O STF e os riscos dos julgamentos por extensão nos tributos sobre o consumo

O plenário do Supremo Tribunal Federal – no recente julgamento do Tema 816 da Repercussão Geral – decidiu, por maioria, excluir da incidência do ISS a operação de industrialização por encomenda com fornecimento de insumos pelo contratante. O tribunal entendeu que, nessa hipótese, incide o ICMS, uma vez que se trata de etapa intermediária do ciclo de produção de mercadorias.

A corte deliberou, ainda, pela modulação dos efeitos da decisão, afastando a possibilidade de exigência do ICMS em relação às operações anteriormente submetidas à incidência do ISS, até a data do julgamento. Na mesma oportunidade, decidiu pela impossibilidade de cobrança do IPI nas operações pretéritas, desde que tenha havido o recolhimento regular do ISS pelo contribuinte.

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Chama a atenção a circunstância de que o Imposto sobre Produtos Industrializados, objeto da decisão de modulação, não foi questionado na lide originária, tampouco debatido no acórdão que reconhecera a repercussão geral, e, mesmo no voto condutor do julgamento, apenas foi mencionado de forma incidental.

Note-se que a União — por não possuir interesse jurídico diretamente controvertido na demanda originária — tampouco integrou a relação processual. Em razão disso, não lhe foi facultado apresentar suas razões nem influenciar a formação do convencimento do Poder Judiciário em quaisquer instâncias. A intervenção do Ente Federal, no caso, restringiu-se à condição de amicus curiae, já na fase de julgamento pelo Supremo Tribunal Federal, o que, por não lhe conferir a posição de parte, limitou de forma significativa os instrumentos disponíveis para assegurar a observância do devido processo legal em sua dimensão substancial.[1]

O Supremo Tribunal Federal, portanto, afastou a incidência do IPI em processo de repercussão geral no qual tal tributo não integrava o objeto da controvérsia e o fez com base em referência superficial a uma suposta ocorrência de bitributação, atingindo interesse jurídico de terceiro alheio à relação processual. Não houve, nessa deliberação por extensão, aparente preocupação da corte em se desincumbir do ônus de fundamentação adequada.

A inclusão do IPI na modulação de efeitos em uma discussão que envolvia apenas a delimitação da competência tributária entre municípios (ISS) e estados (ICMS) – representa, nesse sentido, uma medida atípica e que suscita preocupações quanto aos limites da atuação do Tribunal em processos subjetivos.

É certo que IPI e ICMS são tributos que incidem sobre o consumo: o federal no ciclo produtivo e o estadual na fase de circulação das mercadorias. Ambos são impostos indiretos e regidos pelo princípio da não cumulatividade. Há, ainda assim, distinções normativas relevantes que não poderiam ser desconsideradas.

A vedação expressa à concomitância entre o ICMS e o ISS prevista no artigo 156, inciso III da Constituição Federal, por exemplo, não se estende ao IPI, para o qual inexiste restrição constitucional semelhante. A decisão proferida no Tema 816, contudo, parece ter ignorado essa especificidade e afastado a cobrança do IPI, na modulação, por simples extensão da conclusão relacionada ao ICMS.

A sobreposição de entendimentos quanto aos tributos incidentes sobre o consumo não é inédita. Desde a edição da Lei 4.502/64, que instituiu o IPI — então denominado “Imposto sobre o Consumo” —, em outros casos o STF aplicou ao IPI deliberações originalmente voltadas ao ICMS. Merece destaque, nesse contexto, a controvérsia relativa à incidência de tributos na importação de bens destinados ao uso próprio. Em 1998, o STF afastou a incidência do ICMS nessa situação, sob o argumento de que o importador, por não exercer atividade comercial, não poderia ser enquadrado como contribuinte do referido tributo.[2]

Essa orientação, construída no âmbito do ICMS, foi por vários anos indevidamente aplicada ao IPI nas hipóteses de importação para uso próprio[3], até que, em 2016, o plenário do STF reexaminou a matéria sob a perspectiva do tributo federal e, no julgamento do Tema 643 da repercussão geral, firmou posição pela incidência do IPI — em sentido diametralmente oposto à orientação anteriormente consolidada para o imposto estadual. A significativa mudança jurisprudencial, inclusive, levou o ministro Luís Roberto Barroso a propor a modulação dos efeitos da decisão, pleito que não foi acolhido pela maioria do colegiado.

