Riscos à segurança jurídica na regulação de mercados digitais

A proposta legislativa atualmente em tramitação no Congresso Nacional (PL 2768/2022) reflete uma tensão normativa recorrente na regulação de plataformas digitais: o impulso por antecipar riscos concorrenciais por meio de regras ex ante versus a necessidade de preservar um espaço para avaliação contextual e baseada em evidências de condutas específicas.

Ao propor obrigações de não discriminação no artigo 10, sem a devida articulação com o artigo 11, o projeto acaba por comprometer a flexibilidade decisória necessária em casos de condutas que, no sistema antitruste brasileiro, são tradicionalmente avaliadas segundo critérios como poder de mercado, justificativas comerciais legítimas e existência de eficiências.

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De forma empírica, o estudo do Legal Grounds Institute revela que, nos últimos dez anos, apenas 27% dos casos de discriminação foram objeto de condenação pelo Cade, sendo os demais arquivados com base em justificativas econômicas válidas ou ausência de dano concorrencial.

Ainda que o PL pretenda aumentar o rigor sobre “plataformas digitais com poder de controle essencial de acesso”, a substituição de uma abordagem ex post (baseada na regra da razão) por proibições a priorísticas pode levar a condenações incompatíveis com a lógica e a prática do direito concorrencial brasileiro — em alguns cenários, gerando conflito com até 77% da jurisprudência consolidada do Cade.

Essa dissonância não é apenas quantitativa, mas estrutural. A definição de “controle essencial de acesso”, inspirada no conceito de gatekeeper do Digital Markets Act europeu, rompe com o critério tradicional de poder de mercado. Na prática, isso significa que condutas que seriam lícitas — e até pró-competitivas — no exame do Cade, poderiam ser consideradas ilegais com base na posição estrutural da empresa, independentemente de efeitos adversos para concorrentes ou consumidores.

Exemplos de práticas como o self-preferencing mostram que muitas dessas condutas podem ter justificativas legítimas. Tornar essas práticas automaticamente ilícitas, sem consideração de suas eficiências ou do contexto concorrencial, pode comprometer não só a inovação e a segurança dos ecossistemas digitais, mas também a coerência institucional do enforcement brasileiro.

Por isso, propostas legislativas alternativas — como a que vem sendo elaborada no âmbito do Ministério da Fazenda — devem levar em conta a jurisprudência acumulada, os dados empíricos disponíveis e a experiência institucional das autoridades já competentes para regular condutas concorrenciais.

Não se trata de ignorar desafios trazidos pelos mercados digitais, mas de enfrentá-los com instrumentos calibrados, que combinem segurança jurídica, proporcionalidade regulatória e respeito à expertise já construída pelo sistema antitruste brasileiro. A busca por regras claras e eficazes não pode vir à custa da perda de nuance — especialmente em contextos de alta complexidade tecnológica e dinâmica competitiva acelerada.

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