Na semana passada, o ministro André Mendonça apresentou seu voto no julgamento sobre a constitucionalidade do art. 19 do Marco Civil da Internet. Embora o inteiro teor do voto não esteja disponível, o próprio STF destacou que o ministro baseou sua opinião na importância da liberdade de expressão[1], tendo adotado a tese de que “as plataformas digitais não podem ser responsabilizadas pela ausência de remoção de conteúdo de terceiro”[2].
Entretanto, como já tive oportunidade de abordar anteriormente[3], o real risco para a liberdade de expressão decorre precisamente da ausência de regulação ou de responsabilização das plataformas, uma vez que muitos dos problemas relacionados às discussões sobre o art. 19 do Marco Civil nem se referem à liberdade de expressão nem à responsabilidade das plataformas por fatos de terceiros.
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Com efeito, não se pode mais aceitar a ideia de que as plataformas são neutras em relação aos conteúdos que nela trafegam. As plataformas são e sempre foram grandes gerenciadoras de conteúdo, identificando, filtrando, classificando, ranqueando e priorizando as informações que devem ser difundidas para cada usuário.
Logo, já existe uma curadoria personalizada da informação, que permite às plataformas não apenas decidir que tipo de conteúdo chegará a cada usuário, mas também quando e como. A questão é que essa curadoria é realizada normalmente sem transparência e accountability, de acordo com os interesses exclusivos das plataformas e gerando grandes externalidades negativas.
Além disso, as plataformas adotam diversos modelos de propaganda, impulsionamento e monetização de negócios que são ou a causa ou a consequência da produção e da divulgação de diversos conteúdos. Nessas hipóteses, fica ainda mais difícil sustentar qualquer neutralidade, uma vez que a ingerência da plataforma sobre conteúdos é direta e remunerada.
No campo dos conteúdos pagos, está-se diante de verdadeiro negócio, movimentado por interesses econômicos. Exatamente por isso, o fluxo informacional daí decorrente deve ser também compatibilizado com as diversas regras de publicidade e informação já constantes de vários outros diplomas normativos, tais como o Código de Defesa do Consumidor e o Estatuto da Criança e do Adolescente.
Tal ponderação mostra que, para efeitos da responsabilização das plataformas digitais, deveria haver ao menos uma primeira diferenciação entre os casos de conteúdos pagos e não pagos, pois, sendo muito maior a ingerência das plataformas sobre os primeiros, é de se esperar igualmente uma maior responsabilidade.
Por essas razões, o argumento de que as plataformas não podem se responsabilizar por conteúdos de terceiros é bastante limitado, até porque não se aplica a uma parte expressiva do fluxo informacional que trafega na internet.
Consequentemente, em todos os casos em que a plataforma gerencia, de alguma forma, o fluxo informacional -e especialmente nos casos em que ela é remunerada para priorizar determinado tipo de conteúdo – não há que se falar em responsabilidade da plataforma por fato de terceiro, mas sim por fato próprio. Tal circunstância obviamente não afasta a responsabilidade do gerador do conteúdo, mas não pode, por igual, afastar a responsabilidade da plataforma.
Outra questão que precisa ser esclarecida é a discussão sobre liberdade de expressão não se aplica – ou se aplica com muitas restrições – a uma boa parte do fluxo informacional das plataformas, especialmente quando este é gerado por bots e contas inautênticas; pessoas jurídicas com interesses comerciais ou atores mal intencionados, que se utilizam de múltiplas estratégias não apenas para divulgar conteúdos enganosos e falsos, como também para manipular as pessoas, inclusive comprometendo o seu próprio livre-arbítrio.
O saldo final de todas essas características é que as plataformas digitais cada vez mais se distanciando de um espaço de interação espontânea entre cidadãos – estes, sim, os titulares legítimos da liberdade de expressão – para se transformarem em “praças públicas” artificiais, com caráter fortemente comercial ou mesmo em espaços virtuais para a implementação dos mercados de consciências e da chamada indústria da desinformação e do ódio.
A tudo isso se acrescenta a falta de transparência e do desrespeito à regra constitucional que veda o anonimato, o que torna o fluxo informacional cada vez mais corrompido e disfuncional, o que amplifica a propagação desproporcional de conteúdos de minorias raivosas ou de quem tem mais dinheiro ou está mais disposto a se utilizar de manobras ilícitas para atingir seus objetivos.
Em todos esses casos, obviamente não se está a falar de liberdade de expressão, até porque bots não são nem mesmo titulares de direitos. Acresce que, como todos os demais direitos, a liberdade de expressão, mesmo quando pode ser invocada, não é absoluta e não goza de proteção constitucional quando é exercida de forma abusiva.
Daí por que, em muitos casos, a liberdade de expressão tem sido utilizada como mero disfarce para a prática de toda sorte de ilicitudes e manipulações. A estrutura ou arquitetura das plataformas digitais ainda potencializa as disfuncionalidades descritas, uma vez que, por diversas razões, incluindo os modelos de monetização, acabam priorizando discursos que valorizam o ódio, a mentira e a polarização.
Outra consequência problemática da atual estrutura das plataformas é a possibilidade de silenciamento e discriminações em relação a conteúdos que, embora lícitos, não sejam considerados desejáveis pelas plataformas.
Para além disso, há o problema dos vieses não intencionais, o que mostra não apenas as implicações políticas do fluxo informacional virtual, como também o fato de que não se tem espaços para a diversidade e o equilíbrio indispensáveis para o debate democrático.
Diante das ponderações realizadas, observa-se que a liberdade de expressão tem sido, em muitos casos, um argumento retórico para encobrir os riscos reais do atual fluxo informacional. Não se pode ignorar que as plataformas digitais tornaram-se os maiores agentes econômicos e políticos da nossa época e que as disfunções do fluxo informacional podem comprometer não apenas nossos valores individuais mais importantes, como a liberdade, a igualdade e o livre desenvolvimento da personalidade, como também a democracia.
Obviamente que a regulação do fluxo informacional não é um tema simples e banal. Não se nega que há sérias implicações para a liberdade de expressão. Entretanto, tal preocupação deve ser colocada na correta perspectiva, já que não é disso que se trata quando se está diante de um fluxo informacional artificial, obscuro e remunerado, fruto muitas vezes de uma grande indústria da desinformação e da manipulação, que se acopla convenientemente aos modelos de monetização das plataformas.
Logo, se quisermos realmente enfrentar o problema, precisamos reconhecer que a preocupação com a liberdade de expressão não se justifica em relação à parte considerável do fluxo informacional nas grandes plataformas, especialmente no tocante às interações que envolvem bots, contas inautênticas, propagandas, conteúdos impulsionados ou pagos, negócios escusos e manipulações.
Pelas mesmas razões, invocar a liberdade de expressão é ignorar os riscos reais que a falta de regulação apropriada pode representar para a liberdade de expressão dos cidadãos reais, para o acesso à informação e para a própria democracia e, além de tudo, isentar as plataformas de responsabilidade por fato próprio, ou seja, pelo gerenciamento e impulsionamento de conteúdos.
[1] https://noticias.stf.jus.br/postsnoticias/julgamento-do-marco-civil-da-internet-prossegue-nesta-quinta-feira-5/
[2] https://www.conjur.com.br/2025-jun-05/mendonca-vota-contra-responsabilizacao-das-big-techs-por-conteudo-de-usuarios/
[3] https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/constituicao-empresa-e-mercado/regulacao-de-conteudos-em-plataformas-digitais