A recente implementação do sistema e-Consignado trouxe avanços significativos, especialmente na facilitação do crédito para empregados, permitindo acesso simplificado e rápido ao crédito consignado diretamente na folha salarial. Contudo, essa facilidade também elevou significativamente o nível de endividamento dos trabalhadores, criando desafios jurídicos, financeiros e éticos importantes que demandam uma postura crítica por parte das empresas.
As empresas frequentemente enfrentam situações complexas, quase kafkianas: ao facilitar o crédito consignado, podem inadvertidamente contribuir para o endividamento excessivo dos empregados, reduzindo drasticamente sua renda disponível para cobrir despesas essenciais previstas em Acordos Coletivos de Trabalho (ACT), como plano de saúde, refeitório e cesta básica.
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Caso um empregado não tenha saldo suficiente após os descontos consignados para esses benefícios essenciais, a empresa encontra-se em um impasse difícil: não pode simplesmente suspender os benefícios sem correr risco de ações trabalhistas e questionamentos judiciais. Por outro lado, classificar tais descontos como obrigatórios pode levar a empresa à inadimplência frente às instituições financeiras.
Diante dessa situação, as empresas não precisam aceitar passivamente o oferecimento irrestrito de crédito consignado. Pelo contrário, podem e devem adotar medidas preventivas e, se necessário, insurgir-se contra a ampliação irresponsável dessa prática. Entre as medidas possíveis estão a negociação junto às instituições financeiras para estabelecer critérios mais rígidos de concessão do crédito consignado, exigindo comprovação detalhada da capacidade de pagamento dos empregados.
Além disso, é possível estabelecer limites adicionais internos, através da via de negociação coletiva com sindicatos e políticas internas, definindo claramente que certos descontos, especialmente aqueles relacionados à saúde e alimentação, sejam prioritários e subtraídos antes da concessão de novos créditos consignados.
Outra medida importante é a implementação de mecanismos de educação financeira, ajudando os empregados a compreenderem plenamente os impactos reais do crédito consignado em suas finanças pessoais. Campanhas informativas constantes e treinamentos específicos podem prevenir situações críticas de inadimplência e endividamento excessivo, protegendo assim tanto o empregado quanto a empresa.
Do ponto de vista legal, as empresas podem recorrer a medidas judiciais caso identifiquem abusos ou irregularidades na oferta ou operacionalização dos empréstimos consignados, especialmente quando essas práticas colocam em risco os direitos fundamentais dos trabalhadores ou geram exposição jurídica à empresa.
Uma dessas ações pode ser a propositura de ações judiciais de natureza preventiva ou declaratória, buscando esclarecimentos sobre a aplicação correta da legislação e sobre os limites de responsabilidade da empresa perante as instituições financeiras e os empregados. Ademais, é possível acionar administrativamente os órgãos reguladores competentes, como o Comitê Gestor das Operações de Crédito Consignado, criado pelo Decreto 12.415/2025, para obter esclarecimentos e assegurar o cumprimento rigoroso das normas legais vigentes.
Para Dworkin, o papel do intérprete jurídico não se esgota em decifrar o texto legal como mera soma de comandos; ele exige que cada norma seja lida segundo os valores de justiça, equidade e respeito à dignidade humana que dão coerência ao direito como um todo. Nessa “leitura moral” – característica de sua concepção de “law as integrity” – a regra que fixa o teto de 35 % para descontos em folha (art. 1º-A da Lei 10.820/2003, incluído pela MP 1.292/2025) só faz sentido se vista como salvaguarda concreta da subsistência do trabalhador.
Em outras palavras, o limite não é um número arbitrário: ele expressa a exigência, enraizada no princípio constitucional do valor social do trabalho, de que o salário continue apto a cobrir alimentação, moradia, transporte e outras necessidades vitais mesmo depois das parcelas do consignado.
Exemplos cotidianos evidenciam a dimensão ética da norma: um operador de caixa que compromete metade da remuneração líquida com empréstimos passa a escolher entre pagar a parcela ou comprar gás de cozinha; um auxiliar de produção que, endividado além do teto, recorre a crédito informal enfrenta juros abusivos que corroem ainda mais seu poder de compra, agravando o ciclo de pobreza.
