Regulamentação do trabalho em plataformas digitais: notícias de Genebra

Dos muitos temas na pauta da 113ª sessão da Conferência Internacional do Trabalho (CIT), que reúne entre os dias 2 e 13 de junho os representantes dos empregadores, trabalhadores e governos dos 187 países-membros da Organização Internacional do Trabalho (OIT), o que mais tem despertado atenção da imprensa e da academia jurídica é o do trabalho decente na economia de plataformas.

Neste ano, foi instituído um comitê normativo para iniciar a discussão, que perdurará até a próxima sessão da CIT, em 2026, acerca da adoção de um instrumento da OIT relacionado à regulação de garantias ao trabalho por meio de plataformas digitais.

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A tarefa desse comitê está permeada por questões polêmicas: o que são plataformas digitais? Quem são os trabalhadores dessas plataformas? Qual o nível de vinculação jurídica desses trabalhadores às plataformas? São empregados? São autônomos? Quais tipos de garantias são compatíveis com o modelo de negócio das plataformas?

Todas essas questões, que serão objeto de acalorados debates ao longo dos próximos dias, foram, porém, inicialmente deixadas de lado por uma discussão de ordem meramente formal: qual tipo de instrumento deveria ser adotado pela OIT para tratar desse tema?

A OIT exerce suas competências por meio de três tipos de instrumentos: protocolos, recomendações ou convenções.

Os protocolos são instrumentos acessórios às convenções, destinados a alterá-las em parte, e adquirem, quando adotados, o mesmo status jurídico dessas convenções.

Desse modo, do ponto de vista da vinculação jurídica dos Estados-membros aos instrumentos da OIT, a diferença importante se tem entre convenções e recomendações, que são definidas no artigo 19 da Constituição da OIT.[1]

Depreende-se desse dispositivo que as convenções geram normas vinculantes, que portanto obrigam os Estados-membros a adotarem legislação interna hábil a respaldar o que decidido no âmbito internacional, ou seja, na CIT (artigo 19, n. 6); enquanto que as recomendações, como o próprio nome indica, somente instam os Estados-membros a tomarem medidas, legislativas ou não, voltadas a equacionar as questões identificadas como sensíveis pela CIT (artigo 19, n. 6).[2]

Convenções, com caráter vinculante, são adotadas quando há decisão inconteste dos Estados-membros reunidos, de modo tripartite (empregadores, trabalhadores e governos) sobre assuntos de competência da OIT. As recomendações, por tratarem de temas sobre os quais não há decisão inconteste, temas cujo tratamento ainda é incerto, são meramente indicativas de boas práticas a serem adotadas pelos Estados-membros, desprovidas, portanto, de força vinculante.

O tema específico do trabalho decente na economia de plataformas foi submetido, inicialmente, a uma reunião tripartite de peritos, realizada em outubro de 2022 em Genebra. As conclusões dessa reunião são claras em indicar que os peritos não chegaram a uma concordância conceitual acerca do objeto da discussão, recomendando, por conseguinte, que a área técnica da OIT propusesse “um conceito operacional de trabalho em plataformas, tanto na perspectiva jurídica quanto estatística, que englobe diferentes tipos de trabalho em plataformas”.[3] 

Ademais, ficou registrada a divergência entre os peritos acerca do momento adequado para uma intervenção da OIT na regulação do trabalho decente na economia de plataformas.

Na sequência dessa reunião, o Conselho de Administração da OIT decidiu, no final de 2022, inserir o tema do trabalho nas plataformas digitais na pauta da 113ª sessão da CIT; assentando  ainda, em março de 2023, que nessa ocasião seria iniciado o processo para adoção de standards sobre o tema. Para cumprir tal objetivo a partir da conferência ora em curso, a área técnica da OIT elaborou um abrangente relatório sobre o trabalho decente nas plataformas digitais.[4] 

Nesse contexto, portanto, é que se iniciou a discussão desse tema nesta semana em Genebra, a partir de um projeto de instrumento formulado pela área técnica da OIT. Todos as discussões dos dois primeiros dias de trabalho do comitê normativo sobre o trabalho decente na economia de plataformas giraram em torno do segundo item desse projeto, relacionado à forma do instrumento a ser debatido e, posteriormente, adotado pela OIT.

