Debate sobre a Constituição passou de como promover direitos para como impedir um golpe

Professor há mais de 20 anos, Marcelo Labanca, que dá aulas de Direito Constitucional na Universidade Católica de Pernambuco, afirma que viu uma transformação no debate sobre Direito Constitucional neste período, que foi do campo dos direitos fundamentais para a arena política. “E eu confesso que nos últimos tempos [dar aula de Direito Constitucional] tem sido um grande desafio”, diz.

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Ele diz que quando começou a dar aula a discussão era sobre a Constituição como limite ao poder do Estado e, ao mesmo tempo, de defesa de direitos, sobre como promover mais direitos sociais. “Então a discussão era outra, a discussão era sobre a efetividade de direitos sociais, a discussão não era sobre utilizar a Constituição para poder impedir golpe de Estado, utilizar a Constituição para poder impedir autoritarismo, isso estava no passado. Porque você não imaginava pensar em um novo golpe de Estado depois da experiência brasileira em 1964.”

Para Labanca, esse debate tem se intensificado nas salas de aula, principalmente na pós-graduação. “Infelizmente, há casos em que você não tem no aluno de pós-graduação uma visão crítica para  perceber as falácias do uso de argumentos constitucionais”, diz. Ele cita como exemplo a interpretação sobre o uso da expressão “dentro das quatro linhas da Constituição”, que era muito utilizada pelo ex-presidente Jair Bolsonaro, denunciado por tentativa de golpe de Estado pela Procuradoria-Geral da República (PGR). “Mas ele está dentro da Constituição por quê?”

A Constituição Federal, afirma Labanca, passou a ser usada para sustentar questões que estão mais inseridas na política, e essa mudança não ocorre somente no Brasil, mas mundialmente. “A gente está preso em um tipo de discussão que a gente não deveria estar mais”, considera.

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O professor Marcelo Labanca é mais um entrevistado da série do JOTA sobre os desafios de ensinar Direito Constitucional no Brasil atual.

A série explora com professores renomados como é o ensino e a formação dos futuros operadores do Direito, em um cenário onde a Constituição é não apenas um texto jurídico, mas também um campo de inúmeras disputas sociais.

Leia abaixo trechos da entrevista com Marcelo Labanca, professor de Direito Constitucional da Universidade Católica de Pernambuco. A íntegra está disponível no YouTube do JOTA. Inscreva-se no canal para acompanhar todas as onze entrevistas da série.

Como é que tem sido esse desafio nesses últimos anos de dar aula sobre o Direito Constitucional em Pernambuco? 

Bem, não tem sido, eu diria, muito tranquilo. E eu falo isso de maneira comparativa em relação aos anos antecedentes. Eu sou professor há mais de 20 anos, professor de Direito Constitucional, e eu confesso que nos últimos tempos tem sido um grande desafio.

E o que é que eu digo mais? Eu diria, inclusive, que isso é um desafio não só brasileiro. Estive há dois anos com o professor [Gustavo] Zagrebelsky, que é presidente emérito da Corte Constitucional Italiana, e ele falava sobre a diferença dos constitucionalistas e das pessoas que utilizam o Direito Constitucional, mas que não são constitucionalistas porque não têm compromisso com os valores centrais de uma Constituição, os valores de defesa da democracia, valores de defesa de direitos fundamentais. Os professores de Direito Constitucional que utilizam os argumentos dados pela ciência do Direito Constitucional para justificar ou legitimar poder estão nesta segunda categoria, segundo o professor. 

Então, veja que interessante, quem trabalha com Direito Constitucional… o professor que pega o aluno ali no começo do curso, ele vai trabalhar com um tipo de assunto que ele tem, na verdade, dois pilares. O primeiro pilar é sobre estrutura, organização, poder, poder do Estado, modo de aquisição do poder, ou seja, a estrutura é uma questão orgânica mesmo. E o segundo grande pilar é sobre direitos. Então, a Constituição sempre teve esse, não vou dizer binômio, mas digamos assim, esse campo entre poder e Direito. A Constituição é entendida como um documento para estruturar o poder com a finalidade de promover ou tutelar direitos. Então, quando você é um constitucionalista e você foca mais no pilar do Poder em si e desconsidera a questão do Direito, então você vai dizer que qualquer documento é uma Constituição, desde que ele esteja ali organizando, estruturando os poderes de um país.

