As audiências de custódia foram instituídas no Brasil de modo experimental em julho de 2015 através de uma parceria entre o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e o Ministério da Justiça. As audiências foram implementadas com o propósito de abordar dois dos principais desafios enfrentados pela justiça criminal brasileira: diminuir a elevada taxa de presos provisórios e contribuir para o controle externo da atividade policial por meio da identificação e do encaminhamento dos casos de violência ocorridos no momento da prisão.
Elas deveriam ocorrer até 24 horas após a detenção realizada pela polícia para que o suspeito fosse examinado e, caso fosse constatada violência policial ou alguma outra ilegalidade durante prisão, o flagrante pudesse ser relaxado.
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Não havendo qualquer nulidade, o juiz deveria decidir, com a participação da defesa e da promotoria, o destino da pessoa presa no curso da investigação e do processo penal. Nesse contexto preliminar, o juiz poderia conceder a liberdade sem restrições, associar a liberdade a condições restritivas diversas da prisão (medidas cautelares), ou manter a pessoa presa preventivamente.
Em dezembro de 2015, as condições de apresentação da pessoa presa à autoridade judicial foram detalhadas pela Resolução 213/2015 do CNJ. Além de definir os prazos de forma mais detalhada, a resolução estabelecia algumas perguntas que deveriam ser realizadas durante a audiência, voltadas à atuação policial durante a prisão e ao contexto e ao perfil social da pessoa presa, visando auxiliar o processo decisório, incluindo a imposição de medida cautelar adequada.
Em 2019, as audiências de custódia foram incorporadas ao ordenamento jurídico com a promulgação da Lei 13.964, de 24 de dezembro de 2019, a qual alterou os artigos 287 e 310 do Código de Processo Penal, tornando-as uma etapa obrigatória do procedimento penal.
O CNJ respondeu à nova regulamentação através da criação do programa Fazendo Justiça, em parceria com o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento e com o apoio do Ministério da Justiça e Segurança Pública. O objetivo do programa era consolidar as audiências de custódia em todo o país.
Entretanto, a sistemática estabelecida pela iniciativa foi impactada pela pandemia de Covid-19. Nesse contexto, aprovou a Resolução nº 357, em novembro de 2020, autorizando a realização de audiências de custódia por videoconferência. A medida impôs novos desafios à efetividade dessas audiências. Mesmo com o fim da pandemia, audiências de custódia continuaram sendo realizadas virtualmente. Com a persistência da prática, coube ao CNJ proibir a modalidade em março de 2023.
Na tentativa de compreender como as audiências de custódia se consolidaram em Belo Horizonte durante a última década, o Centro de Estudos de Criminalidade e Segurança Pública (CRISP) da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) realizou três monitoramentos.
Os dois monitoramentos iniciais foram realizados em parceria com o Instituto de Defesa do Direito de Defesa entre setembro de 2015 e março de 2016 e entre março e junho de 2018. O terceiro monitoramento foi realizado em parceria com a Defensoria Pública de Minas Gerais (DPMG) entre dezembro de 2022 e dezembro de 2023. Os resultados dessa última pesquisa foram recentemente publicados no livro Garantindo a Liberdade Provisória: o papel das audiências de custódia.
Neste artigo, apresentamos alguns dos principais resultados da pesquisa e propomos uma reflexão sobre esse importante instituto que completa uma década de existência em 2025.
Acompanhar as audiências, sofrer as intermitências?
O terceiro monitoramento das audiências de custódia em Belo Horizonte teve início com a assinatura de um Termo de Cooperação entre o CRISP-UFMG e a DPMG em outubro de 2022. Após a formalização da parceria, os órgãos elaboraram conjuntamente um instrumento de coleta de dados capaz de gerar informações sobre os diferentes participantes das audiências de custódia — custodiados, juízes, promotores e defesa pública ou privada — que resultou em um formulário composto por 140 questões.
Na sequência, as instituições realizaram o pré-teste do instrumento e definiram os procedimentos necessários a viabilizar o acesso dos pesquisadores às audiências presenciais e virtuais. Desde a pandemia, as audiências de custódia em Belo Horizonte eram realizadas por meio de videoconferência. O modelo presencial foi retomado apenas em junho de 2023. Tanto no modelo virtual quanto no presencial, as observações das audiências seguiram uma escala que abrangia todos os dias da semana, garantindo uma cobertura equilibrada.
