Inteligência artificial
Não adianta ficar nem entre os entusiasmados, nem entre os pessimistas[1]. Basta encarar a realidade de que a inteligência artificial se encontra em uso e que parcela do Judiciário brasileiro já a enxerga como instrumento apto a auxiliar nas tarefas dos magistrados.
A IA influi sobre nossa capacidade de pensar de forma racional e de agir. Assim, cabe a pergunta: em específico, o que a IA pode contribuir para o profissional do direito da área penal?
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Antes de responder, questiono-me as razões pelas quais nossos conhecimentos dogmáticos tornaram-se distantes das aplicações concretas da lei penal. Afinal, cumpre indagar o que teria levado, e.g., o finalismo mostrar-se tão afastado da práxis judicial, não obstante a simplicidade que aquela corrente trata a culpabilidade.
Vamos às evidências empíricas: os processos judiciais se mostram mais acurados em questões formais (de processo penal) do que em debates sobre direito penal. E vejamos nos grandes casos o quanto as soluções passam por problemas de indevido processo penal, ao invés de se enfrentarem o fato, a tipicidade (da parte geral, inclusive), a ilicitude e a culpabilidade.
Aqui arrisco a previsão: as longas discussões sobre nulidades processuais vão se reduzir com a IA, porque todos os profissionais envolvidos na persecução penal terão checklists de procedimentos e regras. Pensemos na busca e na apreensão: a IA verificará se presentes todos os elementos de motivação judicial (caso, ela mesma não faça a própria decisão judicial), bem assim todas as características essenciais ao mandado judicial e ao termo de apreensão.
Logo, precisaremos voltar ao direito material. E, desse modo, se faz fundamental pôr de lado alguns artificialismos intelectuais e ter olhos mais abertos a problemas concretos. Se me permitem, vale usar a ideia de Louis Althusser no sentido de a teoria emergir a prática em potência – perspectiva do filósofo marxista quanto à possível transformação da realidade[2].
Fato
Se verdadeiro o vaticínio acima, a IA vai nos levar a observar e conhecer o fato com mais cuidado. Vamos enxergar o acontecimento do mundo fenomênico em detalhe e a IA nos ajudará com padrões (patterns) de perquirição quanto à situação fática sob exame.
Poderá, assim, reproduzir padrão de perquirição no processo penal, como o questionário clássico de João Mendes Jr.: o que, quem, como, quando, onde, e por quê?[3] E esses padrões poderão ser colocados sob a perspectiva de polícia judiciária, acusação publica, defesa e magistratura. (Cada qual terá a sua IA?)
É inegável que a IA ajuda as pessoas atuantes na persecução penal a trabalharem melhor na pesquisa sobre o fato, examinando cada uma dessas perguntas para compreender a materialidade delitiva, bem como a autoria e a participação criminal.
O que mais eleva as qualidades da IA é contribuir para a compreensão da ação humana no plano causal. Pensem nos modelos de análise do nexo de causalidade (físico, filosófico, jurídico, dentre outros), todos combinados à nossa disposição. Sonhemos com a reconstrução do fato para melhor entender, por exemplo, como ocorreram os acidentes aéreos, as colisões automobilísticas e as tragédias ambientais.
De qualquer modo, será relevante a intersecção entre a observação humana e a IA como instrumento de criação de questões e de modelos causais explicativos.
Por que não prescindir do humano?
Há imperfeições na interpretação da IA e riscos. O que me preocupa, a priori, é a característica de autocompletar as questões e os textos[4]. Tal função pode levar a enganos de descrição e de exame do fato. Todos os dias padecemos com os escritos automáticos e corretores na digitação do WhatsApp.
Esse automatismo tende à inclusão indevida de elementos inexistentes não constados na realidade. Pulam-se dados objetivos e vínculos causais reais para a conclusão a contar da lógica simples do algoritmo, distante do quadro fático. Gostem, ou não, os pós-modernos, o processo penal depende da busca da verdade concreta – ainda que verdade aproximativa na linha de pensamento de Gaston Bachelard[5].
Além disso, preocupa a descrição da observação não refletir o melhor vocabulário na explicação do que veio a ser constatado. Faço menção aos problemas de semântica, em particular, diante da riqueza de vocabulário da língua portuguesa. Não se há de esquecer do alerta de Ludwig Wittgenstein: “Os limites de minha linguagem significam os limites do meu mundo”[6].
No entanto, nada disso nos impede de aproveitar a IA para a essencial etapa de observação mediante perguntas precisas nas perícias (exame do corpo do delito, vistorias de local e avaliação de danos, v.g.) e na coleta da prova oral (testemunhas, experts, investigado ou acusado, v.g.).
Em suma, minha proposição é o uso da IA para a busca da verdade, por meio do questionamento crítico e do diálogo – método socrático, mesmo – entre o usuário e o sistema de inteligência artificial. Encontra-se a nosso dispor a comunicação com a IA para conhecer elementos e circunstâncias do fato.
Podemos conjecturar até mesmo que a I.A. venha reproduzir o fato, ofertando a explicação de cada etapa do processo causal, para, ao fim, indicar a causa principal do resultado (conditio sine qua non – art. 13, do CP).
