O modelo de publicização no Brasil, de uma parceria qualificada entre o terceiro setor e os governos na implementação de políticas públicas com mais flexibilidade e autonomia, o que reverteria em mais eficiência, se pauta na ideia do Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado (PDRAE), que completa em 2025 três décadas, operacionalizado por um desenho de organizações sociais, previstas na Lei 9.637/1998, entendida majoritariamente como uma lei geral.
Um modelo que se popularizou na política nacional, na esfera subnacional, mormente na saúde, cultura e educação, e foi mimetizado de maneira fiel nas legislações locais, com um avanço quantitativo nesse tipo de pactuação após a segurança jurídica derivada da decisão do STF de 2015, fruto da Ação Direta de Inconstitucionalidade 1.923/98.
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E com uma perspectiva de maior expansão com o entendimento firmado pelo Parecer SEI 3.974/2024/MF da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (PGFN), de novembro de 2024, de que gastos de pessoal com parcerias firmadas com organizações sociais não devem ser computados no limite de gastos de pessoal estabelecido na Lei de Responsabilidade Fiscal (Lei Complementar 101/2000).
O PDRAE é fruto de um momento histórico reformista, com centralidade nos resultados e aversão aos meios, tidos como hegemonicamente burocráticos e onerosos, o que invisibiliza e, em certa medida, culpabiliza a função controle, exaltando que a accountability derivaria, de forma precípua, da competição administrada, que seria possível com a descentralização da execução das políticas para entidades do chamado setor público não-estatal.
Tem-se nesse ideário uma transparência invisibilizada, uma participação social encapsulada e uma verificação de conformidade demonizada, colocando na visão concorrencial a grande força de accountability do modelo de organização social, pela força de indicadores estabelecidos em um contrato de gestão, como arranjo suficiente para dar conta de sua missão e ainda, do fenômeno da corrupção.
Desenho de accountability que não foi objeto de alterações legislativas na Lei 9.637/1998, e se viu replicado e fossilizado também no arcabouço jurídico subnacional que rege essas relações, a despeito de todos os avanços ocorridos nessa agenda nos últimos 30 anos, e ainda, impermeável a influência decorrente de escândalos de grande repercussão na gestão de organizações sociais.
Curiosamente, a análise da legislação subnacional de organizações sociais revela, ao contrário do espírito do PDRAE, um adensamento em aspectos burocráticos mais estritos, de verificações contábeis e de prestações de contas pasteurizadas.
Pouco avança sobre o finalístico, o avaliativo, o cidadão e na relevante ciência de se construir indicadores que dialoguem com a lógica da política pública, reforçando aspectos cartoriais e mantendo invisibilizados a população e os mecanismos de fortalecimento do aspecto concorrencial, que seria a estrela da accountability do modelo.
A fossilização se faz patente na impermeabilidade diante das mudanças legislativas no campo da accountabiliy nesses 30 anos e que não se refletem no modelo, e que está em expansão. Marcos legais estruturantes, como a Lei de Acesso à Informação (Lei 12.527/2011), a Lei dos usuários dos serviços públicos (Lei 13.460/2017), bem como a Lei Anticorrupção (Lei 12.846/2013), em um período histórico de fortalecimento dessa agenda, tocam de forma acanhada os normativos que regem as relações do poder público com as organizações sociais.
Faz-se necessário avançar na accountability das organizações sociais em três dimensões:
- Monitoramento e avaliação, fazendo o acompanhamento estatal mais vinculado ao finalístico e ao cidadão, com uma preocupação com os custos;
- Transparência e controle social, incorporando mecanismos de acesso a informação que permitam a interação e a pressão popular; e
- Concorrencial, permitindo que as entidades sejam pressionadas pela possibilidade de serem substituídas por outras diante do baixo desempenho.
As questões do zeitgeist pós-PDRAE não o atualizaram, e a casuística de escândalos de corrupção relacionadas a entidades do terceiro setor e especificamente, vinculadas à organizações sociais, não impactaram no aprimoramento do processo legislativo e na discussão dos efeitos dos escândalos de corrupção no sistema de accountability, que pode ser mais bem analisada no trabalho de Lustosa da Costa, Braga e Caldeira.
A decisão do STF de 2015 na ADI 1.923/98 talvez seja a maior contribuição no balizamento da accountability das organizações Sociais, mas talvez seja necessário um novo debate sobre esse tema, fruto desse trinômio – expansão, escândalos e fossilização – que caracteriza em alguma medida o contexto atual e que demanda uma reforma desse conjunto normativo, agregando salvaguardas adequadas e não onerosas, e que protejam as políticas sociais operacionalizadas por organizações sociais de malfeitos que ao final impactam o serviço prestado ao cidadão e mancham as potencialidades da adoção do modelo.
Nesse ponto, precisa se substituir o debate polarizado e raso do meramente ser contra ou favorável ao modelo de organizações sociais, para uma visão de que esse modelo está posto no mundo real, em certa medida solidificado, como outros de publicização, citando-se entre outros a parceria público-privada (Lei 11.079/2004), organizações da sociedade civil de interesse público (OSCIP) (Lei no 9.790/1999), e que todos estes precisam ser analisados no seu processo de adoção por meio de vários prismas.
Inclusive o da accountability, visão que cuida do relacionamento social em que um ator sente a obrigação de explicar e justificar a sua conduta a outros, e se caracteriza pela transparência das decisões, justificação explícita desses atos e a existência de sanções no caso de rompimento dos acordos.
A discussão de se aprimorar esses modelos qualifica o debate e talvez seja o caminho para se romper essa fossilização, entendendo que não existe modelo perfeito, sem fragilidades, em uma construção que envolve um jogo de forças cotidiano, no qual a clareza dos problemas da política social advindos de determinados modelos adotados venha para a mesa de discussões, o que permitiria maiores avanços.