A democracia brasileira acaba de protagonizar um dos seus episódios mais reveladores sobre os limites entre prerrogativas parlamentares e accountability institucional. Em 14 de maio de 2025, a 1ª Turma do STF condenou unanimemente a deputada federal Carla Zambelli (PL-SP) a dez anos de reclusão por comandar um esquema de invasão aos sistemas do CNJ.
Onze dias depois, numa sequência que mais parece roteiro de thriller jurídico-político, a parlamentar empreendia fuga internacional via Argentina e Estados Unidos, culminando em Roma como refugiada involuntária da Justiça brasileira.
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O caso transcende a mera criminalização de condutas individuais. Trata-se de stress test definitivo às instituições democráticas: consegue o Estado brasileiro responsabilizar efetivamente seus agentes públicos quando estes mobilizam recursos tecnológicos sofisticados contra as próprias instituições que deveriam servir?
O esquema Delgatti: cibercrime como instrumento político
A engenharia criminal revelada nos autos supera em sofisticação qualquer ficção conspirativa. Zambelli orquestrou 13 invasões distintas aos sistemas eletrônicos do CNJ, resultando na inserção de 16 documentos falsos que incluíam desde mandados de prisão fraudulentos contra o ministro Alexandre de Moraes – assinados pelo próprio Moraes com a frase “faça o L” – até alvarás de soltura para membros do Comando Vermelho condenados a mais de 200 anos de prisão.
O executor Walter Delgatti Neto, mercenário digital remunerado com R$ 40 mil via intermediários, penetrou nos sistemas SEEU, BNMP, SCA e SAJ do CNJ entre janeiro e março de 2023. A perícia revelou que Zambelli não apenas financiou as operações, como custeou a internação hospitalar do hacker por meio de emenda parlamentar – transformando o orçamento público em instrumento de crime contra o próprio Estado.
A tipificação penal nos artigos 154-A (invasão de dispositivo informático qualificada) e 299 (falsidade ideológica) do Código Penal foi aplicada em concurso material, resultando numa condenação tecnicamente impecável que resistiu aos embargos de declaração rejeitados por unanimidade em 6 de junho. O trânsito em julgado imediato certificou a solidez jurídica da decisão.
Anatomia de uma fuga: o roteiro Puerto Iguazu-Roma
A evasão de Zambelli seguiu planejamento que evidencia assessoramento jurídico sofisticado sobre os meandros da cooperação internacional. A saída via fronteira terrestre de Foz do Iguaçu em 25 de maio aproveitou deliberadamente o feriado argentino para minimizar controles migratórios, exploração calculada dos acordos de livre circulação do Mercosul.
O timing revela-se ainda mais impressionante: Zambelli desembarcou em Roma às 11h de 5 de junho, apenas 1h45 antes da inclusão de seu nome na difusão vermelha da Interpol às 12h45. Essa margem operacional sugere não apenas conhecimento dos procedimentos de cooperação internacional, mas possível acesso a informações sobre o cronograma de medidas judiciais.
A própria revelação da fuga por meio de entrevista ao canal AuriVerde Brasil em 3 de junho constitui peça adicional do quebra-cabeças: por que anunciar publicamente uma evasão bem-sucedida? A resposta encontra-se na estratégia comunicacional de transformar crime em “ato de resistência”, narrativa que ressignifica a fuga como heroísmo anti-establishment.
Diplomacia judicial: quando a Interpol encontra a realidade
A inclusão na lista vermelha da Interpol em menos de 24 horas representa eficiência notável do sistema de cooperação internacional. Zambelli tornou-se a 72ª brasileira no sistema, sendo apenas a 7ª mulher – estatística que espelha tanto questões de gênero na criminalidade política quanto na aplicação de medidas internacionais.
Contudo, a difusão vermelha constitui apenas solicitação de prisão provisória, não mandado vinculante. Cada um dos 196 países-membros decide soberanamente sobre o cumprimento, criando margem de manobra que a defesa de Zambelli explora ao invocar sua cidadania italiana como escudo jurídico.
O precedente Henrique Pizzolato (2015) destroça essa tese defensiva. O ex-diretor do Banco do Brasil, igualmente portador de dupla cidadania italiana, foi extraditado da Itália após condenação no caso do mensalão. A Corte de Cassação de Roma fundamentou a decisão no conceito de “cidadania prevalente”, priorizando vínculos efetivos sobre formalidades cartoriais.
Sintomaticamente, o deputado italiano Angelo Bonelli já oficializou pedido de extradição urgente aos ministérios competentes, alertando que “a Itália arrisca se tornar paraíso para condenados”. A reação italiana sugere que a estratégia de Zambelli pode ter subestimado a sensibilidade europeia sobre acolhimento de fugitivos.
Precedentes constitucionais: mensalão revisitado
A questão da perda automática de mandato parlamentar encontra precedente cristalino na Ação Penal 470 (mensalão), quando o STF decidiu por 5 a 4 que parlamentares condenados a mais de 4 anos ou por crimes contra a administração pública perdem automaticamente o cargo com o trânsito em julgado.
O fundamento reside na interpretação sistemática dos arts. 15, III, e 55, IV, da Constituição Federal: a suspensão dos direitos políticos decorrente de condenação criminal torna automática a perda do mandato eletivo, independentemente de deliberação parlamentar específica.
A resistência do presidente da Câmara, Hugo Motta (Republicanos-PB), em reconhecer a perda automática expõe tensão institucional previsível. Aos 35 anos, o mais jovem presidente da história republicana da Casa enfrenta seu primeiro grande teste de autoridade numa questão que opõe prerrogativas parlamentares à supremacia judicial.
