A blindagem das big techs pelo artigo 19 e a desdemocratização da internet

Quando foi sancionado, em 2014, o Marco Civil da Internet foi celebrado como uma lei fundamental para garantir direitos e deveres no ambiente digital brasileiro. Isso não significou, no entanto, que todos os seus dispositivos foram unanimemente recebidos como avanços sociais. Seu artigo 19, em especial, já era notado como problemático e continua a sê-lo hoje.

Ao realizar uma leitura deturpada da ideia de remoção de conteúdo a partir de notificação extrajudicial do usuário lesado, o referido dispositivo estabelece que provedores de aplicações como redes sociais só poderiam ser responsabilizados civilmente por danos causados por conteúdo de terceiros compartilhados em suas plataformas se descumprissem uma ordem judicial específica de remoção.

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A redação do artigo 19 reflete uma visão utópica da internet que já caía em desuso nos anos 2010. A promessa da rede mundial de computadores como um espaço infinito de liberdade, diálogo e construção coletiva de conhecimento não se cumpriu. Ao contrário, o que se vê é uma internet cada vez mais destituída de humanidade, em que a esperança de neutralidade multicultural trazida nos anos 1990 é substituída por uma espécie de comunicação linear, de alta velocidade e curada por grandes empresas e suas redes sociais.

A realidade digital é marcada por bolhas de informação, algoritmos que selecionam e direcionam conteúdos, gerando entrincheiramento de opiniões em grupos que se radicalizam rapidamente enquanto usam aplicativos de trocas de mensagens, redes sociais e fóruns pouco moderados. O resultado é a propagação massiva de desinformação e discursos de ódio. A lógica das redes não é isenta: ela amplifica aquilo que gera mais engajamento, muitas vezes, exatamente os conteúdos que violam direitos fundamentais.

Nesse contexto, é legítimo questionar se o artigo 19 do Marco Civil serve ao propósito de equilibrar liberdade de expressão e proteção de direitos. E creio que o reconhecimento de sua inconstitucionalidade não é apenas possível, como desejável.

Ao condicionar a remoção dos conteúdos à existência de ordem judicial específica, o artigo 19 criou, na prática, uma blindagem para as grandes plataformas digitais e as empresas que as administram. A via judicial é lenta, onerosa e de difícil acesso para grupos vulneráveis, aqueles que são, muitas vezes, alvos dessas postagens.

Além disso, o artigo 19 apenas evidencia o óbvio, uma vez que o descumprimento de uma ordem judicial é evidentemente motivo para responsabilização civil e criminal do sujeito que a descumpre. Quando falamos de uma relação assimétrica entre usuário e plataforma, isso não é suficiente.

Dizer que o reconhecimento da inconstitucionalidade do artigo 19 – ou sua revogação por um novo Código Civil – implica a responsabilização irrestrita e automática das big techs por tudo que circula nas redes é uma distorção. Da mesma forma, assumir que isso implicaria uma retirada em massa de conteúdos do ar por parte das empresas é mero terrorismo.

A remoção sem critérios de conteúdos legítimos afetaria diretamente o modelo de negócios das próprias plataformas, que valorizam o engajamento. Além disso, a tecnologia atual permite desenvolver ferramentas de moderação sofisticadas, que podem ser combinadas com mecanismos de contranotificação, criando equilíbrio entre liberdade de expressão e proteção de direitos.

Se voltarmos a um estado pré-2014, veremos a aplicação, no Brasil, do modelo de notificação extrajudicial e remoção de conteúdo, como ocorre em outros sistemas jurídicos e suas normas sobre o tema, como o Digital Services Act no caso da União Europeia. Compreende-se que a plataforma torna-se responsável pelo conteúdo reportado a ela como ilícito pelos próprios usuários a partir de um sistema específico de notificação elaborado para este fim.

A falha em cumprir com a solicitação feita pelo usuário pode levar à responsabilização da empresa por não agir de acordo com o requerido na situação. Aqui, a empresa teria ciência do fato – e por ele poderia ser responsabilizada – a partir da notificação extrajudicial ocorrida por mecanismos oferecidos pela própria plataforma.

