Erro grosseiro: a definição do TCU no caso do controle de armas pelo Exército

Introdução: o debate atual sobre erro grosseiro no TCU

O conceito de erro grosseiro tem sido objeto de debates relevantes no campo do controle externo, especialmente após a introdução do art. 28 da LINDB (Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro), pela Lei 13.655/2018, que assim dispôe: “O agente público responderá pessoalmente por suas decisões ou opiniões técnicas em caso de dolo ou erro grosseiro”.

Dois artigos recentes veiculados pelo JOTA refletem a complexidade do tema e as tensões interpretativas em curso no Tribunal de Contas da União (TCU).

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O primeiro artigo, de Vitória Damasceno e Mariana Carvalho (2023), destaca que, desde a entrada em vigor da Lei 13.655/2018, o TCU vem oscilando entre diferentes parâmetros para caracterizar o erro grosseiro. Inicialmente, o tribunal utilizou o referencial do “administrador médio”.

Posteriormente, com o Acórdão 2.391/2018-Plenário, consolidou-se o entendimento de que a culpa grave deveria se basear em conduta com nível de atenção aquém do ordinário, consideradas as circunstâncias. A tensão entre esses critérios, segundo as autoras, ainda está presente nas decisões atuais, impactando a previsibilidade da responsabilização.

Já Victoria Malta Corradini (2024), em análise também publicada no JOTA, aponta que o TCU vem acumulando enunciados que classificam diversas condutas como erro grosseiro, muitas vezes com base em tipos abertos ou abstrações sobre o dever de cuidado. Segundo a autora, essa prática pode esvaziar a exigência de análise concreta da temeridade da conduta, frustrando os objetivos do art. 28 da LINDB de proteger o gestor diligente em contextos complexos.

Levantamento na jurisprudência selecionada do TCU

Com base na plataforma de Jurisprudência Selecionada do TCU, observa-se que, desde 2019 (primeiro ano após a mudança da LINDB), a Corte realmente vem buscando uma definição de erro grosseiro centrada na inobservância grave do dever objetivo de cuidado, como aponta o artigo de Victoria Malta Corradini. Os acórdãos 3.327/2019, 2.012/2022 e 11.674/2023 são exemplos dessa construção jurisprudencial.

Na seleção que realizamos, cabe destacar, ainda, que prevalecem julgados em processos cuja natureza é de Tomadas de Contas Especial (TCE) — ou seja, voltados à apuração de irregularidades na aplicação de recursos públicos federais — e, com menos frequência, em processos de representações que apuram infrações às normas de licitações e contratos públicos.

Não foram identificadas, nesse universo, decisões proferidas pelo TCU em processos nos quais não se examina diretamente a execução de despesas, mas sim a eficácia e a efetividade de políticas públicas, avaliando indiretamente o gasto público — como é o caso de algumas auditorias operacionais.

Diante desse cenário, surge uma indagação relevante: estaria o conceito de erro grosseiro sendo aplicado mais frequentemente pelo TCU em processos voltados à fiscalização de despesas públicas, em linha com o núcleo tradicional de atuação sancionatória do órgão? Essa hipótese ganha relevo quando se observa a não imputação de erro grosseiro pelo Acórdão 456/2025 – Plenário, que envolvia o monitoramento de decisões do próprio TCU sobre as atividades de controle de armas pelo Exército Brasileiro.

O caso das portarias sobre controle de armas

O Acórdão 456/2025 – Plenário representa uma oportunidade de observar o debate sobre erro grosseiro em um contexto diverso dos casos que envolvem análise de conformidade das despesas públicas ou do processamento regular de licitações e contratações.

A decisão foi proferida em processo de monitoramento que avaliou o cumprimento de recomendações dirigidas ao Comando do Exército em sucessivos acórdãos do próprio TCU, desde 2018, quanto à implementação de políticas públicas de rastreamento de produtos armamentícios controlados por força de lei federal. Neste caso, o TCU se apresenta, provavelmente, como a única instância de controle externo regular sobre essa política pública.

Ganhou destaque, neste processo, a notícia de revogação súbita e desmotivada, por parte de um Comandante do Exército, de três atos normativos (Portarias COLOG 46, 60 e 61/2020) que regulamentavam o rastreamento, a marcação e a identificação de armas e munições. A revogação foi anunciada imediatamente  após uma postagem do então presidente Jair Bolsonaro na rede social Twitter (atual X), com a seguinte afirmação:

“Determinei a revogação das Portarias COLOG nº 46, 60 e 61, de março de 2020, que tratam do rastreamento, identificação e marcação de armas, munições e demais produtos controlados por não se adequarem às minhas diretrizes definidas em decretos”.

