politicamente disputados no país.

Três alertas

O caso mexicano permite ao Brasil refletir sobre três aspectos fundamentais:

  1. A importância da independência judicial: O fortalecimento das instituições democráticas exige um Judiciário autônomo e livre de interferências políticas. Diferentemente da Suprema Corte mexicana, o STF, por força do seu desenho constitucional, dispõe de amplas garantias de independência judicial, mantém ações e remédios constitucionais que permitem o acesso direito ao tribunal pelos cidadãos, além de contar com mecanismos robustos de controle de constitucionalidade (Bernardi, 2015; Benvindo e Acunha, 2018).
  2. A necessidade de transparência e aproximação com a sociedade: O STF é internacionalmente reconhecido pelo seu pioneirismo na comunicação de decisões e processos decisórios, em especial, por meio dos canais oficiais da TV e Rádio Justiça, que transmitem ao vivo, direto do plenário da Corte, os julgamentos em pauta, além de manter contas ativas em nove redes sociais. Ademais, ressaltam-se as iniciativas recentes de simplificação da linguagem no Judiciário e explicação dos casos julgados para a sociedade. O Judiciário mexicano, em contraste, ainda luta para estabelecer comunicação eficiente com a população, embora o país tenha sido pioneiro na regulamentação do direito de acesso à informação (Dutra, 2022).
  3. A relevância da diplomacia judicial e do diálogo entre cortes: A cooperação entre tribunais da América Latina é essencial para o fortalecimento do Estado de Direito na região. Ambas as Supremas Cortes brasileira e mexicana partilham uma trajetória similar de abertura gradual ao direito internacional dos direitos humanos, além de manterem compromisso internacional com o Sistema Interamericano de Direitos Humanos. Nesse sentido, o STF e a SCJN poderiam beneficiar-se mutuamente: da participação no sistema regional de direitos humanos; da diplomacia judicial e das iniciativas promissoras de redes judiciais transnacionais que têm de formado na região, também como forma de resistir a pressões autoritárias (Mello e Garça, 2020; Garbin, 2025a e 2025b).

O que ocorre no México é um alerta grave. A independência judicial é uma das últimas barreiras contra retrocessos democráticos profundos. No Brasil ou no México, esse desafio depende não apenas da atuação das Supremas Cortes, mas também da sociedade civil, da vigilância contínua sobre os rumos institucionais do país e do acompanhamento atento e coordenado sobre os desenvolvimentos na região e no mundo.


Ansolabehere, K. (2010). “More power, more rights? The Supreme Court and society in Mexico.” In Javier Couso, Alexandra Huneeus & Rachel Siedder. Cultures of Legality: judicialization and political activism in Latin America. Cambridge: Cambridge University Press, 78-111.

Barroso, L. R. (2023). Populismo, Autoritarismo e Resistência Democrática: as cortes constitucionais no jogo de poder. Revista Direito e Práxis, 14 (03), 1652-1685.

Benvindo, J. Z.; Acunha, F. J. G. (2018). O papel da política na atuação das Cortes Supremas: uma comparação entre Brasil e México. Novos Estudos CEBRAP, 37(01), 57-79.

Bernardi, B. B. (2015). O sistema interamericano de direitos humanos e a justiça de transição: impactos no Brasil, Colômbia, México e Peru. Tese (Doutorado). São Paulo, Universidade de São Paulo.

Castillejos-Aragón, M. (2013). “The Transformation of the Mexican Supreme Court into an Arena for Political Contestation”. In: Kapiszewski, D.; Silverstein, G.; Kagan R. A. (eds.). Consequential Courts: Judicial Roles in Global Perspective. Comparative Constitutional Law and Policy. Cambridge University Press; 138-160.

Dutra, L. P. (2022). A trajetória mexicana na consolidação do direito de acesso à informação pública: histórico e desafios. Revista da CGU, 14 (26), 342-354.

Garbin, I. (2025a). STF no Mundo: perspectivas e desafios para uma agenda internacional”. Londrina: Thoth. [No prelo].

______. (2025b) “Supremo Tribunal Federal: diplomacia judicial para atuação no exterior”. In: França, E. P.  C.; Casimiro, M. (orgs.). O Supremo em Transformação: história, inovações e desafios. Londrina: Thoth, 387-408.

Landau, D. (2013). Abusive Constitutionalism. UC Davis Law Review, 47 (1): 189-260, 2013.

Magaloni, B. (2003).  “Authoritarianism, Democracy and the Supreme Court: Horizontal Exchange and the Rule of Law in Mexico”. In: Scott Mainwaring; Christopher Welna (eds.). Democratic Accountability in Latin America. Oxford.

______. (2008). “Enforcing the Autocratic Political Order and the Role of Courts: The Case of Mexico”. In: Ginsburg, T.; Moustafa, T. (eds.). Rule by Law: The Politics of Courts in Authoritarian Regimes. Cambridge University Press, 180-206.

Marona, M. (2024). “El Supremo Tribunal Federal y el Populismo Bolsonarista: lecciones para México”. In: Olvera, A. J. (ed.). La Politizacióm del Poder Judicial y el Papel de la Suprema Corte em la Democracia: los casos de Brasil, Bolivia y México. Mexico: ITESO, Universidade Jesuita de Guadalajara. (Materiales para la discusión de la reforma judicial mexicana.

Mello, P. P. C.; Garça, F. M. (2020). O STF em rede? Quanto, como e com que engajamento argumentativo o STF usa precedentes estrangeiros em suas decisões? Revista de Direito Internacional, 17(1): 92-124.

Olvera, A. J. (2024). “Introducción”. In: Olvera, A. J. (ed.). La Politizacióm del Poder Judicial y el Papel de la Suprema Corte em la Democracia: los casos de Brasil, Bolivia y México. Mexico: ITESO, Universidade Jesuita de Guadalajara. (Materiales para la discusión de la reforma judicial mexicana.

Scheppele, K. L. (2018). Autocratic legalism. The University of Chicago Law Review, 85 (2): 545-586.

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