A jurisprudência consolidada no MS 32.326/DF (Min. Barroso) estabelece que prisão em regime fechado gera perda automática por impossibilidade física de exercer função parlamentar. Zambelli, mesmo foragida, permanece formalmente sujeita a regime fechado, configurando impedimento objetivo ao exercício do mandato.
Geopolítica jurídica: Brasil-Itália nos trilhos do Tratado de 1989
O Tratado de Extradição Brasil-Itália (Decreto 863/1993) oferece fundamentação sólida para repatriamento compulsório de Zambelli. O artigo 3º estabelece que a extradição de nacionais italianos é facultativa, não proibida, sendo vedada apenas para crimes políticos – exclusão inaplicável a delitos contra sistemas informáticos.
A experiência Pizzolato demonstra que o sistema funciona quando adequadamente acionado. O processo durou aproximadamente 18 meses, período durante o qual o extraditando permaneceu em prisão preventiva italiana – perspectiva que pode alterar os cálculos estratégicos da defesa de Zambelli.
O Departamento de Recuperação de Ativos e Cooperação Jurídica Internacional (DRCI) já formalizou a documentação necessária, enquanto o Itamaraty prepara os canais diplomáticos. A expectativa é de solicitação formal em 30-60 dias, seguida de análise de admissibilidade pela Justiça italiana.
Cibercrime parlamentar: precedente para a era digital
O caso Zambelli inaugura jurisprudência específica sobre crimes cibernéticos praticados por detentores de mandato eletivo. A qualificadora do § 2º do art. 154-A (aumento de 1/3 a 2/3 pelo prejuízo econômico) foi aplicada considerando não apenas danos materiais, mas comprometimento institucional aos sistemas de Justiça.
A dosimetria de 10 anos resulta da metodologia trifásica rigorosamente aplicada, com reconhecimento de concurso material entre múltiplas invasões e falsificações. O regime inicial fechado fundamenta-se tanto na pena superior a 8 anos quanto na gravidade específica de crimes contra a administração da Justiça.
Para além da reprimenda individual, a condenação estabelece parâmetros claros sobre limites das prerrogativas parlamentares na era digital. Imunidades materiais não se estendem a condutas criminosas que instrumentalizam tecnologia contra instituições democráticas, mesmo quando praticadas por agentes públicos investidos de mandato popular.
Tensões sistêmicas: quando Poderes colidem
A fuga de Zambelli amplifica tensões estruturais entre Judiciário e Legislativo que transcendem o caso concreto. A narrativa oposicionista de “perseguição política” encontra eco em setores que questionam a legitimidade de decisões monocráticas do STF, enquanto a resposta institucional busca afirmar a inegociabilidade do Estado de Direito.
O silêncio inicial de Hugo Motta revela cálculo político complexo: reconhecer a perda automática do mandato pode gerar precedente para casos futuros envolvendo aliados, enquanto resistir à decisão judicial escala o conflito institucional para patamar perigoso.
A polarização atinge seu ápice quando se considera que Eduardo Bolsonaro (PL-SP), residente nos Estados Unidos, pode enfrentar situação similar caso seja alvo de eventual condenação criminal. O precedente Zambelli estabelece roteiro tanto para evasão quanto para perseguição internacional de autoridades brasileiras.
Efetividade institucional em teste
O desfecho do caso Zambelli constituirá termômetro definitivo sobre a capacidade das instituições brasileiras de responsabilizar efetivamente seus agentes públicos. Três cenários se apresentam com probabilidades distintas:
Cenário 1 (70% de probabilidade): Extradição bem-sucedida nos moldes Pizzolato, com retorno compulsório, cumprimento de pena em regime fechado e perda definitiva do mandato. Esse resultado reafirmaria a efetividade do sistema de cooperação internacional e a supremacia do Estado de Direito.
Cenário 2 (20% de probabilidade): Extradição negada por tribunais italianos, resultando em permanência europeia como refugiada, eventual processo local por crimes equivalentes e perda do mandato por ausência conforme art. 55, III da Constituição Federal.
Cenário 3 (10% de probabilidade): Retorno voluntário de Zambelli mediante acordo que preserve garantias processuais, alternativa que permitiria controle sobre narrativa política sem comprometer precedentes de cooperação internacional.
Lições para a democracia digital
O caso Zambelli representa marco jurisprudencial sobre responsabilização de parlamentares por crimes cibernéticos contra instituições democráticas. A aplicação rigorosa dos artigos 154-A e 299 do Código Penal, combinada com efetividade da cooperação internacional via Interpol, demonstra evolução do sistema de Justiça para enfrentar novas modalidades de criminalidade política.
Os precedentes do mensalão e Pizzolato fundamentam tanto a perda automática de mandato quanto a viabilidade de extradição mesmo com dupla cidadania, sugerindo alta probabilidade de responsabilização efetiva. As tensões político-institucionais resultantes testam a maturidade democrática brasileira, enquanto o precedente estabelecido influenciará inexoravelmente futuros casos de parlamentares que tentem evadir-se da jurisdição nacional.
A democracia brasileira não emerge apenas testada deste episódio – emerge mais sofisticada na sua capacidade de resposta a ameaças internas. Zambelli pode ter antecipado os avanços do sistema de Justiça, mas subestimou sua capacidade de adaptação. Em última análise, sua fuga pode ter contribuído inadvertidamente para o fortalecimento das próprias instituições que pretendia enfraquecer.