Ao proibir que a soma dos descontos ultrapasse o patamar fixado, o legislador incorpora a ideia dworkiniana de que direitos individuais – aqui, o direito a um mínimo existencial remunerado – não podem ser sacrificados em nome de conveniências meramente utilitárias, como a expansão do mercado de crédito.
Assim, interpretar a lei à luz desses princípios morais reforça o dever de empregadores e agentes financeiros de observar, com rigor, a margem consignável, fiscalizando inclusivamente situações em que novos empréstimos, ainda que formalmente lícitos, colocariam o trabalhador em condição de vulnerabilidade incompatível com o ideal de um salário digno.
A Orientação Jurisprudencial 18 da SDC/TST reforça essa perspectiva ao limitar os descontos totais a 70% da remuneração bruta, assegurando uma reserva mínima de 30%. Contudo, é válido questionar se tais proteções são suficientes diante da facilidade extrema oferecida pelo crédito consignado.
Richard Thaler mostra que nossas decisões econômicas raramente resultam de cálculos racionais impecáveis; ao contrário, elas são moldadas por atalhos mentais (heurísticas) e vieses comportamentais que o mercado – e, aqui, o sistema de crédito – pode explorar de modo quase invisível.
Quando a Lei 10.820/2003, repaginada pela MP 1.292/2025, autoriza o empréstimo consignado com descontos automáticos em folha, ela cria um ambiente de “aparente facilidade” que conversa diretamente com o conceito de nudge: a sensação, para o trabalhador, de que contrair crédito é tão simples – e tão “seguro” – quanto marcar um campo num aplicativo. Essa arquitetura de escolha reduz “fricções” cognitivas, mas, se mal calibrada, aciona vieses como o desconto hiperbólico (sobrevalorizar o ganho imediato e subestimar o custo futuro) e o otimismo acrítico (“com o próximo aumento eu quito”).
Imagine um auxiliar de logística que, ao receber oferta pré-aprovada no contracheque, julga “inofensivos” os cinquenta reais mensais da parcela; sob a lógica do mental accounting ele enxerga apenas o impacto microscópico na folha daquele mês, ignorando o efeito cumulativo de um contrato de 60 meses. Some-se a isso o viés de inércia: como o desconto é automático, o trabalhador não sente o “peso” da prestação saindo da conta; a dívida, literalmente, some do radar. O resultado é a multiplicação de empréstimos paralelos até que, de repente, 35 % do salário bruto – o teto legal – esteja comprometido, limitando drasticamente a margem para despesas básicas.
Thaler adverte que, nesses casos, a escolha “livre” é, na prática, capturada pela própria estrutura que estimula o endividamento. Por isso, interpretar a nova redação da Lei 10.820 sob a ótica da economia comportamental leva a deveres adicionais: empregadores, bancos e fintechs devem introduzir contrapesos que restabeleçam a reflexão crítica, como períodos de cooling-off, simulações obrigatórias com “custo total” em destaque, alertas dinâmicos quando a soma das parcelas superar marcos de risco, e trilhas de educação financeira antes da liberação de novos contratos.
Tais mecanismos funcionam como “contranudges” éticos, trazendo à consciência do tomador os perigos escondidos na comodidade do débito em folha e protegendo-o da vulnerabilidade que a própria lei pretende mitigar quando define um teto consignável.
Também é fundamental a discussão sobre a natureza jurídica dos descontos previstos em ACTs, eis que as normas coletivas trabalhistas devem priorizar sempre a proteção do trabalhador, recomendando cautela na interpretação desses descontos para não potencializar inadimplências e conflitos internos.
Assim, torna-se essencial que empresas assumam uma postura crítica frente ao e-Consignado, avaliando não apenas a conformidade legal, mas também suas implicações éticas e econômicas, pois nenhuma norma jurídica pode ser isolada do contexto social e econômico ao qual pertence.
Por isso, gestores e profissionais de Direito devem considerar profundamente os impactos das práticas financeiras adotadas, principalmente aquelas com potenciais implicações trabalhistas, na medida em que ética e justiça social devem prevalecer sobre interesses econômicos imediatos.
Em síntese, é imprescindível ultrapassar a simples conformidade normativa, adotando uma postura responsável e proativa frente à oferta de crédito consignado, protegendo trabalhadores e garantindo a sustentabilidade financeira e jurídica das empresas.