Entre dezembro de 2022 e dezembro de 2023, os pesquisadores acompanharam 1.705 das 11.501 audiências de custódia realizadas no período, o que representa uma cobertura de 14,82%. O intervalo temporal possibilitou a observação de audiências de custódia em seus dois formatos; de forma virtual, entre 15 de dezembro de 2022 e 12 de junho de 2023, e presencialmente, entre 13 de junho e 15 de dezembro de 2023.
Além da observação direta das dinâmicas de interação, um aspecto central do formulário, os pesquisadores também analisaram os documentos relacionados a cada um dos casos levados ao judiciário. A análise tinha como objetivo construir um panorama das ocorrências que levaram à prisão, dos registros das detenções e das formas como os pedidos dos defensores e promotores, bem como as decisões dos juízes, são formalizados nas audiências.
A principal fonte de informação utilizada para mapear o perfil das pessoas custodiadas foi o Registro de Eventos de Defesa Social (REDS). Cabe destacar, no entanto, que esses registros muitas vezes apresentam lacunas ou imprecisões. Isso pode ocorrer em razão da ausência de registro ou mesmo porque determinadas informações são inferidas pelos policiais, podendo não corresponder ao modo como as pessoas presas se veem—que pode, inclusive, não se enquadrar nas categorias previamente definidas no instrumento de coleta.
Diferentemente das duas pesquisas anteriores conduzidas pelo CRISP-UFMG, o acompanhamento das audiências de custódia nesta etapa foi marcado por intermitências e desafios, tanto no formato remoto quanto no presencial. Durante o período em que as audiências eram realizadas virtualmente, mesmo com a parceria institucional, o envio dos links de acesso nem sempre era garantido, o que exigia constantes articulações com a equipe responsável. Em diversas ocasiões, os pesquisadores eram mantidos na sala de espera ou convidados a se retirar por juízes que não reconheciam o caráter acadêmico da pesquisa.
O retorno ao formato presencial trouxe novos obstáculos. Embora a lei estabeleça que as audiências de custódia sejam públicas, o acesso aos fóruns nem sempre era garantido. A entrada e a permanência nas salas de audiência frequentemente dependiam da interpretação de quem presidia a sessão. Houve situações em que os pesquisadores sequer conseguiram ultrapassar a portaria e outras em que foram convidados a se retirar das salas de audiência. Ou seja, embora essas audiências sejam públicas por lei, o controle efetivo do espaço permanece nas mãos do juiz, que pode autorizar ou impedir a presença de observadores.
Resultados dos monitoramentos
O perfil das pessoas custodiadas nas audiências acompanhadas em Belo Horizonte evidencia as profundas desigualdades da justiça criminal brasileira. Dos 1.705 casos observados, 1.571 pessoas foram classificadas como do sexo masculino, 129 como do sexo feminino e cinco como mulheres trans. A maioria dessas pessoas se autodeclarou negra, sendo 26,4% pretas e 59,1% pardas, o que destaca a seletividade racial do sistema de justiça criminal.
Quanto à idade, observa-se a predominância de jovens: 1,6% tinham 18 anos; 36,3%, entre 19 e 25 anos; e 33%, entre 26 e 35 anos — juntos, esses grupos representam mais de 70% das pessoas custodiadas. O nível de escolaridade também aponta para o perfil seletivo do público que chega às audiências de custódia: 41,3% possuíam apenas o ensino fundamental incompleto.
As ocupações informadas indicam vínculos laborais frágeis: 34,2% relataram empregos informais, 32,8% se declararam autônomos e 17,5% estavam desempregados no momento da prisão. Além disso, 76,4% eram solteiros. Esses dados reforçam a predominância de um perfil composto majoritariamente por homens jovens, negros, com baixa escolaridade, vínculos de trabalho precários e inserção social limitada.
Esse é um padrão recorrente nas audiências de custódia em Belo Horizonte, como demonstram os três relatórios elaborados pelo CRISP ao longo da última década.
Quanto aos crimes imputados, o tráfico de entorpecentes é o mais frequente, seguido por furto (simples e qualificado) e, posteriormente, por crimes relacionados à violência contra a mulher, previstos na Lei Maria da Penha. Na sequência, figuram os crimes de roubo, receptação, porte ou posse ilegal de arma de fogo e associação para o tráfico de drogas.
