Governo não vê oposição de Trump a regras tributárias da OCDE aplicadas no Brasil

As investidas do presidente Donald Trump contra as regras de tributação mínima de multinacionais não devem, na opinião do governo brasileiro, surtir efeito sobre o Brasil, pelo menos em um primeiro momento. Apesar de o país ter aprovado a alíquota mínima de 15% no final de 2024, especialistas e integrantes do governo apontam que a “ira” do presidente norte-americano foi mais contundente contra ponto específico das diretrizes do acordo firmado no âmbito da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), que permite que os países signatários cobrem tributos por operações que não aconteceram sob suas jurisdições. Esta parte não foi implementada pelo Brasil.

O tema veio à tona após, por meio de memorando, o governo norte-americano declarar que as regras tributárias que preveem a tributação mínima de multinacionais “não têm força ou efeito” nos Estados Unidos, que não faz parte do acordo (assim como a China). O documento da Casa Branca dá um prazo de 60 dias para que o secretário do Tesouro investigue se há e quem são os países que estão adotando medidas tributárias extraterritoriais ou que estejam desproporcionalmente afetando empresas norte-americanas. Em caso positivo, medidas de proteção, ou retaliatórias, poderão ser tomadas.

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O uso do termo “extraterritorial” no memorando do novo governo americano faz com que especialistas e o governo brasileiro acreditem que Trump estaria contra uma parte do Pilar 2 que não foi adotada no Brasil, denominada Undertaxed Profits Rule (UTPR). Esse mecanismo permite que mesmo operações realizadas entre multinacionais localizadas em países que não adotam as regras da OCDE estejam sujeitas à alíquota mínima de 15%. Isso porque a regra permite, sob algumas condições, que outros países cobrem esse diferencial. Os EUA têm um imposto mínimo global de aproximadamente 10%, parte do pacote histórico de redução de impostos de Trump em 2017, aprovado pelos republicanos.

Fontes ouvidas pelo JOTA apontam, entretanto, que eventuais retaliações promovidas por Trump com foco nas regras da OCDE colocam em risco a própria continuidade das diretrizes que visam garantir uma tributação mínima às multinacionais. O “desembarque” de países relevantes pode fazer com que todas as regras do chamado Pilar 2 – que incluem a alíquota mínima de 15% – se tornem insustentáveis.

Uma alta fonte da área econômica ouvida pelo JOTA avaliou que o anúncio do novo presidente americano não está voltado a toda a regra do Pilar 2. A leitura é que o chamado “top-up tax”, ou seja, a possibilidade de que os governos tributem a diferença entre o que foi pago de tributo em suas jurisdições e os 15% sobre a renda, como adotado pelo Brasil por meio da Lei 15.079/24, estaria fora do radar do americano, que está mais preocupado com movimentos feitos por países da Europa e da Ásia usando outro aspecto das regras, não utilizado no Brasil. “O Pilar 2 que aprovamos no ano passado não ‘infringe’ a diretriz do Trump, já que não estamos tributando o lucro no exterior, apenas implementando o top-up tax para que a empresa/subsidiária brasileira não seja tributada no exterior”, afirma essa fonte. O interlocutor lembra que os EUA possuem uma iniciativa semelhante, por meio do Global Intangible Low-Taxed Income (GILTI).

Daniel Loria, ex-diretor da secretaria extraordinária de reforma tributária do Ministério da Fazenda e que participou da construção do projeto aprovado no ano passado, vai na mesma direção. Para ele, a principal crítica parece ser direcionada ao UTPR, mecanismo que tem o poder de tributar, por outros países, os lucros das empresas americanas gerados nos Estados Unidos, visto como uma afronta à soberania.

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“O QDMTT [top-up tax, que foi aprovado no Brasil], ao alcançar somente os lucros dentro do próprio país da subsidiária, é um exercício legítimo da soberania de cada país. Por fim, o IIR [Internal Rate of Return] alcança os lucros das subsidiárias, algo que já é feito por normas até mais fortes, como a TBU [Tributação em bases universais] brasileira, há muitos anos”, disse Loria. “O acordo global pelo Pilar 2 foi costurado por mais de uma década. Claro que o movimento dos Estados Unidos é um golpe forte. Mas não deve alterar os rumos domésticos de cada país na introdução do Pilar 2 na legislação interna”, argumentou.

O advogado Ricardo André Galendi Júnior, do escritório Lacaz Martins, Pereira Neto, Gurevich & Schoueri Advogados, explica que nem todos os países que adotaram as regras do Pilar 2 implementaram o UTPR, e que mesmo nos casos em que houve a adoção, a cobrança está suspensa por ora. Para ele, porém, o mecanismo garante que, a longo prazo, as multinacionais não mudem suas sedes de jurisdição para “fugir” das regras da OCDE. “Sem o UTPR, o campo para planejamento tributário em torno do Pilar 2 fica muito maior”, diz.

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A tributação mínima de 15% a multinacionais com rendimento acima de € 750 milhões não é o foco apenas do Brasil. Em entrevista ao JOTA no Rio de Janeiro em novembro passado, o presidente da África do Sul, Cyril Ramphosa, afirmou que esta seria uma das prioridades da presidência sul-africana do G20 também.

Apesar dessas interpretações sobre os movimentos americanos, o limite da “ira” de Trump não está claro, e não se descarta que o país adote medidas contra jurisdições que aplicam as outras diretrizes atreladas ao Pilar 2. Especialistas apontam que eventuais retaliações dos Estados Unidos, mesmo que apenas a países que adotam o UTPR, podem inviabilizar as regras de tributação mínima de multinacionais.

De acordo com Galendi Júnior, que produziu sua tese de doutorado sobre o Pilar 2, eventuais represálias dos Estados Unidos, como cobranças de taxas a produtos estrangeiros advindos de países optantes pelas regras, podem fazer com que países abandonem as diretrizes de tributação mínima, tornando difícil a continuidade de outras jurisdições. “A pergunta vai passar a ser: será que Europa, Canadá e Japão vão resistir, continuar firmes na proposta de tributação mínima global?”, questiona.

Para Belisa Ferreira Liotti, pesquisadora e doutoranda na WU – Universidade de Viena de Economia e Negócios, a retirada do UTPR não desmonta as regras de tributação mínima, mas reduz a sua eficácia. “Países que optassem por não implementar o Pilar 2, como os EUA em um cenário liderado por Trump, poderiam continuar a oferecer ambientes fiscais atrativos sem enfrentar consequências significativas. Isso poderia enfraquecer o objetivo do Pilar 2 de reduzir a competição fiscal prejudicial em escala global”, diz.

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