Em janeiro de 2025, uma decisão monocrática no Supremo Tribunal Federal (STF) determinou a retirada de circulação do livro de ficção Diários da Cadeia, assinado sob o pseudônimo Eduardo Cunha. Em fevereiro, o cartunista Nando Motta foi condenado por uma charge satírica sobre o empresário Luciano Hang. No mês seguinte, foi apresentado na Câmara dos Deputados um projeto de lei que busca restringir a contratação de artistas cujas obras promovam, segundo uma noção subjetiva, “apologia ao crime organizada e ao uso de drogas”.
Em maio, o funkeiro MC Poze do Rodo foi preso, acusado de promover “narcocultura” com suas músicas. Quatro dias depois, o humorista Léo Lins foi condenado a oito anos e três meses de prisão, além de uma indenização milionária, por piadas consideradas criminosas.
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São episódios distintos, mas que juntos revelam um padrão: a crescente intolerância institucional, especialmente do Poder Judiciário, às formas de expressão artística, sejam elas ficcionais, satíricas, musicais ou humorísticas.
O que essas decisões têm em comum é a dificuldade — ou recusa — de reconhecer o valor da arte como espaço de imaginação, crítica e provocação. Obras de ficção e humor estão sendo tratadas como se fossem documentos oficiais, compromissos literais ou confissões de crime.
A arte, por definição, não é um espelho da realidade, mas uma lente que a deforma para, talvez, revelá-la. Ao tentar corrigir essas lentes com repressão judicial, perde-se a própria essência do exercício artístico. Escolhe-se não a reflexão sobre a realidade, mas sim a censura.
Diante do desconforto provocado por certas expressões criativas, o Judiciário, e o debate público, parece ceder à tentação de silenciar o diferente. A censura, por mais sofisticada que se apresente — com aparência de legalidade, linguagem técnica e fundamentação moral — continua sendo censura. E mais grave: promovida pelo próprio Estado que deveria zelar pela liberdade de expressão.
A noção de arte degenerada, termo que tem reaparecido de forma mais ou menos implícita nos discursos contemporâneos, ajuda a compreender essa inclinação repressiva. A expressão foi forjada pelo regime nazista para qualificar obras que desafiavam os padrões estéticos oficiais, classificadas como decadentes ou ameaçadoras à ordem e aos valores da nação.
Sob esse rótulo foram perseguidos artistas judeus, comunistas e independentes. A arte “aceitável” deveria ser heróica, disciplinada, nacionalista. O diferente, o ambíguo, o incômodo deveria ser banido.
Hoje, embora sob outra roupagem, persiste entre nós o desejo de calar o que desconcerta. Como aponta Gustavo Binenbojm em Liberdade Igual, “a face estética do ambiente polarizado que tomou conta do Brasil encurrala a liberdade de expressão artística entre dois vetores contrapostos, porém aliados, na cruzada de reprimir o que consideram manifestações ‘degeneradas’”.
É essa armadilha que ameaça capturar uma parcela do Judiciário e, pior, da sociedade: a ideia de que caberia aos tribunais guardar os “bons costumes”, como se detivessem o monopólio da virtude, do bom gosto ou da verdade. Como se pudessem separar a arte “elevada” da “pervertida”.
A liberdade artística, como qualquer direito, não é absoluta. Mas a interferência estatal só se justifica em casos absolutamente excepcionais. E mesmo nesses casos, a sanção deve ser proporcional, preferencialmente de natureza civil e módica.
A criminalização da expressão artística fere a Constituição e contraria a jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos, que considera incompatíveis com a Convenção Americana as normas que impõem sanções penais ao uso da palavra — e, por analogia, à arte.
Foi isso que a própria Suprema Corte brasileira reconheceu no julgamento da ADPF 130, ao afirmar que a liberdade de expressão é a regra geral em sociedades democráticas, e que indenizações desproporcionais por “excessos” de linguagem podem ter efeito inibitório a todo tipo de expressão e, portanto, inconstitucional.
Não se trata de defender que artistas estejam acima da lei. Trata-se de reconhecer que a função social da arte — muitas vezes absurda, provocativa, desconfortável — pressupõe liberdade. Como já disse o STF, o Estado não pode atuar como “crítico de arte oficial da República”.
A arte é, por definição, o lugar de imaginar o inconcebível e dizer o indizível. Ou, nas palavras de Gustavo Binenbojm, “dos artistas, numa sociedade livre, não se exigem explicações sobre sua criação; todas as razões são possíveis e nenhuma delas é necessária”.