CVM 160 e o cerco à engenharia fiscal invisível

A entrada em vigor da Resolução CVM 160, em 2022, inaugurou uma nova fase para o mercado de capitais brasileiro. Se, no plano formal, trata-se da  consolidação das antigas Instruções CVM 400 e 476, no plano material a  norma representa um avanço significativo no papel regulador da CVM em direção a um regime de transparência informacional robusta, com impactos que  se estendem ao campo tributário. 

A exigência de divulgação das demonstrações financeiras auditadas de devedores ou coobrigados que concentrem mais de 20% dos direitos creditórios da operação é mais do que uma salvaguarda ao investidor. Ela é, hoje, um dos principais instrumentos para reconstrução da substância econômica das ofertas públicas — algo que dialoga diretamente com o padrão internacional proposto pela Ação 5 do Projeto BEPS da OCDE, que visa combater regimes fiscais  prejudiciais e exige o teste de atividade substancial (substantial activity requirement) como pré-condição para benefícios fiscais.

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O mercado como ferramenta de enforcement fiscal 

A Resolução CVM 160, ao ampliar a visibilidade sobre os vínculos societários,  garantias efetivas e estrutura dos fluxos financeiros entre partes relacionadas,  gera um efeito colateral relevante: permite à Receita Federal, mesmo  indiretamente, avaliar se uma determinada operação serve apenas à engenharia  societária, ou se há efetiva geração de valor e risco empresarial assumido. 

Tome-se como exemplo uma emissão de debêntures simples lastreada em  recebíveis originados em contratos com partes relacionadas. A emissão é feita  por uma sociedade de propósito específico (SPE), mas as garantias são  fornecidas por uma companhia operacional do mesmo grupo econômico, que  também figura como cedente dos créditos.

A depender do grau de interdependência, a operação pode ser considerada um simples instrumento de alocação de receitas — e não uma captação com risco de mercado efetivo. O caso torna-se especialmente relevante com a chegada das novas regras para  emissão de debêntures trazidas pela Lei 14.711/2023 e pela Resolução CVM 226/2025, dando continuidade às reformas que visam maior transparência no  mercado. 

A obrigatoriedade de divulgação das demonstrações da garantidora, prevista no  artigo 10 da resolução, permite aos investidores e à própria administração  tributária aferirem se há substância suficiente no arranjo e, se constatada uma  desconexão entre forma e conteúdo, a Receita pode aplicar o artigo 116, parágrafo único, do CTN. Na prática, vemos a aplicação dos princípios delineados na Ação  12 do BEPS, que trata da obrigatoriedade de divulgação de mecanismos de  planejamento agressivo (mandatory disclosure rules).

Substância econômica e a adesão brasileira ao BEPS 2.0 

Com o avanço do Pilar 2 do BEPS 2.0, que estabelece uma alíquota mínima efetiva de 15% sobre os lucros de grandes grupos multinacionais, o Brasil se vê diante do desafio de alinhar sua política tributária a um novo paradigma: renda deve ser tributada onde há atividade econômica real e geração de valor, não apenas onde há domicílio formal da entidade jurídica.

Esse critério, defendido pela OCDE no documento Tax Challenges Arising from the Digitalisation of the Economy, depende diretamente da capacidade de identificar, com precisão, a substância dos entes econômicos e suas funções significativas. 

Nesse cenário, a CVM — ainda que não detenha competência tributária — passa  a exercer papel estratégico. Ao impor o detalhamento das estruturas de garantias, cessões de crédito, contratos intragrupo e demonstrações financeiras auditadas, a autarquia fornece os insumos necessários para que a Receita e as autoridades internacionais possam aplicar o critério da Effective Tax Rate com base em dados reais, e não meramente formais. 

Além disso, o cruzamento de dados entre escrituração contábil digital  (SPED/ECF), informações de beneficiário final (IN RFB 1.634/2016) e os  documentos da oferta pública (prospecto, contratos de garantia, laudos de  avaliação) fortalece o uso do mercado como instrumento complementar de  fiscalização.

Trata-se de uma integração funcional entre regulação prudencial e enforcement fiscal, cada vez mais recomendada em publicações recentes da OCDE, como o relatório Harmful Tax Practices – 2023 Peer Review Reports on  the Exchange of Information on Tax Rulings.

Reequilibrando incentivos: entre integridade e atratividade 

Essa ampliação do dever de transparência, no entanto, não está isenta de  tensões. Uma das preocupações legítimas levantadas por participantes do  mercado diz respeito à potencial exposição de informações sensíveis — especialmente quando as demonstrações financeiras auditadas de coobrigados  ou empresas estratégicas são tornadas públicas em razão de sua vinculação a ofertas.

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Ainda que o objetivo da norma seja garantir a adequada precificação do risco e prevenir estruturas artificiais, há o risco de se comprometer segredos comerciais, estratégias de financiamento e relações negociais privadas. A tensão entre transparência e sigilo exige atenção redobrada do regulador, que deve calibrar o grau de publicidade com base no princípio da proporcionalidade,  preservando a integridade do mercado sem desestimular a captação via  emissões públicas. 

Não se trata, todavia, de transformar a CVM em um braço da Receita Federal. O  ponto é outro: no mundo pós-BEPS, a transparência deixou de ser apenas uma  exigência de mercado e passou a ser um ativo fiscal. Jurisdições que não  conseguem demonstrar substância correm o risco de ter seus regimes  desconsiderados ou submetidos a mecanismos de ajuste da tributação mínima  global. 

A Resolução CVM 160, ao exigir mais informação, redistribui os incentivos.  Emissores passam a ter motivos concretos para evitar estruturas artificiais.  Investidores se protegem contra riscos ocultos. E o Estado obtém meios mais  eficientes de fiscalização, sem depender exclusivamente de auditorias ou  fiscalizações externas. É um passo importante para reposicionar o Brasil como  ambiente de negócios sólido, inserido nas cadeias globais de valor com  segurança jurídica e compromisso fiscal.

Autor:

Rafael Clark de Aquino Reiter – Estudante de Direito da USP

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