Imposto seletivo na extração de minérios

O Imposto Seletivo brasileiro, criado pela reforma tributária do consumo, apresenta desafios à sua devida compreensão.

Por se tratar de um tributo que se espelha em um debate teórico que o situa como instrumento finalístico e eficiente de políticas de saúde e meio-ambiente, e por aderir a experiências internacionais, sua instituição, em solo brasileiro, atrai olhares indulgentes daqueles que nutrem simpatia por tais políticas, a despeito da ausência de crítica quanto à forma de sua implementação.

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O principal problema do Imposto Seletivo brasileiro é ele adotar a semântica de um tributo que fortalece nobres causas, sem apresentar sequer potencial de alcance de resultados que a sua defesa postula.

Tenho insistido que a estrutura fiscal assumida pelo novo tributo o desvirtuou. De interventivo que pretendia ser, passou a representar mera forma de compensar estados, Distrito Federal e municípios pela perda dos repasses dos valores arrecadados com o Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI), com o agravante, inescusável, da União ter assumido compromisso, na própria Constituição Federal (art. 7º da Emenda Constitucional 132/2023), de garantir que o valor atual do repasse aos entes nacionais não será reduzido, o que a obrigará a arrecadar por volta de R$ 65 bilhões anualmente.

Um imposto seletivo bem desenhado é aquele que, do ponto de vista da arrecadação: (i) surge como fonte nova de recursos; (ii) com destinação do produto da arrecadação ao atingimento dos objetivos que o justificam; (iii) sem atrelar a sua arrecadação a montantes fixos, pois se pressupõe a sua queda, a partir da redução do consumo dos bens e serviços selecionados.

Do ponto de vista de seu design tributário, um bom imposto seletivo deve: (iv) incidir sobre bens e serviços que, justificadamente, sejam prejudiciais à saúde e ao meio-ambiente; (v) estar diretamente relacionado ao consumo e não à produção; (vi) estar apto a interferir na estrutura de custos e, posteriormente, de preços dos bens e serviços selecionados; (vii) estar situado em um sistema tributário sobre o consumo de carga não elevada e predominantemente uniforme; (viii) determinar uma carga que esteja relacionada aos custos públicos indesejáveis, decorrentes do consumo dos bens e serviços eleitos pelo legislador e (ix) não criar distorções intrassetoriais entre os contribuintes selecionados ou entre aqueles escolhidos e os não escolhidos para sofrerem a tributação, quando há produtos substituíveis e equivalentes.

O Imposto Seletivo brasileiro, todavia, descumpre todas as regras de tributação ótima, a despeito de usar o mesmo nome e a mesma justificativa internacional de existir.

No presente texto, vou me ocupar de sua incidência sobre a extração de bens minerais, demonstrando o seu afastamento em relação às premissas apontadas anteriormente, a partir de uma análise econômica e de direito econômico, financeiro e tributário.

As  características do IS brasileiro acabam por revelar um tributo passível de judicialização, em virtude de inconstitucionalidades materiais, a partir de alguns argumentos que não parecem ter sido ainda apresentados no debate público.

Acompanhando os itens listados anteriormente, o Imposto Seletivo brasileiro, do ponto de vista fiscal, (i) não surge como receita nova, pois ocupará o mesmo espaço fiscal que será deixado pela quase total descontinuidade do IPI, daí a eleição dos principais bens da arrecadação de IPI para o seu rol de incidência, sendo a inclusão da extração de minérios apenas uma forma segura de completar a conta necessária de arrecadação alvo, sem que o governo federal tenha que realizar gastos para compensar os entes subnacionais.

O novo tributo (ii) não custeará políticas ambientais, porque a Constituição Federal proíbe a destinação específica dos recursos arrecadados por impostos (art. 167, inciso IV, da CF/1988) e porque 60% dos valores arrecadados serão repassados a estados, Distrito Federal e municípios, que somente poderão utilizar tais recursos a gastos gerais, atendidas as demais regras orçamentárias.

E, ao contrário de um típico tributo seletivo que busca corrigir hábitos e, portanto, é desenhado de forma a comportar e almejar a redução de sua arrecadação, (iii) o IS brasileiro surge com o compromisso federal permanente de assegurar que os entes federados não terão os seus repasses de 60% do tributo diminuídos, conforme obrigação assumida no art. 7º da EC 132/2023[1].