O projeto, no referido item 2, prevê que os standards devem adotar a forma de uma convenção suplementada por uma recomendação. Ou seja, o projeto desde logo estabelecia que o produto final dos trabalhos desta e da próxima sessões da CIT sobre o tema seria um conjunto de normas vinculantes para os Estados-membros.

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Ante essa previsão, o grupo dos empregadores e seis governos – Estados Unidos, China, Turquia, Índia, Japão e Omã – propuseram uma emenda ao item 2 exatamente para fixar que o produto final desse processo de elaboração de standards seria uma recomendação, desprovida, como visto, de efeito vinculante.

Nas sessões iniciais do comitê, os Estados Unidos, defendendo a emenda, argumentaram que a natureza de constante mutação das plataformas faria com que a adoção de uma recomendação fosse a solução mais adequada, dada sua maleabilidade e adaptabilidade; o que não ocorre com as convenções, vocacionadas que são para a perenidade.

Além disso, o delegado governamental norte-americano destacou que não há, na atualidade, uma homogeneidade jurídica e técnica no tratamento do tema, de modo a permitir a elaboração uma convenção. Por fim, sustentou que os termos do projeto extrapolariam o mandato da OIT, pois atingiriam relações não tipicamente trabalhistas.

A representante do grupo dos empregadores, por sua vez, sublinhou a falta de consenso nesse tema, que gera dúvidas variadas, mesmo entre os peritos, como comprovado na reunião de 2022, de modo que uma recomendação de princípios seria único instrumento viável no presente momento.

Por outro lado, uma convenção não teria condições de englobar a diversidade das plataformas dentro da lógica de one size fits all, especialmente considerando sua natureza vinculante. Lembrou, ainda, que cada país regula, de acordo com seu Direito nacional, por exemplo, as relações comerciais e tributárias envolvendo as plataformas, não havendo espaço para uma norma internacional trabalhista com caráter obrigatório.

Finalmente, defendeu que a recomendação, por possibilitar uma adaptação a cada realidade nacional, permitiria maximizar os benefícios das plataformas em cada cenário particular, o que seria mais benéfico para todas as partes.

Em resposta, a representante do grupo dos trabalhadores aduziu que somente a adoção de um instrumento vinculante, como uma convenção, pode assegurar efetivamente trabalho decente para os trabalhadores em plataformas, pois um modelo internacionalizado de negócio requer um tratamento igualmente global.

Somente uma convenção teria o poder de moldar as relações laborais nas plataformas, de modo a promover o trabalho decente. Quanto à manifestação do governo norte-americano sobre o mandato da OIT, lembrou que é ele historicamente associado ao controle das condições de trabalho dos indivíduos, o que englobaria o tratamento da questão das plataformas.

Na sequência, iniciaram-se as manifestações dos governos, seja por países individualmente considerados, seja por grupos. A União Europeia externou sua preferência por uma convenção suplementada por uma recomendação, tal qual previsto no projeto, uma vez que se somaria a força vinculante com as possibilidades de adaptação às realidades nacionais, especialmente se elaborada uma convenção principiológica (principle-based).

China, Índia, Turquia e Bangladesh manifestaram-se em defesa da emenda proposta, alegando que somente a recomendação proporcionaria a flexibilidade para que cada país possa regular de acordo com suas especificidades o trabalho decente nas plataformas digitais, possibilidade essa que desapareceria com a adoção de uma convenção.

Por outro lado, uma convenção não teria condições de unificar os múltiplos conceitos técnicos envolvidos na economia de plataformas, nem regular os diversos tipos de atividade a ela relacionados (como motoristas de aplicativo e criadores de conteúdos, por exemplo).

Expressaram, também, preocupação com a dificuldade de ratificação de uma convenção pelos Estados-membros e com a indevida interferência da OIT em relações jurídicas de natureza eminentemente civil e comercial. Os delegados governamentais da Nova Zelândia, de Omã, da Suíça e Japão igualmente externaram posições em defesa da adoção de uma recomendação.

Em defesa da adoção de uma convenção suplementada por uma recomendação opinaram também os delegados governamentais do Uruguai, para quem a grande assimetria das relações de trabalho nas plataformas somente pode ser enfrentada com um instrumento vinculante; da Namíbia (representando todos os Estados africanos), Malawi, Noruega, México, Austrália, Chile, Barbados, Kiribati, Colômbia, Granada (representando todos os Estados da Comunidade do Caribe), Canadá, Nigéria, Reino Unido e Filipinas.

