Quando o tempo se torna obstáculo à humanidade

Pode ser que você não saiba, mas, durante décadas, o Estado brasileiro promoveu, por força de lei, o afastamento forçado dos filhos cujos pais foram diagnosticados com hanseníase. Pais internados compulsoriamente e filhos institucionalizados em orfanatos — muitas vezes sem qualquer registro ou vínculo preservado. O número de filhos separados estimado pela Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República: 20 mil.

Em maio, o ministro Gilmar Mendes devolveu ao plenário do Supremo Tribunal Federal a ADPF 1060, que discute se esses filhos de pessoas atingidas pela hanseníase — separados compulsoriamente de seus pais pelo Estado brasileiro — têm direito à reparação civil imprescritível.

Informações direto ao ponto sobre o que realmente importa: assine gratuitamente a JOTA Principal, a nova newsletter do JOTA

O caso chegou à corte com um pedido claro: que se reconheça a impossibilidade de se aplicar prazos prescricionais rígidos para aqueles que, ao longo do século 20, tiveram suas histórias e identidades arrancadas sob a justificativa de uma política sanitária institucionalizada.

O placar, até o momento, apresenta três votos: o do relator, ministro Dias Toffoli, complementado após pedido de vista, reconhece parcialmente o pedido. Ele admite a legitimidade da Procuradoria-Geral da República para atuar ao lado do Movimento de Reintegração das Pessoas Atingidas pela Hanseníase (MORHAN) e entende que o prazo prescricional de cinco anos deve ter como marco inicial a publicação da ata de julgamento da ADPF.

Foi acompanhado pelo ministro Alexandre de Moraes. O ministro Flávio Dino propôs interpretação semelhante, mas com formulação distinta para as demais hipóteses fundadas nas Leis 11.520/2007 e 14.736/2023. Com esses três votos proferidos, o ministro Gilmar Mendes pediu vista.

O Conselho Nacional de Direitos Humanos, que atua como amicus curiae na ação, alertou que a proposta apresentada nos três votos já proferidos (prazo de cinco anos a partir da ata de julgamento) é insuficiente por três razões: muitas vítimas não sabem que foram alvo da política de separação; o Estado não concluiu o processo de identificação dos filhos separados; e ainda falta uma ampla campanha nacional de divulgação dos fatos. É importante registrar, ainda, que muitos desses filhos separados foram enviados ao exterior ainda na infância e, até hoje, vivem sem qualquer conhecimento sobre sua origem ou sobre a política estatal que os afastou de suas famílias no Brasil.

Não se trata de um caso qualquer definindo a prescrição da responsabilidade extracontratual do Estado.

Estamos diante de uma das mais duras páginas da história sanitária e jurídica do Brasil.

É difícil encontrar precedente de violência institucional dessa magnitude. Em um dos orfanatos mencionados por vítimas, todas as crianças foram registradas com o mesmo nome: o da responsável pela entrega dos documentos ao cartório.

A tese da imprescritibilidade que se pleiteia não busca eternizar litígios, mas garantir justiça mínima e preservação da memória histórica diante de uma violação praticada pelo próprio Estado, com base em política pública e amparo legal. Não se trata apenas de dano individual, mas de uma violação à dignidade humana em sua forma mais estrutural.

O que está em jogo é a possibilidade de reconhecer ou não que o próprio Estado, por meio de lei, violou de forma grave e sistemática a dignidade humana, suprimindo a identidade de seus cidadãos mais vulneráveis. Como sustenta Silmara Juny de Abreu Chinellato, os direitos da personalidade são “inalienáveis, imprescritíveis e impenhoráveis” (Tratado de Direito Civil, Saraiva, 2007). Carlos Alberto Bittar aponta sua natureza inata e absoluta (Os Direitos da Personalidade, Forense Universitária, 2003). São direitos que perduram inclusive após a morte, conforme o art. 12, parágrafo único, do Código Civil.

É certo que a imprescritibilidade não pode ser a regra em qualquer ação de responsabilidade civil. O tempo, como advertia Atalá Correia, “obnubila a memória”, o que exige cautela ao revisitar o passado (Prescrição e Decadência, RT, 2009). No entanto, exceções existem — e a ADPF 1060 trata de uma delas. Quando o próprio Estado é o autor da violação, por meio de ato legal e institucional, a resposta jurídica não pode ser pautada pela barreira temporal que tem como resultado negar a memória, a verdade e a reparação.

A Corte Europeia de Direitos Humanos (CEDH) tem jurisprudência firme contra prazos que inviabilizem a reparação de violações graves. No caso Howald Moor vs. Suíça (2014), entendeu que regras de prescrição não podem impedir o acesso efetivo à justiça quando os danos são descobertos tardiamente. A Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), no caso Vladimir Herzog vs. Brasil (2018), afirmou que o Estado está impedido de utilizar “figuras que permitam a impunidade de crimes contra a humanidade, tais como a prescrição”. Em Barrios Altos vs. Peru (2001), a CIDH considerou inadmissíveis anistias e prescrições para violações graves de direitos humanos.

Assim como nos precedentes – embora esta ação não tenha natureza penal, é evidente o caráter intergeracional e coletivo do dano. Como reconhece a doutrina, a imprescritibilidade também vem sendo admitida pelo ordenamento brasileiro em outras hipóteses, como em casos de tortura durante a ditadura militar (STJ, REsp 1.162.205/RS) e de danos ambientais (REsp 1.365.366/SP). O STF já firmou a tese da imprescritibilidade do ressarcimento ao erário em casos de dolo (RE 852.475).

Do ponto de vista internacional, a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (CDPD), internalizada com status constitucional (Decreto 6.949/2009), exige que o Estado remova barreiras ao acesso à justiça (art. 13) e assegure reparação integral (art. 16). A Convenção Interamericana contra o Racismo (Decreto 10.932/2022) reforça a obrigação de garantir mecanismos eficazes de reparação às vítimas de discriminação institucional.

Julgamentos como esse demandam coragem institucional. Como já reconhecido pela Corte Interamericana de Direitos Humanos e pela Corte Europeia de Direitos Humanos, regras prescricionais não podem servir para perpetuar a impunidade ou inviabilizar o direito de acesso à justiça. Isso é ainda mais grave quando o autor da violação é o próprio Estado e quando a violação afeta gerações inteiras, como ocorre nos casos de filhos separados por hanseníase.

A Constituição de 1988 comprometeu-se com a dignidade da pessoa humana, com o reconhecimento das violações do passado e com a construção de um Estado que não apaga suas vítimas. O Supremo Tribunal Federal tem agora a oportunidade de reafirmar esse compromisso — reconhecendo que o tempo, nesses casos, não pode apagar a memória do que a maioria (e o próprio Estado) são capazes de fazer contra a existência de quem é classificado como inadequado ou ameaçador.

Adicionar aos favoritos o Link permanente.