Em outros termos, um imposto seletivo com meta fixa de arrecadação passa a revelar, por parte do governo federal, um impulso comparável ao de um viciado, sempre em busca de doses maiores (aumentos de alíquotas para compensar a redução do consumo que se espera) e de novas experiências (inclusão de cada vez mais produtos). De educadora que deveria ser, a União passa a ser sócia do pecado.

Um bom imposto seletivo deve, ainda, ser elaborado (iv) para selecionar os principais bens e serviços cujo consumo sejam prejudiciais à saúde e ao meio-ambiente e não buscar selecionar aqueles que, por conveniência do volume de produção e consumo e por questões políticas, sejam facilmente aprovados.

No caso do imposto ambiental sobre a extração, a escolha do petróleo, ferro, gás natural e carvão mineral segue, perceptivelmente, a lógica do volume de operação e não a de estudos ambientais. A razão para isso é bem clara, quando se analisa o compromisso fiscal assumido pelo governo federal em sua instituição, conforme já exposto.

Outro desvio do imposto seletivo sobre a extração de minérios foi selecionar produtos que se afastam da tributação sobre o consumo (v) e (vi). A função normal desse tributo é distorcer custos, com vistas ao incremento de preço e à correspondente redução do consumo. O IS aprovado, contudo, foi buscar na extração dos bens o seu fato gerador, o que representa uma forma opaca e artificial de burlar a imunidade tributária das operações de exportação[2] e que teve, como efeito colateral, um tributo que não representa um tributo sobre o consumo, sendo, assim, inábil a promover a reeducação de hábitos da população.

Ademais, os minérios selecionados são commodities, com precificação determinada internacionalmente. Um imposto seletivo como esse não tem potencial de alterar preço e reduzir consumo, podendo acarretar, tão somente, uma estrutura de custos mais elevada, de maneira a diminuir a taxa de retorno de investimentos (como bem apontado pelos colegas F. Renault & F. Gaspar[3]), demonstrando se tratar de tributação arrecadatória contrária à eficiência produtiva de empresas concessionárias ou de estatais que desenvolvem tal atividade.

A União, gestora dos recursos minerais públicos e estratégicos, por conta de compromissos fiscais afoitos, desvirtua sua atuação estatal em prol da sociedade (finalidade pública primária) em favor da arrecadação de mais de R$ 60 bilhões (finalidade pública secundária), o que deveria ser alcançada pelos tributos fiscais ordinários.

O Imposto Seletivo brasileiro, que muitos gostam de afirmar estar alinhado às experiências internacionais, delas se afasta, (vii) porque a tributação do consumo brasileira, com os novéis IBS e CBS, será marcada por níveis de tributação que perpetuam uma seletividade em função da essencialidade implícita, ao se determinar quatro níveis de carga, a saber: isenção; 30% da alíquota de referência; 60% da alíquota de referência e a própria alíquota de referência cheia.

A tributação seletiva tem a sua razão de ser quando se tem uma tributação uniforme e inferior à brasileira. Novamente, o imposto aqui criado acaba servindo apenas como uma forma de desonerar a tributação das indústrias, sem quebrar as expectativas de repasses dos entes subnacionais, tudo isso a partir de tons semânticos de política ambiental ou de saúde pública.

Como a métrica adotada pelo seletivo é a do montante arrecadado pelo IPI atualmente, (viii) sua instituição está desvinculada de estudos sobre os gastos públicos relacionados a problemas ambientais e de saúde.

Em relação ao eixo saudável, praticamente se repete a tributação dos principais bens responsáveis pela arrecadação do IPI e, no eixo ambiental, buscam-se os minérios mais expressivos de nossa economia. Não se trata de estudar impacto ambiental da extração, mas de expectativa segura de arrecadação para que se evite necessidade de repasses mensais a partir do orçamento federal.

Por fim, o Imposto Seletivo (ix) cria situações de quebra de igualdade tributária. Não porque seleciona apenas alguns bens e serviços, o que se espera desse tipo de tributação excepcional, mas porque a escolha é determinada por interesses arrecadatórios estranhos ao impacto sobre gastos públicos, o que gera distorções entre tipos de bens substituíveis em que somente parte é escolhida para sofrer a sua incidência (como justificar que refrescos líquidos tenham IS e aqueles concentrados ou em pó não?) ou por criar distinções intrassetoriais inaceitáveis (como no manejo das técnicas de alíquotas que favorecem parcela dos bens em detrimento de outras, como nadisputa entre setores de bebidas alcoólicas e o favorecimento de fermentados de baixo valor).

