O devido processo tecnológico e a reforma tributária

O sistema tributário brasileiro tem vivenciado transformações significativas em razão de mudanças legislativas advindas da reforma tributária e pela crescente digitalização e automatização de processos.

Nesse contexto, o devido processo legal garantido no texto constitucional tem ganhado uma nova roupagem, sendo, portanto, reinterpretado, dado que cada vez mais novas tecnologias são implementadas nos âmbitos processuais administrativos e judiciais, introduzindo novas formas procedimentais de atuação do fisco e dos contribuintes.

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Apesar de existirem questões a serem debatidas na reforma sobre simplificação, transparência e promoção de equidade no sistema de arrecadação, a adaptação a este período na esfera processual tributária as novas realidades tecnológicas serão imprescindíveis para garantir que as transformações não impliquem em prejuízo aos direitos dos contribuintes.

Nesse sentido, a importância da integração do devido processo tecnológico e a reforma tributária em curso se torna indispensável.

A Constituição de 1988 amparou no art. 5º inciso LIV e LV e consolidou o devido processo legal como um princípio fundamental do ordenamento jurídico brasileiro. O debate acerca do devido processo legal é de longa data na doutrina e jurisprudência pátria. É imperioso ressaltar que o seu contexto de criação deu-se em um momento em que a internet e a interação digital não eram pauta do debate.

Sobre a temática, leciona Bruna Lietz[1]:

A implementação das tecnologias digitais emergentes nas relações existentes na sociedade corresponde ao atual momento em que vivemos. Ademais, a incorporação dos ferramentais tecnológicos nas relações estabuladas na sociedade é uma tendência crescente por uma série de fatores. A modificação nos elos sociais traz reflexos para o Direito, inclusive o tributário, especialmente se visto em uma perspectiva sistemática. (CALIENDO, 2021, p. 146)

Dessa forma, com o avanço das tecnologias na nossa vida cotidiana atrelado a modernização dos sistemas jurídicos e automatização de processos, emerge um novo conceito de devido processo, o devido processo tecnológico, ou seja, trata-se de uma adaptação do devido processo legal para o contexto digital.

O emprego da tecnologia não deve ser encarado como uma mudança no meio da prestação jurisdicional, mas deve ser encarado como “uma verdadeira virada que induzirá releitura de institutos desde o âmbito propedêutico até o delineamento da refundação de técnicas processuais (NUNES, 2021, p. 19)[2].

A automatização e informatização de processos, por exemplo, possibilita a criação de tribunais eletrônicos, onde o acesso às informações processuais e interação das partes consequentemente são consequentemente mais céleres e eficientes.

A concretização do devido processo tecnológico e o devido processo legal no contexto de um mundo digital e globalizado não resta isento de desafios consigo, uma vez que a introdução da tecnologia no âmbito processual com o uso de sistemas eletrônicos de comunicação e o processamento automatizado de informações fiscais precisam ser realizados com máxima cautela, de modo a manter a proteção de direitos fundamentais como de sigilo fiscal.

Por essa razão, a utilização da inteligência artificial não deve ser realizada sem entender realmente as consequências éticas e morais da atribuição das atividades humanas a algoritmos (SEIXAS, 2024, p.50).

Nesse sentido, deve ser garantido que o direito dos contribuintes seja respeitado de forma concomitante às tecnologias inovadoras nos procedimentos jurídicos. Por outro lado, é cediço que com o uso de IA e automação no processo jurídico possibilita agilizar a análise de processos tributários, identificar inconsistências ou fraudes fiscais e otimizar a cobrança de tributos.

Apesar dos inúmeros desafios de  compreender e monitoramento de dados que algoritmos que utilizam, o devido processo tecnológico é um conceito central para a contemporaneidade, em que a inteligência artificial desempenha um papel cada vez mais dominante e que essas questões e regulamentações devem ser mais debatidas.

Com o surgimento da Emenda Constitucional 132/23[3], diversas inovações surgiram, além do marco significativo representado pela iniciativa de inovar e reformular o sistema tributário brasileiro, é importante destacar que a Reforma Tributária promete solucionar problemáticas na esfera do contencioso administrativo e judicial, como a falta de normas gerais e estrutura de julgamento em diversos municípios brasileiros.

Entretanto, a delegação dessa competência levanta questões, especialmente no que diz respeito ao pacto federativo, uma vez que a iniciativa legislativa cabe ao Poder Executivo da União, limitando a participação dos demais entes federados no processo legislativo referente ao IBS.

No entanto, a transição para o novo modelo tributário será um desafio complexo, que deverá ser enfrentado com sabedoria e eficiência, exigindo uma cuidadosa consideração dos diferentes sistemas existentes em nível federal, estadual e municipal. A harmonização entre essas estruturas e a definição de uma divisão de trabalho clara serão fundamentais para garantir uma transição suave e eficaz ao longo dos próximos dez anos, conforme previsto na EC.

Portanto, o que se verifica é que o debate federativo está longe de acabar, assim, o cerne da questão é mais profunda, ou seja, pela própria estrutura do IVA dual há complexidade quanto às formas de distribuição entre os entes federados. Nesse sentido, com muito mais razão, a reforma tributária terá um impacto significativo no contencioso, exigindo uma revisão profunda das estruturas e procedimentos existentes.

Diante desse cenário, destaca-se maior ênfase na transparência nos processos tributários, portanto, em razão de uma adaptação dos contribuintes e das administrações tributárias às novas regras a adoção de tecnologias para garantir que os sistemas de cobrança e fiscalização sejam eficientes e seguros serão primordiais.