O exemplo — notoriamente ilustrativo das oscilações jurisprudenciais do próprio Supremo — constitui advertência quanto à necessidade de prudência na transposição de entendimentos firmados em controvérsias distintas, sobretudo quando envolvidos tributos diferentes, cujas especificidades normativas podem exigir apreciação jurídica própria e decisão autônoma.

A complexidade do sistema tributário brasileiro não autoriza a confusão entre regimes jurídicos das diferentes espécies tributárias. As similitudes entre os tributos, embora importantes, não permitem conclusões generalizadas ou deslocadas de seu contexto normativo.

O novo constitucionalismo tributário, inaugurado com a Emenda Constitucional 132/2023, acentua as preocupações em torno das deliberações por extensão. A nova configuração da tributação sobre o consumo, com competências compartilhadas e identidade de materialidades, pode induzir o intérprete constitucional à adoção de construções hermenêuticas expansivas como forma de viabilizar a coerência da prestação jurisdicional. Essa tendência, no entanto, deve ser tida com cautela, sob pena de comprometer-se a integridade e a segurança jurídica do sistema.

No atual contexto de transição para um novo modelo de tributação sobre o consumo, torna-se especialmente relevante acompanhar não apenas os desdobramentos legislativos voltados à regulamentação do sistema instituído pela EC 132, mas também a atuação do Poder Judiciário — em especial do STF — quanto à interpretação das normas que disciplinam as novas exações.

A Lei Complementar 214/2025, que institui o Imposto sobre Bens e Serviços (IBS) e a Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS), reflete os comandos constitucionais reformadores e promove a unificação de diversos aspectos entre os tributos, como as hipóteses de incidência e a definição do momento de ocorrência do fato gerador.

Essa homogeneização normativa pode favorecer a ampliação de entendimentos entre espécies tributárias distintas — com o consequente incremento de decisões por extensão — reforçando, assim, a necessidade de interpretação criteriosa e juridicamente fundamentada, bem como do estabelecimento de ferramentas processuais que assegurem a participação efetiva de todos aqueles que terão interesses afetados em um contexto decisório fundado em extensão de entendimentos.

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A atuação do Poder Judiciário — especialmente do Supremo — torna-se ainda mais sensível nesse contexto. A Corte Constitucional eventualmente será provocada a resolver disputas entre entes federativos e contribuintes, bem como a definir o alcance das normas estruturantes do novo modelo. Caberá ao STF, portanto, atuar com rigor metodológico, respeitando as particularidades de cada tributo e evitando decisões generalizantes que não guardem sintonia com o conteúdo normativo específico das exações sob análise.

É essencial, do mesmo modo, a adoção de uma abordagem criteriosa quanto às controvérsias tributárias submetidas a julgamento, as quais devem ser analisadas à luz das inovações introduzidas pela EC 132. Deve-se evitar a mera reprodução de entendimentos consolidados sob paradigmas normativos já superados pelas alterações constitucionais recentemente incorporadas ao sistema tributário.[4]

A experiência histórica em torno do ICMS, ISS e IPI deve servir como advertência: embora o sistema tributário brasileiro tenha tributos semelhantes sob o ponto de vista econômico e até normativo, não se pode prescindir da análise jurídica individualizada de cada espécie tributária.

Essa cautela hermenêutica, com a entrada em vigor dos novos tributos, será ainda mais relevante para a preservação da segurança jurídica, da legalidade tributária e do pacto federativo. É preciso harmonizar a necessária simplificação e coerência jurisprudencial sem sacrificar garantias associadas ao devido processo legal.


[1] Questão de ordem no RE 949297, Rel. Min. Luís Roberto Barroso.

[2] RE 203.075, Rel. Min. Maurício Correa.

[3] RE 203.075, Rel. Min. Maurício Correa.

[4] CAMANO, Fernanda Donnabella. Pesquisa empírica: precedentes do STF no contexto pós-reforma tributária. Consultor Jurídico, São Paulo, 23 fev. 2025. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2025-fev-23/pesquisa-empirica-precedentes-do-stf-no-contexto-pos-reforma-tributaria/.

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