No último dia 1º de abril, a 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, ao julgar o Recurso Especial 2.168.185/PI, proferiu acórdão no sentido de que “o crédito devido ao representante comercial, seja pessoa física ou jurídica, se equipara aos créditos derivados da legislação do trabalho na recuperação judicial ou na falência”, tendo como fundamento principal o artigo 44[1] da Lei 4.886/1965.
A recuperação judicial é uma ferramenta que tem por objetivo viabilizar a superação da situação de crise econômico-financeira do devedor, de modo a permitir a manutenção da fonte produtora, do emprego dos trabalhadores e dos interesses dos credores, de modo que, ao fim e ao cabo, seja alcançado o soerguimento e a preservação da empresa e, também, de sua função social. [2] Ademais, é através de uma lei eficiente que o sistema apresenta recursos que oportunizam a reestruturação de empresas que são, de fato, economicamente viáveis. [3]
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Um dos elementos importantes nas demandas recuperacionais é a correta classificação dos créditos, que é capaz de influenciar diretamente na forma e na ordem de pagamento e, ainda, modifica os quóruns de aprovação do plano de recuperação, os quais estão previstos nos artigos 38[4] e 45 § 2º[5] da LREF.
Entre os créditos frequentemente discutidos, seja por meio de habilitação, seja por meio de impugnação de crédito, tem-se aqueles que são de titularidade dos representantes comerciais, cuja natureza jurídica e classificação gerava certa controvérsia na jurisprudência, eis que, por vezes, era equiparado como quirografário[6] e, em outras ocasiões, como trabalhista[7].
Via de regra, ao classificar tais créditos como trabalhistas, os tribunais embasam suas decisões no artigo 44 da Lei 4.886/1965, com redação dada pela Lei 14.195, de 2021. Esse dispositivo legal consolidou o entendimento de que os créditos dos representantes comerciais possuem natureza trabalhista para fins falimentares e recuperacionais.
Contudo, embora o entendimento fosse de que os créditos dos representantes comerciais (pessoas físicas) deveriam ser classificados como trabalhistas, permanecia a dúvida sobre a aplicação dessa equiparação aos representantes comerciais pessoas jurídicas, cuja natureza jurídica e autonomia patrimonial tradicionalmente geravam a dúvida sobre a equiparação.
E foi justamente esse o objeto do recente julgamento do Recurso Especial 2.168.185/PI. A controvérsia girou em torno da classificação dos créditos de uma sociedade empresária que atuava como representante comercial, e se os seus respectivos créditos poderiam ser equiparados àqueles derivados da legislação do trabalho na recuperação judicial do representado.
O julgamento gerou significativa divergência entre os ministros. A relatora, ministra Nancy Andrighi, manifestou voto vencido, defendendo a impossibilidade de extensão da equiparação aos representantes comerciais pessoas jurídicas. Por sua vez, o ministro Ricardo Villas Bôas Cueva apresentou o voto vencedor, acolhendo a interpretação ampliativa do artigo 44, reconhecendo que, mesmo no caso dos representantes comerciais pessoas jurídicas, os créditos podem ser classificados como trabalhistas, pois a lei não expressamente fazia tal distinção.
Por analogia, aplicou-se também o entendimento da natureza alimentar dos honorários advocatícios, ainda que devidos à pessoa jurídica, conforme a disposição do art. 85, § 14: “Os honorários constituem direito do advogado e têm natureza alimentar, com os mesmos privilégios dos créditos oriundos da legislação do trabalho, sendo vedada a compensação em caso de sucumbência parcial”. Com isso, injustificado seria aplicar tal entendimento ao escritório de advocacia e, em sentido contrário, considerar créditos decorrentes de representação comercial como quirografários.
Dessa forma, pode-se dizer que o entendimento do STJ representa um avanço significativo na consolidação da jurisprudência sobre o tema e terá reflexos importantes na interpretação do artigo 44 da Lei 4.886/1965, bem como no tratamento dos créditos em processos de recuperação judicial.
Ao julgar o REsp 2.168.185/PI e reforçar a literalidade do artigo 44 da Lei 4.886/1965 (redação dada pela Lei 14.195/2021), a 3ª Turma do STJ acaba afastando critérios formais que restringiam a equiparação apenas às pessoas físicas. O ministro Villas Bôas Cueva, no voto vencedor, enfatiza que “o legislador tratou das importâncias devidas ao representante comercial, não fazendo distinção entre pessoas físicas e jurídicas” — de modo que caberia ao intérprete preservar a plena abrangência do dispositivo.
