A discussão sobre quais operações podem gerar a apropriação de créditos nos tributos não cumulativos, especialmente no ICMS, é bastante antiga no Brasil. Durante muitos anos, o fisco argumentou que o crédito deveria ser concedido apenas quando o imposto incidente na operação anterior tivesse sido efetivamente recolhido.
O principal fundamento era que o Estado não poderia conceder o crédito a um determinado contribuinte sem ter certeza de que o débito da operação anterior havia sido pago.
Os contribuintes, por sua vez, sempre argumentaram que o crédito não poderia estar atrelado ao efetivo pagamento, pois os adquirentes das mercadorias não poderiam ser penalizados simplesmente porque seu fornecedor não recolheu o tributo devido.
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Afinal, os particulares não têm poder de polícia e não podem instar ou obrigar seus fornecedores a pagar tributos. Com razão, sustentaram que o crédito – em um tributo não cumulativo – é elemento essencial para a formação do valor do tributo devido. Se o fornecedor não recolheu o tributo correspondente, caberia ao fisco adotar as providências necessárias para uma cobrança eficiente, sem que o adquirente fosse afetado em seu direito ao crédito.
Sobre o tema, o Poder Judiciário consolidou o entendimento de que deveria prevalecer a tese dos contribuintes, realizando uma interpretação adequada do dispositivo constitucional que trata do regime não cumulativo do ICMS. Os créditos são gerados em vista do imposto incidente na operação anterior, e não do tributo efetivamente pago.
Esse modelo, no entanto, pode viabilizar operações fraudulentas voltadas à geração artificial de créditos. Fornecedores fictícios são criados apenas para emitir notas fiscais, gerando créditos que são, então, transferidos para os adquirentes. Quando o fisco tenta cobrar os créditos devidos, essas empresas são irregularmente dissolvidas, dificultando ou impossibilitando a cobrança do tributo correspondente.
Se esse cenário já ocorre em um sistema tributário baseado na incidência sobre mercadorias, em um modelo de tributação sobre o valor agregado – no qual a tomada de créditos abrange também serviços e direitos –, as chances de fraude aumentam significativamente.
Em países que adotam um modelo de imposto sobre o valor agregado na tributação do consumo, as fraudes são altamente preocupantes. São os chamados esquemas “carrossel”, nos quais créditos são criados e transferidos, mas os débitos nunca são pagos. Além disso, há uma dificuldade adicional no controle da veracidade das operações com serviços, uma vez que comprovar a efetiva prestação de um serviço é mais complexo do que verificar a circulação de mercadorias.
Diante desse risco, a reforma tributária buscou endereçar esse problema, além de lidar com outra distorção do sistema atual, que é o acúmulo de créditos. Levantou-se, então, a proposta de condicionar a concessão do crédito ao efetivo pagamento, num claro retorno à tese já rejeitada pelo Judiciário.
Contudo, essa ideia enfrentou forte resistência da doutrina brasileira, o que levou à adoção de uma solução intermediária: a regra geral continuaria sendo a concessão do crédito sem exigência de comprovação do pagamento, mas, em determinadas hipóteses, o crédito poderia ser condicionado ao pagamento do tributo.
Essas hipóteses incluem situações em que o adquirente pode efetuar o próprio recolhimento do imposto incidente sobre suas aquisições ou quando o recolhimento do tributo ocorre diretamente na liquidação financeira da operação (o chamado split payment).
Vale a leitura do dispositivo constitucional (art. 156-A, § 5º, II): “Lei complementar disporá sobre o regime de compensação, podendo estabelecer hipóteses em que o aproveitamento do crédito ficará condicionado à verificação do efetivo recolhimento do imposto incidente…”.
O split payment, no entanto, apresenta diversos problemas e, da forma ampla como se pretende implantá-lo no Brasil, não há precedente em nenhum outro país do mundo. As autoridades fiscais reconhecem, hoje, que os sistemas atualmente existentes são insuficientes para viabilizar o chamado split payment inteligente, que consistiria, essencialmente, na repartição (split) do encargo tributário já considerando os créditos decorrentes do regime não cumulativo que o contribuinte possui.
Isso gera um alerta aos contribuintes de que, a rigor, há um sério risco de que o split payment implantado no Brasil não seja assim tão inteligente. Com os recursos tecnológicos disponíveis atualmente, o modelo que de fato poderia ser implementado é aquele que permite a retenção bruta do débito incidente na operação, com a promessa de que eventual saldo credor será devolvido de imediato ao contribuinte.
Os contribuintes brasileiros conhecem bem essas promessas não cumpridas de devolução de créditos mantidos pelo fisco e por isso, com toda razão, devem ser manter cautelosos diante desse novo modelo.
Além disso, há uma previsão na Lei Complementar de um split payment baseado em presunções. O débito não será apurado sobre o valor da operação, mas sobre uma margem presumida. Essa sistemática nasce como uma opção para o setor varejista, mas pode se tornar obrigatória por decisão da Receita Federal e do Comitê Gestor do IBS, enquanto o split payment inteligente “não estiver em funcionamento em nível adequado”.
Outro ponto relevante é que essa presunção não será firmada por lei, mas por ato regulamentar da Receita e do mencionado Comitê Gestor. Há, assim, a confissão de um claro déficit de legalidade e, ainda, o reconhecimento de que a implementação do split payment inteligente pode falhar. Mas essa é uma discussão que deve ser aprofundada em outra ocasião. A mensagem principal deste artigo é apenas alertar para a armadilha presente na Lei Complementar 214, decorrente de uma interpretação enviesada do art. 156-A, §5º, II, da Constituição, já citado.
O dispositivo constitucional estabelece, de forma clara, uma regra (o regime de compensação independe do pagamento) e uma exceção (o crédito pode ser condicionado ao pagamento em certas hipóteses).
Entretanto, da forma como a Lei Complementar 214 foi redigida, essas hipóteses excepcionais estarão sempre presentes. Como resultado, o IBS e o CBS passam a ser tributos em que o crédito estará, invariavelmente, condicionado ao pagamento. Ou seja, deixam de ser tributos não cumulativos para se tornarem tributos cumulativos, que permitem a apropriação de crédito apenas em algumas circunstâncias.
A diferença pode parecer sutil, mas seu impacto é profundo. O que deveria ser uma exceção virou regra e, com isso, corrompe-se a lógica da não cumulatividade, gerando uma clara distorção do ideal de neutralidade que, expressamente, deveria reger o IBS e a CBS.