A Agência Brasil, órgão de comunicação do governo federal, noticiou imediatamente o fato, atribuindo a revogação à determinação presidencial. A unidade técnica do TCU, na instrução do processo, assim, observou que: (i) não houve processo administrativo formal ou nota técnica contemporânea que justificasse a revogação das portarias; (ii) as justificativas prestadas pelo Exército variaram conforme o destinatário (MPF, STF e TCU); (iii) houve significativa postergação (mais de um ano) na edição de normas substitutivas efetivas; (iv) documentos internos replicaram justificativas genéricas e não contemporâneas para a revogação, que nunca chegou a ser justificada.

Com base nesses elementos, foi proposta pela unidade técnica do TCU a aplicação de multa por erro grosseiro contra o gestor responsável pela revogação dos atos normativos, com fundamento no art. 28 da LINDB. Interessante ressaltar que o Acórdão 456/2025 foi proferido no âmbito do TC 032.637/2017-9, mesmo processo em que o TCU já havia formulado, anteriormente, múltiplas determinações ao Comando Logístico do Exército (COLOG). Parte dessas determinações não foram atendidas pela unidade militar, o que evidenciaria, para além das falhas e omissões apuradas, o descumprimento reiterado de deliberações da própria Corte de Contas.

Porém, ao final, a decisão do plenário do TCU não reconheceu na conduta do agente público qualquer elemento caracterizador de erro grosseiro. Por unanimidade, acompanhando o voto do ministro relator, a corte entendeu não ter havido descuido grave ou culpa suficiente para caracterizar erro grosseiro. Afastou, assim, a proposta de responsabilização do agente que revogou as portarias.

Erro grosseiro e dever de motivação

Diante do caso acima emerge outra linha de análise relevante, partindo da associação entre erro grosseiro e o dever de motivação dos atos administrativos de qualquer natureza. Nesse sentido, o Decreto 9.830/2019, editado pelo então presidente Jair Bolsonaro, regulamentou os artigos 20 a 30 da LINDB, com foco na racionalização e na fundamentação das decisões administrativas.

As normas estabeleceram, entre outros pontos, que toda decisão deve ser motivada com base em fatos contextualizados, fundamentos jurídicos e argumentação congruente. A motivação, conforme o decreto, deve indicar expressamente as normas aplicáveis, interpretações, jurisprudência e doutrina, podendo ainda referir-se a pareceres ou notas técnicas anteriores. O decreto reforça a centralidade da motivação como requisito de legitimidade e transparência na administração pública.

Trata-se de norma convergente com o que estabelece também o art. 50 da Lei 9.784/1999, segundo o qual a motivação deve ser “explícita, clara e congruente”. Além disso, já o Decreto 9.203/2017, que dispõe sobre a política de governança da administração pública federal — e que foi editado a partir de uma iniciativa do TCU, liderada pelo ministro Augusto Nardes — incorporava o dever de motivação como um dos pilares da boa governança pública.

Entre as diretrizes da norma destacam-se: (i) processo decisório orientado por evidências e conformidade legal (art. 4º, VIII); (ii) padrões elevados de conduta (art. 4º, V); (iii) liderança baseada em integridade, competência, responsabilidade e motivação (art. 5º, I, d).

A jurisprudência do TCU, eventualmente, aproxima os conceitos de erro grosseiro (definido como culpa grave) e a falta de motivação.  Exemplo ilustrativo é o Acórdão 2028/2020 – Plenário, no qual o tribunal afirmou:

“Para fins do exercício do poder sancionatório do TCU, pode ser tipificado como erro grosseiro (art. 28 do Decreto-Lei 4.657/1942 – LINDB) o descumprimento, sem a devida motivação, de determinação expedida pelo TCU, pois tal conduta revela grave inobservância do dever de cuidado, o que configura culpa grave”.

Esses marcos normativos e jurisprudenciais sugerem que a motivação dos atos administrativos não é apenas uma formalidade, mas condição essencial de legitimidade e racionalidade, com reflexos diretos na aferição da responsabilidade do agente público por eventual prática de erro grosseiro.

Considerações finais

O Acórdão 456/2025 – Plenário parece tratar a configuração do erro grosseiro de forma dissociada do dever de motivação, mesmo diante do robusto arcabouço normativo, jurisprudencial e doutrinário que vincula esses dois conceitos. A decisão do TCU, ao final, é de difícil compreensão, o que, não por acaso, parece ter despertado reações de profundo estranhamento na opinião pública, como indicam matérias veiculadas pelos jornais Folha de S.Paulo e O Estado de S. Paulo no último dia 26 de fevereiro.

Para além disso, surge outra indagação: estaria o TCU adotando critérios distintos para aplicar o art. 28 da LINDB conforme a natureza do processo? Em outras palavras, processos de auditoria operacional, voltados à avaliação e aprimoramento de políticas públicas — e não à apuração direta de danos ao erário — estariam menos sujeitos à responsabilização individual de gestores? Questão a ser monitorada e debatida.

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