Os pontos elaborados no presente texto buscam jogar algumas luzes sobre um imposto travestido de política ambiental. Uma boa política deveria estar atrelada aos compromissos internacionais brasileiros e à busca por tributos relacionados à emissão de gás carbônico, à renovação de fontes energéticas e à atenção a tributos internacionais que possam impactar nossas exportações por conta do desatendimento a diretrizes ambientais.

A insistência nesse formato do Imposto Seletivo, comprometido apenas com repasses federais aos estados, Distrito Federal e municípios, acaba por afrontar o regramento constitucional brasileiro, pois a União busca transformar em interesse público primário uma espécie de autoculpa, já que as jazidas, em lavra ou não, e demais recursos minerais e os potenciais de energia hidráulica constituem propriedade distinta da do solo, para efeito de exploração ou aproveitamento, e pertencem à própria União, garantida ao concessionário a propriedade do produto da lavra (art. 176 da CF/1988).

Trata-se, portanto, de bens públicos de uso especial[4], o que significa que, do ponto de vista exclusivamente de iniciativa da Administração Pública, demanda uma atuação objetiva, impessoal, moral e eficiente em favor do interesse público (art. 37 da CF/1988). O protagonismo do Executivo na reforma tributária deveria orientar o Legislativo a não incorrer no erro da aprovação desse instrumento (manejo da lei ordinária)[5].

Além disso, o compromisso fiscal de compensar estados, DF e municípios comprometerá a atração de investimentos em empresas concessionárias ou estatais, fazendo com que o art. 177, em sua relação com o art. 153, inciso VIII, ambos da CF 1988, tensione, materialmente, com o art. 409, inciso VI da LC 214/2024, por descumprimento da razão material de ser do imposto seletivo, já que a União, gestora dos recursos estratégicos do subsolo, atua contra os interesses nacionais de atração de investimentos, pretensamente em favor de uma política ambiental que não tem o potencial de alterar preços de exportação e reduzir o seu consumo. Quando muito, obterá apenas o deslocamento de parcela da produção a outros países.

A prejudicialidade ao meio-ambiente, por seu turno, não é demonstrada, avaliada ou justificada em relação aos minérios selecionados e aos demais minérios de extração menos sustentáveis, demonstrando a ausência de critério objetivo de desigualação, o que significa afronta à igualdade material (tanto na vertente da vedação ao arbítrio, quanto na de ausência de critério racional de comparabilidade dentre os desiguais) do preâmbulo, art. 5º, caput, art. 145, §1º todos da CF/1988, à livre iniciativa (art. 170, caput, e 174 da CF/1988); à livre concorrência (art. 170, inciso IV da CF/1988), não passando, por fim,  pelo teste interpretativo e argumentativo da razoabilidade e proporcionalidade: necessidade, adequação e ponderação.

Em  conclusão, não se trata de imposto seletivo sobre bens de consumo, mas de uma forma artificial de tributar a operação econômica de quatro commodities públicas relevantes para economia brasileira, valendo-se, inclusive, de um artificialismo semântico para tributar a exportação, albergada pela imunidade, desses bens, revelando a sua verdadeira face de tributação da atividade e não de seu consumo.


[1] Tenho apontado que o IS brasileiro se transformou em um mero retrofit fiscal do IPI. Ver ANDRADE, José Maria Arruda de, Imposto Seletivo no Brasil: um balanço entre o que está e o que não está no texto da norma jurídica, in: ANDRADE, José Maria Arruda de; PEIXOTO, Marcelo Magalhães; BRANCO, Leonardo Ogassawara de Araújo (Orgs.), Imposto Seletivo e Pecado: juízos críticos sobre tributação saudável, São Paulo, SP: MP Editora, 2024, p. 19–37.

[2] Entendo haver inconstitucionalidade da incidência na extração de minérios que serão destinados à exportação, não por conta da tese de que destinação seria uso e não local geográfico (defendida por muitos colegas), mas por conta da desnaturação material do imposto, ao buscar tributar a extração, atividade estranha e remota em relação ao consumo da população brasileira.

[3] Ver https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/a-verdade-seletiva-na-reforma-tributaria.

[4] BERCOVICI, Gilberto, Direito Econômico do Petróleo e dos Recursos Minerais, São Paulo: Quartier Latin, 2011.

[5] Não se trata de contrapor o art. 37 da CF/1988 à LC 214/2024 diretamente, mas de realçar o papel da Administração Pública na gestão dos recursos minerais estratégicos em favor da população, a verdadeira titular desses bens.

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