Há mais de 20 anos, a vitória da sociedade civil no enfrentamento da sub-representação das mulheres nos espaços de poder foi feita a partir da conquista da cota de gênero em candidaturas.
Mais recentemente, esse debate se ampliou com a aprovação da cota étnico-racial, que determina a distribuição proporcional de recursos do fundo eleitoral entre candidaturas negras, a partir das eleições de 2020. E ainda que tenhamos evoluído para discutir ações afirmativas na legislação eleitoral, as mudanças têm acontecido de maneira ainda singela (na Câmara dos Deputados, mulheres são 17,7% e pessoas negras são 18%).
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Agora, próximo da audiência pública sobre o novo Código Eleitoral no Senado, marcada para maio, nos deparamos com uma proposta legislativa que, sob o pretexto de “aperfeiçoar o sistema”, pode, na verdade, promover um grave retrocesso nos direitos políticos das mulheres.
O quarto relatório do senador Marcelo Castro (PP-PI) sobre o PLP 112/2021, em vez de obrigar os partidos a preencherem o mínimo de 30% de candidaturas de mulheres, como prevê a legislação atual, passa a prever apenas a “reserva” das vagas, sem obrigatoriedade de preenchimento.
Além disso, o relator propõe eliminar a sanção de cassação de chapas por fraude à cota de gênero — uma medida que pune os partidos políticos, já que, recorrentemente, a anistia se torna um processo naturalizado ao descumprimento dessas regras. E embora proponha uma reserva de cadeiras de 20% para mulheres eleitas, essa solução isolada pode se tornar um teto e não um piso, criando distorções no sistema proporcional e limitando a diversidade entre as eleitas.
Explico: como aponta o “Observatório de violência política contra a mulher” em sua análise técnica, a proposta enfraquece a política de cotas e ignora outras soluções possíveis, como a responsabilização de dirigentes partidários em casos de fraude ou a manutenção das cotas em conjunto com a reserva de cadeiras – uma estratégia para manter a pluralidade das candidaturas e não incentivar apenas que as mulheres disputem entre si os 20%, enquanto os homens disputam os 80%.
Para quem atua com relações governamentais, compreender os desdobramentos do novo Código Eleitoral vai além de acompanhar uma mudança legislativa: trata-se de entender como essas transformações reconfiguram o ambiente político, alterando os perfis dos atores com os quais se estabelecerão as interlocuções institucionais.
A redefinição das regras eleitorais afeta a dinâmica de representação institucional e a forma como a agenda pública será negociada nos próximos ciclos legislativos. Em outras palavras, o novo Código Eleitoral pode não apenas redistribuir o tabuleiro, mas mudar as regras do jogo — e quem atua com relações governamentais precisa compreender, desde já, o impacto dessa virada.
O que está em jogo não é apenas a forma, mas o futuro da representação democrática no Brasil. Mais uma vez, a sociedade civil se articula para pressionar uma ação frente à legislação que pode impactar a cara de quem faz a política brasileira, articulando para que organizações como o “Pacto pela Democracia”, que reúne diversas ONGs, possam ter voz no processo de discussão das novas regras eleitorais.
Segundo um estudo recente da FGV, que analisou 36 anos de atuação parlamentar, as mulheres pretas apresentam mais projetos pró-direitos das mulheres, mas ocupam apenas 2,5% das cadeiras e raramente assumem lideranças. Ter mais mulheres eleitas, respeitando as diversidades que temos desta representação no Brasil, é apoiar a construção de avanços pela equidade de gênero.
Por ora, como profissional do campo de relações governamentais, resta a pergunta: avançaremos na garantia de uma democracia mais representativa ou aceitaremos retrocessos que limitem quem pode ocupar o poder?