A Argentina, na sessão do dia 3 de junho, inicialmente defendeu a adoção de uma recomendação, alinhando-se à aprovação da emenda. Todavia, na sessão do dia seguinte passou a patrocinar uma solução intermediária, uma convenção com duas partes, uma principiológica e outra específica, permitindo-se aos Estados-membros a ratificação parcial do instrumento.

Essa proposta da Argentina, em realidade, fez eco a uma constante presente nas manifestações dos países em favor da convenção suplementada por uma recomendação, qual seja, a de que essa convenção deveria ser principiológica (principle-based) e não prescritiva, dotada de normas específicas e detalhadas sobre a matéria.

Essa noção foi inclusive incorporada ao discurso da representante do grupo dos trabalhadores, para quem a convenção dever ser uma “moldura” a partir da qual os Estados membros possam regular a matéria de acordo com suas especificidades.

O Brasil, nas manifestações de seus delegados no comitê, defendeu a adoção de uma convenção suplementada por uma recomendação. Numa primeira intervenção, a delegada governamental substituta destacou que a aprovação de uma convenção seria fundamental no processo de elaboração das normas nacionais brasileiras.

Em outro momento, o delegado governamental fez um “apelo humanitário” à OIT para que editasse uma convenção, de modo impedir que os países deixassem de regular a matéria, mantendo a exploração dos trabalhadores pelas plataformas.

Depois dessas propostas, das discussões e de diversas tentativas infrutíferas de construção de uma solução consensual – o que é a regra na OIT, conforme se depreende, no caso dos comitês, do artigo 42 do Regimento da CIT[5] –, passou-se à votação, os termos do n. 2 do mesmo artigo 42.

Nessa votação, foram registrados 66 votos de países[6] pela adoção de uma convenção suplementada por uma recomendação e 18 votos pela edição somente de uma recomendação, sendo que entre esses estavam os Estados-membros que contam com o maior número de trabalhadores em plataformas: China, Índia e Estados Unidos.[7] 

Essa decisão representa o primeiro passo no processo de elaboração do instrumento que poderá ser editado, ou não, na 114ª sessão da CIT, em 2026; instrumento esse que – como decidido na votação – será uma convenção suplementada por uma recomendação. Não se tem, no presente momento, certezas acerca do conteúdo dessa convenção, estando abertas as discussões sobre os sensíveis temas indicados no início deste texto.[8]

Os acontecimentos dos dias 3 e 4 de junho indicam, de modo claro, alguns cenários, seja no plano internacional, seja no plano nacional. No plano da negociação tripartite que ocorre na OIT, fica patente a dificuldade de construção de consenso sobre o tema da regulação do trabalho na economia de plataformas.

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Ademais, a grande tensão nos próximos passos da negociação envolverá a manutenção da natureza principiológica de uma futura convenção, em especial por que o projeto apresentado pela área técnica da OIT é extremamente detalhado, disciplinando aspectos muito específicos do funcionamento das plataformas. A isso se agrega o elevado número de emendas – 387 ao todo – apresentadas a esse projeto, que preveem, entre outras coisas, a garantia da negociação coletiva dos trabalhadores com as plataformas e obrigá-las a submeter à apreciação dos sindicatos seus métodos informáticos de automação do trabalho.

Em síntese, o comitê normativo sobre o trabalho decente na economia de plataformas tem pela frente uma tarefa por demais complexa, que envolverá discussões acirradas até o final da próxima semana; sendo altamente incerto o atingimento de um resultado satisfatório.

Em relação ao governo brasileiro, é possível identificar uma tentativa de transferir para o plano internacional a discussão a ser desenvolvida, no Congresso Nacional, na apreciação do PLP 12/2024, relativo à regulamentação da “relação de trabalho intermediado por empresas operadoras de aplicativos de transporte remunerado privado individual de passageiros em veículos automotores de quatro rodas”.[9]

Com a aprovação de uma convenção detalhada como a proposta pela área técnica da OIT, seria limitado o âmbito de atuação do legislador nacional, por meio de um instrumento construído sem a legitimidade democrática do parlamento brasileiro, onde são notórias as dificuldades do governo na construção de maiorias.[10] 

Esse quadro denota a relevância das discussões ora em curso na 113ª CIT; discussões essas que, como visto, estão somente começando e que devem despertar a atenção dos diferentes setores da sociedade e da economia brasileira que se relacionam com as plataformas digitais para o que agora está acontecendo em Genebra.


