Litigância predatória é um revés à Justiça sustentável

A Justiça sustentável deve ser acessível a todos, ser inclusiva em todos os níveis e dispor de normativas e práticas que permitam ao sistema judicial ser independente e transparente em suas decisões, estar em conformidade com os princípios do Estado de Direito e dos Direitos Humanos, adotando padrões inovadores para que se tornem ainda mais eficazes e responsáveis na proteção dos direitos e garantias de todo o jurisdicionado.

Quando o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e o Ministério Público aderiram ao pacto pela implementação dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) da Agenda 2030 da ONU, em 2019, comprometendo-se a firmar cooperação técnica e operacional para atingir as metas propostas, promoveu estreita conexão  com a Justiça Sustentável, urdida nos ODS’s, especialmente no ODS-16,  consolidado em três pilares: “Paz, Justiça e Instituições Fortes”, que passam pela segurança jurídica, fortalecimento do sistema judiciário e pela pacificação que o Judiciário pode prover contra todos os tipos de violência que a população está exposta, especialmente quando pertencente a grupos vulneráveis. Os ODS’s estão umbilicalmente ligados às práticas ESG (boas práticas ambientais, sociais e de governança) dentro de um plano compartilhado para construir um futuro mais sustentável para o planeta.

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A sustentabilidade na Justiça está, portanto, ligada à estabilidade social e à percepção da população de que o Judiciário é uma instituição confiável. Temos constatado preocupações de diferentes stakeholders (ministros do Judiciário, magistrados, advogados, promotores, procuradores, parlamentares, empresários, dentre outros), em entender melhor a dimensão que vem tomando a litigância predatória e como combater essa prática de forma concreta para retomar o devido equilíbrio que deve ter a balança judicial. Processos fraudulentos prejudicam o acesso da população à Justiça porque incrementam a morosidade na tramitação processual. Quanto mais ações ingressam, mais tempo será necessário para solucionar um litígio. Estudo do Tribunal de Justiça do Mato Grosso do Sul, divulgado pelo Superior Tribunal de Justiça, apontou que as principais vítimas da litigância predatória são pessoas carentes. Em 90% do universo pesquisado, a parte recebia até um salário-mínimo.

A litigância predatória visa a atingir os recursos da parte contrária, ajuizando centenas de ações, com documentos fraudulentos, muitas vezes desconhecidos da parte, conflitos falsos, petições iniciais idênticas, procurações genéricas, das quais muitos autores desconhecem o conteúdo, manipulação de informações no corpo do processo e testemunhas sem credibilidade. No segmento de transporte aéreo há uma estimativa que chegaria a 20% das ações em tramitação na Justiça. Um caso recente foi registrado no 11º Juizado Especial Cível e das Relações de Consumo de Pernambuco, que reconheceu como litigância predatória uma ação por cancelamento de voo, similar a outras 13 demandas patrocinadas pelo mesmo advogado. A autora fatiou sua pretensão pelos fatos ocorridos no voo de ida e ingressou com demandas quanto ao voo de volta. Na sentença, o magistrado ressaltou: “A autora abusa de seu direito de demandar e nitidamente se vale da isenção de custas da Lei 9.099/95 para busca de ganhos ilícitos”, extinguindo a ação. Na verdade, o  prejuízo para a pessoa física não é apenas a morosidade, pois pode aumentar o custo ou inviabilizar um serviço, como fizeram as aéreas ao suspender rotas de voos extremamente judicializadas. 

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Há alguns conceitos-chave na jornada da sustentabilidade da Justiça brasileira. A judicialização é um deles. Vem sendo considerada uma tendência mundial em decorrência do fato de a Justiça nos países democráticos funcionar como uma caixa de ressonância das demandas dos cidadãos; assim como novas constituições incrementam o acesso a uma nova ordem jurídica e à tutela de novos direitos e garantias. O crescimento de novas ações no Brasil veio a partir da promulgação da Constituição Federal de 1988. No mesmo bojo, contudo, veio também a litigância predatória de massa, de forma mais incisiva, na última década. 

 O Judiciário vem atuando fortemente contra a judicialização predatória, ressalvando que distorce os institutos processuais e o propósito da Justiça. O Conselho Nacional de Justiça emitiu em outubro deste ano a Recomendação 159¹, que reforça alinhamento com a Agenda 2030 da ONU, e classifica este tipo de prática lesiva, como sendo “condutas ou demandas sem lastro, temerárias, artificiais, procrastinatórias, frívolas, fraudulentas, desnecessariamente fracionadas, configuradoras de assédio processual ou violadoras do dever de mitigação de prejuízos, entre outras”. Esta normatização foi antecedida pela Recomendação 127, publicada em 2022, de cunho mais preventivo. A Recomendação deste ano vai além, porque exemplifica como identificar, prevenir e combater esse tipo de conduta lesiva. O “anexo A” reúne uma série de 20 condutas que podem ser caracterizadas como potencialmente abusivas; no “anexo B”, estabelece medidas necessárias que devem ser tomadas e no “anexo C”, define a adoção de práticas de cooperação entre Tribunais, Ministério Público, OAB, Defensoria Públicos e instituições afins.