A repercussão prática imediata dessa interpretação amplia o conjunto de créditos classificados como trabalhistas na recuperação judicial, definindo o pagamento dos representantes comerciais (pessoas físicas e jurídicas) como prioridade. Em termos quantitativos, isso pode significar que valores expressivos de comissões e, sobretudo, a indenização correspondente a 1/12 da retribuição total (art. 27, j, da Lei 4.886/65[8]), sejam pagos em regime preferencial — geralmente com prazos e deságios bem inferiores aos aplicados às demais classes —, o que pode representar considerável elevação do passivo prioritário das empresas recuperandas que tenham dívidas com representantes comerciais (pessoas jurídicas).
Com isso, planos de recuperação judicial terão de prever, desde o seu bojo, a satisfação desse montante de forma preferencial. Para os representantes comerciais pessoas jurídicas, o entendimento do STJ traz maior segurança, previsibilidade e, sobretudo, coerência. A equiparação garante-lhes tratamento financeiro mais favorável — em razão da proteção conferida à classe trabalhista pela Lei 11.101/2005 e consolidada pela jurisprudência — e tende a reduzir a volatilidade das decisões dos tribunais de origem.
Mesmo sob o prisma doutrinário, a decisão alinha-se à lógica de que a proteção conferida pelo art. 44 da Lei 4.886/65 destina-se prioritariamente a créditos que atendem a necessidades básicas. Assim, o julgador concluiu que segregar os créditos de representantes comerciais em pessoa física e pessoa jurídica — sob o pretexto de autonomia societária — contrariaria o texto legal e geraria distinções injustificadas.
[1] Art. 44. No caso de falência ou de recuperação judicial do representado, as importâncias por ele devidas ao representante comercial, relacionadas com a representação, inclusive comissões vencidas e vincendas, indenização e aviso prévio, e qualquer outra verba devida ao representante oriunda da relação estabelecida com base nesta Lei, serão consideradas créditos da mesma natureza dos créditos trabalhistas para fins de inclusão no pedido de falência ou plano de recuperação judicial.
[2] Art. 47. A recuperação judicial tem por objetivo viabilizar a superação da situação de crise econômico-financeira do devedor, a fim de permitir a manutenção da fonte produtora, do emprego dos trabalhadores e dos interesses dos credores, promovendo, assim, a preservação da empresa, sua função social e o estímulo à atividade econômica.
[3] Warren. Bankruptcy policy…; Warren, Elizabeth. Bankruptcy policymaking in an imperfect world. Michigan Law Review, v. 92, p. 336-387, 1993; Lisboa, Marcos de Barros; Damaso, Otávio Ribeiro; Santos, Bruno Carazza dos; Costa, Ana Carla Abrão. A racionalidade econômica da Nova Lei de Falências e de Recuperação de Empresas. In: Paiva, Luiz Fernando Valente de (coord.). Direito falimentar e a nova Lei de Falência e Recuperação de Empresas. São Paulo: Quartier Latin, 2005, p. 31-32
[4] Art. 38. O voto do credor será proporcional ao valor de seu crédito, ressalvado, nas deliberações sobre o plano de recuperação judicial, o disposto no § 2º do art. 45 desta Lei. […]
[5] Art. 45. Nas deliberações sobre o plano de recuperação judicial, todas as classes de credores referidas no art. 41 desta Lei deverão aprovar a proposta. […] § 2º Nas classes previstas nos incisos I e IV do art. 41 desta Lei, a proposta deverá ser aprovada pela maioria simples dos credores presentes, independentemente do valor de seu crédito. […]
[6] (TJ-SP – AI: 20711403620188260000 SP 2071140-36.2018.8 .26.0000, Relator.: Maurício Pessoa, Data de Julgamento: 24/08/2018, 2ª Câmara Reservada de Direito Empresarial, Data de Publicação: 24/08/2018).
[7] (TJ-SP – Agravo de Instrumento: 20628849420248260000 São Paulo, Relator.: Jorge Tosta, Data de Julgamento: 15/07/2024, 2ª Câmara Reservada de Direito Empresarial, Data de Publicação: 15/07/2024)
[8] Art. 27. Do contrato de representação comercial, além dos elementos comuns e outros a juízo dos interessados, constarão obrigatoriamente: […] j) indenização devida ao representante pela rescisão do contrato fora dos casos previstos no art. 35, cujo montante não poderá ser inferior a 1/12 (um doze avos) do total da retribuição auferida durante o tempo em que exerceu a representação. […]