Comparativamente, observam-se mudanças na dinâmica criminal apresentada nas audiências de custódia: o roubo, que ocupava o primeiro lugar nos monitoramentos anteriores (2015/2016 e 2018), perdeu a posição para o tráfico de drogas; já o furto, que aparecia em terceiro, passou a ocupar a segunda colocação.
No que se refere à natureza das prisões, 99,8% dos 1.705 registros correspondem a prisões em flagrante, sendo a Polícia Militar responsável por 92% delas. A Polícia Civil respondeu por 5,2% das detenções; a Guarda Municipal, por 2,6%; e seguranças privados, por 1,7%. Também foram registradas prisões realizadas por Policiais Penais (2 casos) e por populares (14 casos).
Quanto ao local da abordagem, 63,2% dos casos ocorreram em via pública, 14,03% em estabelecimentos comerciais, 7,86% na residência da pessoa custodiada, 9,39% na residência da vítima e 5,52% em outros locais. A concentração em espaços públicos e comerciais está relacionada à atuação da Polícia Militar, que age sem necessidade de mandado em áreas de acesso comum — diferentemente da Polícia Civil, cuja atuação depende, em geral, de investigações prévias e autorização judicial.
As motivações das abordagens que culminam em audiências de custódia são diversas. Em 41,8% dos casos, a prisão ocorreu após uma denúncia à polícia, sendo que denúncias anônimas motivaram 17,3% das ações. Atitudes consideradas suspeitas motivaram 21,3% das detenções; blitz ou batidas policiais, 15,4%; e investigações prévias, 4,2%. O relatório também destaca a presença de mecanismos descritos como o “olhar adestrado” e o “faro” do policial, que favorecem a identificação de pessoas negras como suspeitas, a partir de critérios subjetivos associados à localização, aparência física, gestual e vestimenta.
A média de tempo entre as prisões e as audiências foi de 1,84 dias, com 72% dos casos ocorrendo em até dois dias. No entanto, ao longo do ano, observa-se uma tendência de aproximação da média para um dia, sugerindo que a retomada do formato presencial contribuiu para um fluxo mais ágil e maior respeito aos prazos. A duração das audiências também apresenta variações, a média foi de sete minutos, com a maior parte das audiências durando cerca de cinco minutos e registros que vão de apenas um minuto até pouco mais de três horas.
Quanto às decisões judiciais nas audiências acompanhadas, a maioria resultou em liberdade provisória com medidas cautelares diversas da prisão, 66,1%. A prisão preventiva foi decretada em 32% dos casos, houve relaxamento do flagrante em 0,9%; a liberdade irrestrita foi concedida em 0,7%, e a prisão domiciliar foi determinada em 0,4%.
Esses dados revelam uma mudança na resposta judicial: a prisão preventiva deixou de ser a medida predominante. Comparativamente, em 2018, 37,4% dos casos acompanhados pelo CRISP resultaram em prisão preventiva, e, entre 2015 e 2016, esse percentual era de 53,3%.
Ao longo dos três monitoramentos conduzidos pelo CRISP-UFMG, observa-se uma tensão constante entre mudanças institucionais e permanências estruturais nas audiências de custódia em Belo Horizonte.
Entre as principais transformações, destaca-se a redução progressiva do uso da prisão preventiva como resposta judicial, que caiu de metade dos casos em 2015/2016 para menos de um terço em 2022/2023, sinalizando uma ampliação da aplicação de medidas cautelares diversas da prisão. Outra alteração relevante diz respeito ao perfil dos crimes imputados, com a ascensão do tráfico de drogas à condição de infração mais recorrente, em detrimento do roubo, que predominava nas pesquisas anteriores.
No entanto, quanto ao que é efetivamente administrado nas audiências de custódia, permanecem elementos centrais da seletividade quanto ao perfil dos autuados, como a prevalência de jovens negros, com baixa escolaridade, além do marcante protagonismo da Polícia Militar, tanto nas prisões em flagrante quanto na manutenção de práticas subjetivas de abordagem policial, baseadas em critérios pouco transparentes.
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Pesquisa realizada com o apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa de Minas Gerais (Fapemig) – APQ-02474-23, edital universal de 2023.