Dá-se a essa dinâmica o nome de notice and takedown, e sua diferença para o que hoje estabelece o artigo 19 do Marco Civil da Internet é evidente: não há a necessidade de judicialização prévia da questão. A jurisprudência brasileira já utilizava o padrão de notice and takedown antes do Marco Civil, de forma que o artigo 19 representou, por incrível que pareça, um retrocesso específico em algo que, de outra forma, estabeleceu balizas importantes para a internet livre no país.

O referido dispositivo encastela as big techs em um lugar privilegiado: se qualquer agente econômico que oferece serviços à coletividade deve ser responsável pelos riscos que gera, essas empresas só o são em casos muito específicos, porque são em grande parte imunes ao robusto microssistema consumerista brasileiro.

A verdade é que a ideia de notificações extrajudiciais efetivas não é apenas uma solução mais democrática. Ela é tecnicamente desejável. De fato, o modelo de notice and takedown deveria ser considerado a melhor das possibilidades pelas empresas, pois dinamiza o processo de remoção de conteúdos ofensivos, fluidifica a interação entre usuário e plataforma e fortalece a liberdade de expressão responsável, tudo isso enquanto reduz, em tese, a judicialização e minimiza gastos com as ações judiciais voltadas à remoção de conteúdo.

Se elas preferem manter o status quo, é porque os usuários têm acesso limitado ao Judiciário e, portanto, a quantidade de ações voltadas à remoção de conteúdo é pequena o suficiente para compensar o rechaço ao modelo de notificação extrajudicial e remoção de conteúdo. Daí se depreende que a manutenção de uma relação desigual entre usuários e administradores não é vista pelas grandes empresas como um problema imediato.

Pensemos assim: para cada caso específico endereçado pela empresa, o gasto total suportado é bem menor quando o procedimento ocorre de forma extrajudicial. Logo, para que o modelo do artigo 19 seja sustentável, o número de casos específicos endereçados pela empresa deve ser mínimo, porque só isso justifica uma escolha economicamente sustentável pela via judicial.

As empresas, portanto, se apoiam em uma limitação do sistema de responsabilização. Quanto menos democrático e horizontal for a relação, mais interessante é a manutenção do artigo 19. A vigência do dispositivo, por sua vez, funciona como um guardião dessa assimetria, pois reduz drasticamente a responsabilização prática das empresas pelos conteúdos que hospedam.

Cria-se um ciclo de mitigação do fator humano nas decisões sobre a qualidade do conteúdo veiculado nas redes sociais. Tudo sob o argumento de uma liberdade de expressão que nunca existiu, um mito, tal como o da neutralidade. É importante que pensemos nesse desdobramento específico da desdemocratização do espaço virtual.

A quem interessa a conformação do fator humano a um modelo verticalizado de tomada de decisões? Por qual motivo é mais interessante que alguns conteúdos sofram pouquíssima moderação, enquanto outros são sujeitos a censura em tempo real? E por que os conteúdos que circulam livremente tendem a ecoar posicionamentos radicais de direita, usualmente ligados a certas formas de violência simbólica ou física contra pessoas ou grupos minoritários?

É preciso pensar criticamente sobre o papel dessas empresas em nosso comportamento e na precária comunicação que a nós é possibilitada. Algoritmos não são agentes metafísicos dotados de neutralidade. Produzidos por pessoas, obedecendo determinadas diretrizes, eles eliminam, priorizam, impulsionam, cercam e, frequentemente, silenciam vozes que divergem de determinados ideais.

Se uma plataforma escolhe monetizar ou promover certos discursos, ela está, efetivamente, exercendo uma forma de curadoria. Há intenção e há uma escolha ética sendo feita em tempo real. E as empresas não podem se esconder atrás do desgastado discurso da promoção da liberdade de expressão absoluta para evitar arcar com as consequências negativas de suas decisões.

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