Inicialmente, a litigância predatória era considerada mais comum em demandas consumeristas, mas vem se alastrando na Justiça Trabalhista, onde estamos registrando a expansão de ações contra grandes empresas de telecomunicações, que terceirizam e quarteirizam parte de seus serviços. A litigância fraudulenta cria falsamente uma relação negocial entre grandes corporações e pequenas empresas (terceirizadas), cujos funcionários teriam supostamente prestado serviço. Na Justiça, alegam responsabilidade subsidiária pelo não pagamento de obrigações trabalhistas (Súmula 331 do Tribunal Superior Trabalhista).Nesse esquema fraudulento, as petições guardam similaridades e são  patrocinadas pelos mesmos advogados.

Em sentido contrário ao enfrentamento da litigância predatória, tramita no Congresso Nacional – já aprovado na Comissão de Constituição de Justiça – o PL 90/21, que assegura ao réu o direito de ajuizamento de ações em massa com a mesma causa de pedir, seja pelo mesmo autor ou diversos autores.  Na justificativa, o parlamentar argumenta que “Todos têm direito de ação e os juízes têm o dever de dizer o direito. Ação é poder que tem cada pessoa de exigir de um juiz lhe resolva uma demanda. O direito de ação está previsto na Constituição e nenhuma lei pode excluir da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”.

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Há quem veja no benefício da gratuidade das custas judiciais no Brasil – que atinge 50% das ações, segundo o CNJ – um incentivo às condutas de litigância predatória, porque em determinadas instâncias, como nos Juizados Especiais, as custas não são suportadas pelos litigantes, que correm poucos riscos e podem se dar ao luxo de propor teses irresponsáveis e sem vínculos com a realidade dos fatos, sobrecarregando e comprometendo a sustentabilidade da Justiça. Vale lembrar que a Justiça gratuita tem um custo que é partilhado por todos os brasileiros. O custo da Justiça brasileira já atinge 1,2% do Produto Interno Bruto (PIB), ou seja, R$ 132,8 bilhões, de acordo com o próprio CNJ³. Em sentido oposto, fica a pergunta:  como abrir mão desse benefício da gratuidade da Justiça em um país com tanta desigualdade social, sendo esse direito previsto na Constituição Federal. Certamente, assegurando que seja estendido apenas aos que são comprovadamente hipossuficientes.

Outro exemplo de litigância predatória vem da 1ª Vara Cível de Araripina e Vara de Ipubi,  duas pequenas comarcas de Pernambuco. Foram extintas respectivamente 1.917  e 1.571 ações judiciais. Ao todo,  somam 3.488  litígios de um único advogado, caso registrado por uma magistrada do Tribunal  de Justiça do Distrito Federal e Territórios (TJDFT) em artigo publicado na mídia.4

A série de práticas e protocolos instituídos pelo Judiciário em suas Recomendações, devem contribuir para combater a litigância predatória e seus resultados nocivos, violando direitos constitucionais, como da duração razoável do processo, ampliação do número de demandas judiciais e fomentando a morosidade judicial e impedindo respostas mais céleres para os conflitos que o jurisdicionado traz para os tribunais. Nesse confronto, o uso da tecnologia é fundamental porque pode auxiliar os tribunais e magistrados a mapear esse tipo de prática, permitindo criar listas de litigantes e de temas por tribunal.  Essa visibilidade servirá para alertar os magistrados, além de preservar a tutela de direito para quem realmente precisa.

Nesta perspectiva, um dos pontos de apoio do Conselho Nacional de Justiça nesta luta contra a litigância predatória será o Painel de Informações sobre Litigância Predatória, concentrando todos dados e decisões sobre o tema, fruto da  Base Nacional de Dados do Poder Judiciário (DataJud),  que fez diagnósticos,  detectou similaridades,   reuniu acervos de casos e buscou  caminhos para um cenário capaz de munir o país de instrumentos para vencer  a litigância predatória. 

A prática da litigância predatória tem tido um efeito danoso sobre o sistema judiciário  e a sociedade, porque sobrecarrega a estrutura da Justiça com demandas fraudulentas, que exigem tempo e acuidade dos magistrados para identificar e coibir esse tipo de demanda; além de adiar a resolução de conflitos para o jurisdicionado, deixando a percepção de uma suposta ineficiência do Judiciário em  reparar  um direito lesado.

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