Essa reflexão foi feita por Zagrebelsky numa conferência final de um curso que acontece todos os anos na Itália. O curso de alta formação em Justiça Constitucional, do qual eu também sou professor já há algum tempo, acontece todos os anos lá na Universidade de Pisa, e ele fez essa conferência final para um conjunto de procuradores, juízes, professores que vão todos os anos para esse curso. E foi engraçado, engraçado no sentido de curioso, perceber que ali você também tinha pessoas assistindo aquele conteúdo, mas que não são constitucionalistas, fazem parte do segundo grupo descrito por Zagrebelsky.

Então, depois que ele terminou a conferência, eu vi numa discussão lá de corredor, por exemplo, um deles dizendo que esse cara é de esquerda. Era um brasileiro, inclusive do Ministério Público. Então, às vezes, ao defender a Constituição, você é taxado como sendo de esquerda. Quando isso acontecia? Há 20 anos, quando eu comecei, nunca aconteceria.

Como é que isso reverbera para você dentro da sala de aula? Você dá aula de Direito Constitucional, e o Direito Constitucional na Universidade Católica é em qual semestre? Você pega alunos que ainda estão começando ou já um pouco mais avançados?

Então, eu sou professor da graduação da disciplina Direito Constitucional III, que é dada no quarto período. Os alunos estão ali no segundo ano de faculdade, indo para o terceiro. E eu também sou professor do mestrado e do doutorado. No mestrado, você tem um perfil de aluno. E no doutorado, você tem outro perfil. Se você me perguntar onde é que acontecem os maiores embates, eu diria que é na pós-graduação. 

Mesmo nessa disputa, inclusive, nessa disputa narrativa em torno da Constituição, ou especialmente nesse sentido?

Sim, sim. E eu vou dizer a razão. Na pós-graduação, as turmas são menores e o ambiente é mais aberto a um modelo de ensino que seja um modelo não apenas expositivo. E outra coisa, na pós-graduação você tem ali pessoas fazendo mestrado, doutorado, que eles têm um tipo de visão de mundo um pouco já mais formada e, já, digamos assim, amadurecida em relação a qual lado da política você está.

E, infelizmente, há casos em que você não tem no aluno de pós-graduação uma visão crítica para poder perceber as falácias do uso de argumentos constitucionais, como por exemplo, eu estou jogando dentro das quatro linhas da Constituição. Mas ele está dentro da Constituição por quê?  Acho que as coisas na vida têm um propósito. Tem uma cadeira para sentar, tem uma mesa, tem uma cama para deitar. Tem uma Constituição. Para que serve a Constituição? Qual a diferença de uma Constituição para uma lei, para um decreto? A Constituição tem uma finalidade. E a finalidade não é só estruturar poder. Os valores fundantes de uma Constituição têm a ver com o quê? Com mais promoção de igualdade, de diversidade, de inclusão. Esse foi o pacto, esse foi o compromisso feito lá em 1988 para um constitucionalismo democrático, um constitucionalismo social. 

Então, como é que você vai subverter a lógica do que é ou do que representa uma Constituição para uma sociedade para poder favorecer discursos, por exemplo, autoritários, para poder interpretar o artigo 142, por exemplo, da Constituição, para poder fazer valer um tipo de, ou jogar para o seu time, para a sua plateia, jogar para o seu lado, dos seus torcedores? Então, infelizmente, essa dificuldade que eu vejo, ela realmente é maior na pós-graduação. Ela existe na graduação, sim. Mas por que eu digo infelizmente? Porque se você pensa no aluno de pós-graduação, você pensa que ele chegou já e ele tem, ou pelo menos deveria estar mais preparado para poder perceber e não ser cooptado ou ser capturado por essas loucuras de você entender que a Constituição pode ser a sua pauta de defesa do seu político de plantão.

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