Outrossim, importante considerar que a automação do processo de fiscalização também se torna um fator importante, pois, com a utilização de inteligência artificial e big data, é possível realizar auditorias e identificar inconsistências nos dados fiscais com maior rapidez e precisão.

Entretanto, a implementação da reforma tributária no Brasil, aliada ao uso de tecnologias digitais no sistema tributário, apresenta uma série de desafios que envolvem questões relacionadas à infraestrutura tecnológica, à adaptação das legislações tributária e processual, e ao treinamento de profissionais que atuarão no novo modelo. Além disso, é necessário assegurar que as transformações no sistema tributário não prejudiquem os direitos dos cidadãos, como o direito ao devido processo legal.

Por outro lado, as perspectivas de um sistema mais eficiente, transparente e equitativo são promissoras. A digitalização dos processos fiscais reduziu e tende a continuar reduzir a burocracia, otimizar a arrecadação e oferecer aos contribuintes maior previsibilidade no cumprimento de suas obrigações. A modernização também favorece a adoção de práticas inovadoras, como a aplicação de inteligência artificial na fiscalização e a utilização de blockchain para garantir a integridade das transações.

No entanto, a implementação dessas soluções requer investimentos significativos em tecnologia e capacitação de profissionais, tanto na administração pública quanto na iniciativa privada, para evitar que aumente a litigiosidade e a complexidade do sistema tributário, justamente o que se almeja evitar.

A superação desse desafio exige um plano de transição bem estruturado, que envolva parcerias entre o setor público e privado, além de incentivos para que empresas menores consigam se adaptar ao novo modelo sem comprometer sua competitividade no mercado.

A Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) já estabelece diretrizes rigorosas sobre o tratamento de informações pessoais, mas a efetividade dessas normas depende da implementação de medidas técnicas adequadas. Soluções como criptografia avançada, autenticação multifatorial e sistemas de detecção de fraudes devem ser adotadas de forma abrangente, tanto pelo setor público quanto pelas empresas que operam no ambiente tributário.

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Outro aspecto fundamental é o desenvolvimento de políticas de governança digital. O governo precisa estabelecer protocolos claros para o compartilhamento de dados entre os entes federativos, assegurando que a integração não comprometa a privacidade dos contribuintes e não comprometa o devido processo legal.

Cabe ainda ressaltar, um ponto de suma importância. A implementação de um novo modelo tributário digital também enfrenta barreiras culturais e estruturais. A resistência à mudança possui dois vieses, um seguido pela administração pública e outro pelos contribuintes e profissionais da área fiscal. Muitos servidores, acostumados a procedimentos tradicionais, podem encontrar dificuldades na adaptação às novas ferramentas digitais. Da mesma forma, empresários e contadores que operam há décadas em um ambiente burocrático podem recear os impactos da transformação digital.

O sucesso dessa transformação dependerá da capacidade do Brasil de implementar as mudanças de forma gradual, assegurando que nenhum grupo seja prejudicado no processo de adaptação. A capacitação profissional, a segurança dos dados e a construção de um ambiente regulatório favorável são elementos-chave para garantir que o novo modelo tributário alcance seus objetivos sem comprometer os direitos fundamentais dos cidadãos.

Destaca-se que, dessa forma, o futuro do sistema tributário brasileiro dependerá da capacidade do país de equilibrar inovação e segurança, eficiência e equidade. Se bem executada, essa modernização pode consolidar um sistema mais ágil, confiável e alinhado às necessidades da economia digital global.


BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF: Senado Federal, 1988.

BRASIL. Emenda Constitucional n. 132, de 20 de dezembro de 2023.
Altera o Sistema Tributário Nacional. Diário Oficial da União, Brasília, DF p. 1, col.1 21 de dez. 2023

BAHIA, Alexandre. Reserva legal e a implementação do juiz-robo no Brasil. In: NUNES, Dierle; LUCON, Paulo Henrique dos Santos; WOLKART, Erick Navarro. (Org.) Inteligência artificial e o Direito Processual os impactos na virada tecnológica do direito processual. 2. ed. Salvador: Juspodvim, 2021.

CALIENDO, Paulo; LIETZ, Bruna. Direito Tributário e Novas Tecnologias. LIETZ, Bruna Direito tributário e inteligência artificial: os atuais uso da IA pelas administrações tributárias. – Porto Alegre, RS: Editora Fi, 2021

SEIXAS, Pedro Henrique Paldolfi. O uso da inteligência artificial em decisões judiciais. São Paulo: Editora Dialética, 2024.

[1] CALIENDO, Paulo; LIETZ, Bruna. Direito Tributário e Novas Tecnologias. LIETZ, Bruna Direito tributário e inteligência artificial: os atuais uso da IA pelas administrações tributárias. – Porto Alegre, RS: Editora Fi, 2021

[2] BAHIA, Alexandre. Reserva legal e a implementação do juiz-robo no Brasil. In: NUNES, Dierle; LUCON, Paulo Henrique dos Santos; WOLKART, Erick Navarro. (Org.) Inteligencia artificial e o Direito Processual os impactos na virada tecnológica do direito processual. 2. ed. Salvador: Juspodvim, 2021, p.19.

[3] BRASIL. Emenda Constitucional n. 132, de 20 de dezembro de 2023.
Altera o Sistema Tributário Nacional. Diário Oficial da União, Brasília, DF p. 1, col.1 21 de dez. 2023

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