Mas isso se apresenta suficiente, no plano jurídico?
Tipicidade
Por certo, vamos trabalhar com questões e modelos-padrão para o juízo da tipicidade objetiva e da tipicidade formal. Quer dizer, nada impede se criarem padrões de inteligência artificial que nos façam reconhecer o fato no âmbito causal-objetivo, bem assim afirmar a tipicidade formal.
Mas faltarão dois pontos essenciais para a configuração da infração penal.
Primeiro, a IA não pode substituir o humano no juízo da valoração (ou desvaloração) da conduta típica. A inteligência artificial não faz atividade axiológica. A combinação de valores (constitucional, do tipo penal, histórico, social e na perspectiva do agente) emerge aquilatável por intérprete humano. Lembremos, neste passo, da crítica correta ao falacioso argumento do homem médio no direito penal.
A IA não nos substitui nesse processo dinâmico do juízo da tipicidade material. Embora possa afirmar que a conduta típica é dotada de sentido e qual o sentido da conduta descrita no tipo normativo, a IA não consegue sopesar valores quanto ao comportamento humano concreto.
Segundo, a IA não vai realizar a tipicidade no âmbito subjetivo. Nem mesmo a criação de um padrão de filtro para a IA alicerçada na culpabilidade normativa me parece suficiente para reconhecer em concreto o dolo e a culpa (ainda que indicados no tipo).
A IA possui aptidão de nos ajudar na coleta e organização de indícios que provam o tipo subjetivo, o que é necessário para compreensão do comportamento típico. Mas, a IA se exibe inapta a compreender aquele indivíduo (único) naquele quadro fático específico e entender o agir humano no todo (objetivo/subjetivo). Em palavras simples, usando da expressão de Friedrich Nietzche, o “humano demasiado humano”[7] não pode ser valorado pela IA.
Conclusão
Ora, a contar de tais perspectivas, posso concluir: a IA mostra-se poderoso instrumento de conhecimento, com utilidade significativa para o direito e o processo penal. Tem o papel fundamental de auxiliar na elucidação do fato. Porém, não pode suprir o humano na compreensão do humano no agir e no existir.
Cabe alertar de que já vivemos momentos da supremacia dos conhecimentos científicos (e biológicos) em ciências humanas no século 19. No direito penal, tal período levou nos à Escola Positiva, com mais resultados maléficos a nosso campo de conhecimento do que benefícios.
Não podemos errar outra vez. Conhecemos a burocultura do Judiciário. A inteligência artificial pode se apresentar a panaceia para resolver o número excessivo de processos judiciais na justiça penal. Nós teremos juntos de defender que o instrumental da IA se exibe importante, mas que deixem intocado o papel do ser humano de compreensão do humano e da humanidade.
Há um grau de razão e sensibilidade (na feliz expressão de Jane Austen[8]) no processo de interpretação quanto ao comportamento, ou à obra humana (literária, artística, musical, dentre outras) que só nós podemos assimilar.
Essa dualidade do racional e da emoção que, em conjunto nos tocam e nos fazem entender o outro, se percebe por exemplo singelo. Vejam a beleza matemática e temporal da partitura transformar-se em sensação. Ouçamos, para testar a hipótese, a música de Johann Sebastian Bach Concerto for 2 Violins in D Minor, BWV 1043: II. Largo, ma non tanto. Cada qual – cada indivíduo (não divisível, portanto) – há de introspectar o que quero dizer.
[1] Este texto resume minha apresentação no encontro Inteligência artificial, direito e processo penal, em 31 de maio último, no Instituto de Estudos Culturalistas (I.E.C.), presidido pela Prof. Judith Martins Costa e pelo Prof. Miguel Reale Jr.
[2] Althusser, Louis. Iniciação à filosofia para não filósofos. Trad. R. C. Abilio. São Paulo: WMF/Martins Fontes, 2019, p. 109 e segs..
[3] A investigação do fato deve responder a sete perguntas: quem, que meios, o que, por que, como, onde e quando (Pitombo, Sérgio Marcos de Moraes. Aulas de Processo Penal. São Paulo: impressão particular, 2003, p. 8);
[4] Nesse sentido, ver: Hoque, Faisal. Transcend – unlocking humanity in the age of AI. Nova Iorque/Nashville, Post Hill Press, 2025, p. 4 e segs..
[5] Bachelard, Gaston. Ensaio sobre o conhecimento aproximado. Trad. E. S. Abreu. Rio de Janeiro: Contraponto, 2004, p. 273 e segs..
[6] Wittgenstein, Ludwig. Tratado lógico-filosófico – investigações filosóficas. 2ª ed. Lisboa: Fund. C. Gulbenkian, 1995, p. 114, 5.6..
[7] Menção ao título da obra: Nietzsche, Friedrich. Humano demasiado humano. Trad. P. C. de Souza. São Paulo: Cia de Bolso, 2005.
[8] Título do clássico da literatura inglesa: Austen, Jane. Razão e sensibilidade. Trad. A. B. de Souza. São Paulo: Penguin-Companhia, 2012.