[1] “Artigo 19

1. Se a Conferência se pronunciar pela aceitação de propostas relativas a um assunto na sua ordem do dia, deverá decidir se essas propostas tomarão a forma: a) de uma convenção internacional; b) de uma recomendação, quando o assunto tratado, ou um de seus aspectos não permitir a adoção imediata de uma convenção”.

[2] Nesse sentido, entre muitos, Bernhard Boockmann, “Decision-Making on ILO Conventions and Recommendations: Legal Framework and Application”. IINS Research Paper No. 2, Mannheim: Centre for European Economic Research (ZEW), p. 9, disponível em https://ftp.zew.de/pub/zew-docs/docus/dokumentation0003.pdf: “There are two different legal instruments for international labour standards: conventions and recommendations. The principle difference between them is that only the former can be ratified by member states and thus become legally binding. While the exact legal nature of the ILO conventions is disputed among lawyers, there is no disagreement that once a convention is ratified, the ratifying country is under an obligation to ensure the application of the standard given in the convention. The application of conventions is supervised by the ILO; each country is under an obligation to provide the required information.

Recommendations were introduced ‘to meet circumstances where the subject, or aspect of it, dealt with is not considered suitable or appropriate at that time for a Convention’ (ILO Con-stitution, Article 19,1). They are most frequently used to supplement conventions, either giving more details on the content of the standard or sometimes setting a higher standard than the convention. Recommendations are often more ‘technical’ in nature than conventions, and are adopted in areas where the diversity in national institutions is large”.

[3] Conclusões disponíveis em: https://www.ilo.org/sites/default/files/wcmsp5/groups/public/%40ed_protect/%40protrav/%40travail/documents/meetingdocument/wcms_864252.pdf.

[4] A versão mais recente do relatório está disponível em: https://www.ilo.org/sites/default/files/2025-02/ILC113-V%282%29-%5BWORKQ-241129-001%5D-Web-EN.pdf.

[5] “Artigo 42 Adoção de decisões.

1. Salvo disposição em contrário neste regimento, o comitê procurará, na medida do possível, adotar suas decisões por consenso, o qual se caracteriza pela ausência de objeção apresentada por um membro como um obstáculo à adoção da decisão de que se trate”.

[6] Esses números não incluem os votos dos empregadores e dos trabalhadores, que de modo integral foram – respectivamente – no sentido da adoção de uma recomendação e de uma convenção suplementada por uma recomendação.

[7] Esse resultado, aparentemente significativo, não representa, por óbvio, uma chancela automática do texto a ser apreciado de modo definitivo em 2026. Até mesmo porque o quórum para aprovação de convenções é de dois terços da Plenária da CIT, conforme o art. 19, n. 2, de seu Regimento.

[8] Nesse contexto, não se tendo certeza da aprovação da convenção em 2026, nem se conhecendo seu conteúdo, não se pode afirmar que o decidido no dia 4 de junho de 2025 “representa um marco na luta contra a precarização das condições de trabalho de entregadores, motoristas de aplicativo e outros profissionais vinculados à chamada ‘economia de plataforma’”, como alardeado pelo Ministério do Trabalho e Emprego em seu sítio na internet: https://www.gov.br/trabalho-e-emprego/pt-br/noticias-e-conteudo/2025/junho/representantes-do-mte-ajudam-a-aprovar-convencao-internacional-contra-precarizacao-do-trabalho-em-plataformas.

[9] Essa tática não é nova na atuação do governo brasileiro na CIT: em 2015, por exemplo, enquanto o Congresso Nacional debatia projetos de lei sobre a terceirização, os delegados governamentais brasileiros propuseram uma emenda condenando esse modelo de contratação de serviços, com o claro intuito de influenciar o processo legislativo nacional.

[10] É verdade que as convenções devem ser internalizadas pelo Congresso Nacional, mas é igualmente certo que há uma natural tendência de ratificação dessas convenções, no caso brasileiro, e que a discussão no procedimento de internalização é muito menos abrangente do que a que se tem no processo legislativo de uma lei complementar, como é o caso do PLP 12/2024.

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